A internet de protesto está sendo construída em sites de uma única página
Humanos e tecnologia

A internet de protesto está sendo construída em sites de uma única página

Simples, compartilháveis e privadas, essas páginas são a escolha da Geração Z não apenas para aprender sobre algo, mas também para fazer algo a respeito.

Na noite de 23 de agosto, Jacob Blake foi baleado nas costas pela polícia em Kenosha, Wisconsin. Na terça-feira (25), Kel, uma texana de 16 anos, havia construído um site de uma página, Justice for Jacob Blake, que oferecia contexto da situação, modelos de texto para entrar em contato com autoridades, fontes de ajuda para saúde mental e links de doação.

Para construí-lo, Kel recorreu ao Carrd, uma ferramenta simples que permite que qualquer pessoa crie um site em questão de minutos. Basta um endereço de e-mail para ter um site hospedado no Carrd sobre o assunto que você quiser. “Não tenho uma estrutura muito consolidada de plataforma e até hesitei em compartilhá-la no início”, disse Kel, que pediu para não ser identificada com seu sobrenome para evitar trolls. Carrds dá a qualquer pessoa esse apoio.

“Justice for Jacob Blake” é apenas o mais recente Carrds relacionado à justiça social compartilhado no Twitter, Instagram e TikTok como pontos completos de informação nos últimos meses. Essas ferramentas fáceis de usar estão reinventando o elemento básico de construção da internet – o site – para pessoas que desejam compartilhar fontes de informações de forma rápida, segura e criativa. Junto a ferramentas mais conhecidas como o Google Docs, eles estão formando a base de uma nova forma de “internet de protesto” para a década de 2020.

Carrd foi lançado em 2016 pelo seu fundador AJ (que usa apenas suas iniciais) para simplificar o processo de criação de páginas da web. Ele diz que nunca teve a intenção de criar uma ferramenta de protesto, embora ele não esteja infeliz com a forma como a plataforma foi reaproveitada. Ele só queria uma maneira “entediante” e simples de criar um site rapidamente. “Minha expectativa era de ‘uso geral’”, diz AJ. “Eu não previ nenhum desses outros usos. Essas foram surpresas agradáveis”.

Carrds foram inicialmente usados para criar páginas pessoais e homepages para pequenas empresas anunciando coisas como mercadorias caseiras ou aulas particulares. Como muitas tendências recentes, a plataforma encontrou popularidade inicial entre os fãs de K-pop, que criaram elaboradas colagens digitais de bandas. Mas Carrds rapidamente proliferaram-se além do set K-pop, inicialmente em nichos como fanfic de Harry Potter, fantasia e comunidades LGBTQ.

Então, George Floyd foi assassinado. AJ se lembra do momento exato em que Carrd explodiu. Em 30 de maio, ele recebeu uma notificação automática de que seu servidor estava quase sobrecarregado. Não fazia sentido. “Eu não sabia o que estava acontecendo”, diz ele.

Abençoado pela rainha

Acontece que a própria rainha da viralidade, Kim Kardashian West, fez um tweet com um link para um Carrd que listava recursos para o movimento Black Lives Matter. Foi o início de uma mudança fundamental na forma como os Carrds foram usados: eles foram incorporados à bios do Instagram, TikTok e Twitter por usuários que buscavam promover mudanças sociais.

Carrd não é a única ferramenta de criação de sites a evoluir dessa forma. O Bio.fm se autodenomina um concorrente da Carrd, e o Linktree viu um crescimento semelhante, de 5 milhões de contas em maio para 7 milhões agora, de acordo com o cofundador Alex Zaccaria (AJ diz que a Carrd está com “mais de um milhão de sites agora”). Como Carrd, o Linktree permite que os usuários criem sites simples compostos de links, facilmente incorporáveis ​​às mídias sociais. Ele também viu um aumento no número de usuários após o assassinato de George Floyd – nos últimos três meses, 80.000 usuários se inscreveram e vincularam suas páginas pessoais do Linktree ao movimento oficial Black Lives Matter.

A evolução desses sites ilustra uma mudança fundamental na forma como a Geração Z consome notícias e usa a mídia social, diz Amelia Gibson, professora assistente da Escola de Informação e Biblioteconomia da Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill.

“Muitas notícias tradicionais estão em um formato no qual os jovens não dedicam seu tempo, como a TV”, diz Gibson. “As notícias das redes sociais chegam a eles por meio de suas redes. Se trata de quem eles conhecem e o que valorizam”.

Para a Geração Z, isso geralmente significa justiça social. Quando a Polônia elegeu um primeiro-ministro homofóbico em junho, os Carrds estavam lá. Quando um carregamento de explosivos perigosos explodiu em Beirute, os Carrds estavam lá. Quando a eleição da Bielorrússia gerou protestos generalizados, os Carrds estavam lá. Quando a Caxemira cumpriu um ano de revogação da autonomia da Índia, os Carrds estavam lá.

Herdeiro do trono

No início deste ano, o Google Docs viral e colaborativo parecia uma maneira inovadora de os manifestantes se conectarem. Agora os Carrds parecem estar ocupando seu lugar. Eles estão tão difundidos que Carrds de Carrds apareceram – páginas com links para uma tonelada de outros Carrds, uma espécie de mecanismo de busca.

O bom é que os Carrds são visualmente mais interessantes do que o Google Docs. A força do Google Docs está na facilidade de navegação (se você já usou um processador de texto, sabe como usar o Google Docs). Mas Carrd oferece o potencial criativo (restrito) do design de páginas da web. “Carrds são muito mais fáceis para um criador – eles são um produto bastante ordenado, direto e bonito que em qualquer outro formato, como o WordPress, exigiria muito esforço”, diz Gibson.

Essa facilidade significa que os criadores geralmente têm vários Carrds sob seu controle, criando uma subeconomia de dicas de design e arte. Alex, um jovem de 18 anos do oeste da Austrália, criou vários Carrds e hospeda um canal no YouTube que oferece instruções. “Quase qualquer um pode criar Carrds,” Alex diz. “[Eu] os faço para me divertir”.

Kel também criou vários Carrds, começando com páginas dedicadas a K-pop e Animal Crossing. Ela ajudou seus amigos a construírem seus próprios sites, criou recursos LGBTQ com eles e até criou Carrds para mostrar sua arte em projetos escolares.

Carrds explicativos, semelhantes ao PowerPoint, são especialmente populares. Gibson diz que o que estamos testemunhando em Carrds e Linktree é a transformação das redes sociais de uma mentalidade focada na personalidade para uma mentalidade anti-influenciadora. Com as ferramentas mais novas, o foco é estabelecido em uma causa em si, não nas celebridades afiliadas a ela.

Na verdade, esses sites são o meio ideal para chamar a atenção para as causas em um ciclo de notícias em movimento, diz Paolo Gerbaudo, diretor do Centro de Cultura Digital do King’s College London.

“O ativismo requer acesso a recursos, listas, diretórios, que são por natureza mais ‘complicados’ e menos sensíveis ao tempo”, diz ele. “Carrd oferece um repositório de informações que podem ser vinculadas em tweets e postagens para obter conhecimento que não necessariamente estão sujeitos a limitações temporais, ou para reunir listas de informações em um só lugar”.

“Os sites de uma página oferecem uma maneira de escapar um pouco da obsessão com a instantaneidade das conversas nas redes sociais e um lugar onde as pessoas podem construir perfis de usuário sem usar o Facebook”, acrescenta Gerbaudo. (Embora Carrd agora ofereça a capacidade de vincular várias páginas, sua base continua sendo uma página.)

Tamanho ideal

Há outro motivo pelo qual Carrds tem uma vantagem sobre o Google Docs como recurso de protesto: privacidade. Apenas um endereço de e-mail é necessário para se inscrever, sem detalhes de identificação. Na verdade, muitas vezes era impossível para mim encontrar criadores do Carrd por meio de seu próprio Carrd. Quando consegui, os e-mails geralmente vinham de contas fantasmas.

Essa privacidade pode facilitar o caminho para a educação e o ativismo sobre temas delicados como identidade de gênero, particularmente em meio à “cultura de cancelamento” em ano eleitoral, diz Gibson: o “potencial oferecido pelo anonimato” é importante para criadores de conteúdo sobre questões como transexualidade ou identidade racial, que muitas vezes são vulneráveis aos trolls.

Carrds também são incrivelmente fáceis de compartilhar. Os links são muito mais diretos do que a confusão de letras e números que compõem um endereço do Google Docs. O formato da apresentação de slides é “do tamanho ideal”, como diz Gibson, tornando-o compatível com dispositivos móveis e adequado para redes sociais.

Em última análise, essas plataformas são bem-sucedidas ao oferecer maneiras concretas de agir em uma era em que a interação direta é quase impossível por causa da pandemia. “Por mais que as pessoas ao longo das gerações possam se dedicar a protestos e causas, acho que é difícil encontrar maneiras de fazer o trabalho de mudança social”, diz Gibson. “É uma estratégia melhor se concentrar nas questões, e a Carrds permite que eles [ativistas e criadores] se concentrem em temas específicos e se organizem de maneiras que provavelmente são mais seguras e apontem para formas específicas e concretas de agir”.

AJ ainda está surpreso com a evolução de sua ferramenta. “Fiquei chocado”, diz ele. “Eu não esperava por isso. Parece um regresso [ao início da internet]. Você pode questionar a qualidade do design, mas não pode questionar a autenticidade dele. É bom permitir que as pessoas façam isso”.

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