Muito antes da pandemia já se notava uma crise, pela falta de verdadeiras lideranças, em todos os âmbitos da sociedade (governos, política, organizações públicas e privadas e até nas famílias) que, em maior ou menor grau, ocorre também em diversos países mundo afora. A pandemia acelerou o futuro, exacerbando a importância da Transformação Digital no modus operandi da sociedade como um todo. E isto trouxe à tona um outro fato: a liderança que já existe está em crise.
Liderança é um dos temas mais publicados no mercado editorial. Aqui, trata-se liderança como capacidade de influenciar para a consecução de determinado objetivo, com base no relacionamento, no exemplo, na inspiração. Não é posição hierárquica, tampouco o uso legítimo da autoridade na gestão em busca de resultados. Neste sentido, sabe-se que nem todo gestor é líder e que há líder que não tem autoridade formal para a fazer a gestão.
Considera-se que a liderança pode ser desenvolvida como defendem diversos autores e que exige um conjunto de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes), que podem ser facilitadas por algumas características já adquiridas pelo próprio indivíduo. Assim sendo, de uma forma ou de outra, ratificando o conceito de que aprendizagem humana ocorre na seguinte proporção 70; 20: 10 (70% na informalidade, observação e experimentação; 20% por modelos e orientação e 10% de forma sistematizada), as pessoas podem aprender a ser líderes. Por outro lado, também não será tratado o líder como “super-herói”, um SER que precisa ter tantas características diferenciadas dos “não-líderes”, e de quem não se admite erros ou fragilidades. Neste sentido, a pandemia trouxe impactos positivos, pois nos colocou frente à imprevisibilidade e vulnerabilidades humanas, ressignificando alguns temas que antes eram rechaçados, como trata a obra de Brene Brown, “A coragem de ser imperfeito”.
A imperfeição, a falta de controle, a ansiedade pelo futuro, o medo da doença, da morte, da perda do trabalho, as dificuldades para se adaptar às novas formas de trabalhar, estudar, consumir, se relacionar. Enfim, toda esta profusão de sentimentos e emoções, colocou as lideranças frente às seguintes questões: estávamos preparados para lidar com esta nova realidade? Temos as competências necessárias?
A pandemia impôs novos modelo de trabalho, especialmente o modelo remoto, fez com que gestores que funcionavam no paradigma do comando e controle precisassem mudar seu modelo de gestão para relações de confiança e acompanhar mais resultados e menos processos. Isto colocou em xeque a qualidade dos relacionamentos entre gestores e geridos, quando a comunicação assertiva e transparente se mostrou cada vez mais necessária para a construção da relação de confiança. Por outro lado, a tal qualidade dos relacionamentos também exige outra habilidade essencial na comunicação, a chamada escuta ativa. Com diria nosso grande escritor Rubem Alves, os indivíduos são muito preocupados com a oratória, mas trabalham pouco a “escutatória” (conhecida crônica do citado escritor).
A espinha dorsal de uma comunicação eficaz é a empatia entre emissor e receptor, permitindo genuíno entendimento das necessidades, emoções e até pensamentos, é possível ter uma verdadeira “comum-ação” e quando ocorre reciprocidade da ação comum, é mais fácil influenciar.
Não se trata de abandonar a noção de gestão, mas de transformar os gestores em líderes de suas equipes, para que os resultados perseguidos sejam sustentáveis, pois gestores que não são líderes usam apenas a autoridade legítima e esta, por si só, não garante o engajamento e o compromisso das pessoas com os resultados de longo prazo. Não é uma escolha entre ser líder ou gestor, mas entender que a liderança pode ocorrer em qualquer lugar ou posição. Ela é função de facilitar processos, mudanças e será impossível promover a Transformação Digital das organizações sem líderes, que assumam seu papel de influenciadores, inspirando pessoas por seus exemplos.
Líderes não nascem prontos, eles são feitos por si próprios, juntos às suas equipes de trabalho, porque não adianta apenas ter oportunidade (o que pode ser gerado pela empresa); é preciso ter mindset de crescimento para se transformar num líder, segundo Carol Dweck, autora da obra MINDSET.
Em Pipeline de Liderança, Ram Charan e Stephen Drotter apresentam um modelo de desenvolvimento do potencial de liderança, em que cada passagem requer que as pessoas adquiram uma nova forma de liderar em três diferentes aspectos:
as competências necessárias para executar novas responsabilidades;
as aplicações do tempo que orientará o trabalho do líder;
os valores profissionais, aquilo que as pessoas acreditam ser importante e passa a ser foco das ações nesta nova etapa.
A maioria dos profissionais inicia sua carreira num papel primordialmente mais técnico, no qual aplica suas competências específicas de determinada formação ou experiência profissional, contribuindo com a realização de um trabalho que tem objetivos e prazos geralmente definidos por terceiros, aplica seu tempo no planejamento, no conteúdo, na qualidade de sua entrega e está focada na adaptação à cultura da empresa, no seu padrão de desempenho e na colaboração com os demais. Quando esta pessoa demonstra eficácia e eficiência neste papel e potencial para ser desenvolvido, geralmente é convidada para assumir um papel de liderança. Ocorre que as características que o levaram ao sucesso neste patamar não vão garantir o sucesso diante dos desafios que o novo pipeline traz. As pessoas de desempenho mais elevado, muitas vezes, relutam em mudar, porque preferem realizar as atividades que já lhes renderam sucesso, segurança e conforto profissional.
Para os autores da obra Pipeline de Liderança, citada acima, a mudança mais difícil é da passagem de função meramente operacional, ou seja, a gestão de si (1), para a gestão do outro (pipeline 2). Esses profissionais precisam aprender a valorizar o trabalho de gestão (planejar, organizar, coordenar, controlar, medir, coaching etc.), e entender que este trabalho de ajudar a equipe a ser produtiva, passa a ser mais importante do que ser ele próprio produtivo.
Só vai conseguir orientar, desenvolver, gerenciar a atividade do outro quem conhece os princípios de gestão e desenvolve tais habilidades. No entanto, as competências mais críticas relacionadas à esta passagem do pipeline 1 para o 2, são a autoconsciência e a autogestão, dois pilares da Inteligência Emocional.
Segundo Daniel Goleman, conhecido autor sobre o tema, os líderes de elevada autoconsciência emocional se mantêm em sintonia com seus sinais internos, reconhecendo como seus sentimentos os afetam e ao seu desempenho profissional, e também, permanecem em harmonia com seus valores básicos e, não raro, conseguem enxergar uma situação por trás de um cenário complexo. São pessoas francas e autênticas, capazes de falar abertamente sobre suas emoções e com convicção sobre suas metas e ideias. Entretanto, a autoconsciência possibilita ao líder pedir ajuda quando precisa e se concentrar em cultivar novas habilidades de liderança. Cabe aqui a analogia com os protocolos de segurança dos voos, em situações de falta de oxigênio, primeiro a máscara em você, para depois ajudar o outro.
Certamente, esses atributos ajudam a manter coerência entre discurso e ação, geram credibilidade na figura do líder, requisito fundamental para influenciar pessoas, aspecto essencial da verdadeira liderança. Para ter coerência o líder precisa que sua vida tenha um propósito claro. Em Liderança & Propósito, Fred Kofman afirma que “o sucesso é como a felicidade: não pode ser buscado de forma direta […] você precisa viver uma vida de sentido e propósito, precisa buscar significado, autoatualização e autotranscedência, não só para sim mesmo, mas para todos que trabalham com você.”
Para Kofman, liderança é conseguir o impossível e merecer o que é de graça. O compromisso íntimo dos seguidores pode ser inspirado apenas pela crença de que, dando o que têm de melhor, a empresa vai melhorar as suas vidas. A liderança não tem nada a ver com autoridade formal; ela tem a ver com autoridade moral. “Mentes e corações não podem ser comprados ou coagidos, devem ser merecidos e conquistados”, afirma Kofman. Líderes transcendentes trabalham para coordenar os propósitos individuais daqueles a seu serviço em um propósito maior, coletivo, que torna cada pessoa também maior.
Mais de dois anos de pandemia, ainda não se está totalmente livre deste elemento desencadeador de mudanças tão expressivas no modo de viver da humanidade, ainda se está buscando formas de enfrentar a crise, neste caso, não a sanitária, a econômica, nem a crise política, mas a de liderança. Ainda há mais perguntas do que respostas, mas sabe-se que não há mais espaço para a gestão pautada apenas na autoridade instituída e sim na verdadeira liderança. As pessoas querem ser parte dos processos decisórios, querem ser ouvidas, querem experiências que as conectem com seus propósitos. E as lideranças deste mundo — que a cada dia torna-se mais digital — precisam ter muito mais do que a literacia digital com conhecimento e habilidades no manejo de novas ferramentas tecnológicas, mas fundamentalmente, mudança de midset. Não dá para agir diferente pensando como antes.
A capacidade de fazer leitura de cenários, flexibilidade, capacidade de adaptação, resiliência e inteligência emocional serão essenciais. Pois, este novo mundo nos confrontou com o adoecimento mental, que antes era tão negado e motivo de preconceitos. O aumento dos índices de doenças mentais está alarmante segundo diferentes fontes de pesquisas, e o que antes era problema das instituições de saúde, hoje está dentro de todas as organizações sociais (famílias, empresas, governos, etc.). A evidência coloca as lideranças frente a novos desafios de como gerenciar pessoas, pois está diariamente vivenciando vários paradoxos: competição x colaboração; metas x bem-estar; indivíduo x coletivo; transparência x proteção de dados; presencial x virtual; pessoal x profissional (trabalho remoto); local x global; lucro x reputação; curto x longo prazo…
Tudo isto remete a mais duas competências críticas: a assertividade (capacidade de assumir posições claras fazendo valer seu ponto de vista sem perder a perspectiva do outro); e o equilíbrio, para o caso de não caber posições claras, será preciso equilibrar, será preciso ter o melhor de cada lado, para não se incorrer risco de se ter o pior de um dos dois lados em questão. O equilíbrio fundamenta-se no emocional, mas estende-se à autogestão, à integridade, ao alinhamento com valores.
A crise gerada pela pandemia certamente pode ser entendida como uma oportunidade para evolução das verdadeiras lideranças, podendo constituir-se numa alavanca para ajudar a solucionar a crise da falta de lideranças, pois além de líderes mais evoluídos temos a possibilidade de surgimento de novas lideranças, quer pelo processo de autodescoberta, quer pela identificação de novos talentos, já que as lentes (de busca) podem ter mudado também a necessidade de incorporar cada vez mais tecnologia, colocando o Ser Humano definitivamente no centro das organizações, pois as vulnerabilidades nos humanizam.
Este post foi produzido por Denize Dutra, Doutora em Administração. Consultora, Coach, Professora Convidada da FGV e colunista do MIT Technology Review do Brasil.