Quando falamos em Inteligência Artificial, é impossível não imaginar robôs humanoides que agem e pensam como seres humanos, como é frequentemente retratado nos cinemas. Gosto de dois exemplos dessa abstração: o personagem Ash do filme Alien — interpretado pelo ator inglês Ian Holm — e outro Ash mais recente, do episódio Be right back, o primeiro da segunda temporada da série Black Mirror — este interpretado pelo ator irlandês Domhnall Gleeson. Esses Ashes são robôs criados à imagem e semelhança do homem, tão perfeitos a ponto de serem reconhecidos como humanos. Contudo, a realidade ainda não é assim. Há dois tipos de IA e essa dos filmes é a IA geral (ou forte), ou seja, um sistema completo, praticamente indistinguível de um ser humano. O outro tipo é a IA restrita (fraca ou especializada) na qual um sistema exibe traços de inteligência semelhantes a humanos em um campo ou tarefa específica, como um chatbot, que pode responder perguntas sobre determinado assunto para o qual foi treinado. Em meu artigo “Fundamentos, pilares e aplicações da Inteligência Artificial no setor público”, discorri um pouco mais sobre esses conceitos e sobre os dilemas enfrentados pela IA e sua aplicação no setor público, que tem se expandido. Para corroborar essa afirmação o Gartner identificou as dez tendências tecnológicas para o setor público em 2021. Uma delas é a adoção estratégica de tecnologias baseadas em dados, como a Inteligência Artificial (IA) e machine learning, em cada estágio da atividade governamental para melhorar a eficiência, eficácia e consistência dos dados. O Gartner batizou essa abordagem de Operacionalized Analytics e prevê que até 2024, 60% dos investimentos em IA e análise de dados pelo setor público terão feitos como objetivo impactar diretamente o processo de tomada de decisão e resultados operacionais em tempo real.
No último dia 06 de abril, foi publicada a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), por meio da Portaria nº 4.617 do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). A EBIA foi construída em três etapas, conduzidas pelo MCTIC.
A primeira etapa, que teve início em 2019, foi a contratação de consultoria especializada em IA, por meio de Projeto de Cooperação Técnica Internacional junto à UNESCO. Essa consultoria teve como objetivo realizar estudo sobre os potenciais impactos sociais e econômicos da Inteligência Artificial e a apresentação de propostas para mitigar seus efeitos negativos e maximizar os efeitos positivos.
Em paralelo, foi realizada a segunda etapa, um processo de busca das melhores práticas (benchmark) nacionais e internacionais, observando-se estratégias similares que foram adotadas por outros países, que geralmente incluem tópicos como ganho de produtividade e consequente vantagem competitiva, preocupações com uma verdadeira revolução no mercado de trabalho, políticas de educação e requalificação profissional, tudo isso aliado a uma política pública de incentivo à pesquisa, desenvolvimento e inovação na área de IA, com aplicação da tecnologia em áreas específicas como saúde, mobilidade e segurança pública.
Por fim, a terceira etapa foi uma Consulta Pública à sociedade, entre 12 de dezembro de 2019 e 3 de março de 2020, na qual foram recebidas mais de 1000 contribuições que forneceram subsídios à EBIA.
Princípios da Inteligência Artificial da OCDE
Ao pensar em princípios de IA, lembro-me das três leis da robótica de Asimov: 1ª Lei: um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; 2ª Lei: um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que conflitar com a primeira lei; 3ª Lei: um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira ou segunda leis. O objetivo das leis era permitir a coexistência pacífica entre robôs inteligentes (como as Ashes) e os humanos.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) definiu algumas regras mais adequadas para que tenhamos uma gestão responsável dos sistemas de IA. A OCDE definiu cinco princípios básicos:
I) A IA deve beneficiar as pessoas e o planeta ao impulsionar o crescimento inclusivo, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar.
II) Os sistemas de IA devem ser concebidos de forma a respeitar o Estado de Direito, os direitos humanos, os valores democráticos e a diversidade, e devem incluir salvaguardas adequadas — por exemplo, permitindo a intervenção humana quando necessário — para garantir uma sociedade justa.
III) Deve haver transparência e divulgação responsável em torno dos sistemas de IA para garantir que as pessoas entendam os resultados baseados em IA e possam desafiá-los.
IV) Os sistemas de IA devem funcionar de maneira robusta, segura e protegida ao longo de seus ciclos de vida e os riscos potenciais devem ser avaliados e gerenciados continuamente.
V) Organizações e indivíduos desenvolvendo, implantando ou operando sistemas de IA devem ser responsabilizados por seu funcionamento adequado, de acordo com os princípios acima.
Tendo esses princípios como valores, a OCDE faz cinco recomendações aos líderes dos países:
(i) Facilitar o investimento público e privado em pesquisa e desenvolvimento para estimular a inovação em IA confiável.
(ii) Promover ecossistemas de IA acessíveis com infraestrutura digital e tecnologias e mecanismos para compartilhar dados e conhecimento.
(iii) Garantir um ambiente de política que abrirá o caminho para a implantação de sistemas de IA confiáveis.
(iv) Capacitar as pessoas com as habilidades para IA e apoie os funcionários para uma transição justa.
(v) Cooperar além das fronteiras e setores para progredir na gestão responsável de IA confiável.
Eixos temáticos e verticais da EBIA
O MCTIC, com base nesses princípios e recomendações, estabeleceu a Estratégia Brasileira de IA com três eixos temáticos (transversais) e 6 eixos verticais.
Os três eixos temáticos — que devem ser considerados em todas as verticais e aplicações da IA — são:
1. Legislação, regulação e uso ético: trata de parâmetros jurídicos, regulatórios e éticos para o desenvolvimento da IA;
2. Governança de IA: estrutura de governança que promova métodos e procedimentos para assegurar a observância aos princípios da IA no desenvolvimento de soluções com essa tecnologia;
3. Aspectos internacionais: trata de plataformas de cooperação e integração para trocas de informações, experiências, regulamentações e boas práticas na condução da IA no cenário mundial.
Os seis eixos verticais — que definem as áreas prioritárias para aplicação de IA — são:
1. Educação: qualificar e preparar as gerações atuais e futuras para as mudanças da IA, para o chamado futuro digital;
2. Força de trabalho e capacitação: preparar os trabalhadores para a transformação do mercado de trabalho, com a substituição de ocupações pela automatização e para o surgimento de novas posições; qualificação e requalificação profissional;
3. Pesquisa, desenvolvimento, inovação e empreendedorismo: promover investimentos públicos e privados em P&D para incentivar a inovação de IA confiável de uma maneira holística – aspectos técnicos, sociais, jurídicos e éticos;
4. Aplicação nos setores produtivos: promover o uso de IA nos diversos setores da economia de forma a melhorar a eficiência das empresas brasileiras;
5. Aplicação no Poder Público: promover o uso ético da IA pelo Poder Público para melhorar a qualidade dos serviços prestados à sociedade, privilegiando a economicidade e eficiência;
6. Segurança Pública: incentivar o uso não discriminatório de IA na área da segurança pública, respeitando o direito à privacidade e à proteção da imagem do titular, com mecanismos de supervisores de monitoramento para garantir o seu uso ético.
Esses eixos, norteadores para aplicação da Estratégia Brasileira de IA, estão relacionados conforme a figura a seguir (OPICE BLUM, 2021):
Objetivos da EBIA
Segundo o MCTIC, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial irá nortear as ações do governo federal no desenvolvimento da tecnologia, em todos os seus aspectos de forma a estimular a pesquisa, inovação e desenvolvimento de soluções em Inteligência Artificial, bem como seu uso consciente, ético e em prol de um futuro melhor. A inteligência artificial já havia sido citada na Estratégia Brasileira de Transformação Digital (E-Digital) como um vetor de mudança da tecnologia digital na sociedade. Especificamente em relação à IA, o E-Digital estabeleceu como ação estratégica “avaliar os potenciais impactos sociais e econômicos de tecnologias digitais disruptivas, como Inteligência Artificial e Big Data, propondo políticas que mitiguem seus efeitos negativos ao mesmo tempo em que maximizem seus efeitos positivos”.
Nesse sentido, a EBIA apresenta inicialmente seis objetivos estratégicos que poderão ser desdobrados em ações específicas. Os objetivos estratégicos inicialmente estabelecidos foram:
i) Contribuir para a elaboração de princípios éticos para o desenvolvimento e uso de IA responsáveis.
ii) Promover investimentos sustentados em pesquisa e desenvolvimento em IA.
iii) Remover barreiras à inovação em IA.
iv) Capacitar e formar profissionais para o ecossistema da IA.
v) Estimular a inovação e o desenvolvimento da IA brasileira em ambiente internacional.
vi) Promover ambiente de cooperação entre os entes públicos e privados, a indústria e os centros de pesquisas para o desenvolvimento da Inteligência Artificial.
O uso adequado de soluções de Inteligência Artificial é sem dúvida um grande diferencial competitivo no cenário mundial. Contudo, seu uso ético e a delegação de decisão para uma máquina ainda são temas polêmicos. A LGPD (Lei nº 13.709/18) tenta endereçar tal questão dispondo sobre o direito de titulares solicitarem a revisão das decisões automatizadas de dados pessoais, quando estas afetam seus interesses, incluindo o mapeamento de perfil pessoal, profissional, de consumidor e crédito, bem como quaisquer aspectos da personalidade da pessoa.
A EBIA é um bom começo para tratar adequadamente no âmbito nacional esse tema de extrema relevância e impacto na vida de todos. Contudo, falta materialidade e um plano de ação mais detalhado para fazer a estratégia sair do papel e se transformar em resultados em benefício da sociedade. Isso só será possível com uma forte parceria entre o governo e os diversos atores do mercado, setores que serão beneficiados pelo uso massivo da Inteligência Artificial. Tudo isso, claro, com os devidos cuidados para que a pessoa humana seja apenas um beneficiário e não uma vítima dessa revolução digital.