Um juiz brasileiro está usando o ChatGPT para comparar decisões e entender como pode ser mais preciso. Um product manager escreveu a descrição de um produto e perguntou ao sistema qual tipo de métrica poderia incluir em sua pesquisa. Um CTO pediu dicas para uma conversa de 30 minutos com o VP da área de data science. Um engenheiro de vendas não cria mais apresentações sem a ajuda do programa. Eles não são casos isolados.
Quase 30% dos cerca de 4,5 mil profissionais entrevistados em janeiro deste ano pela Fishbowl, plataforma do Glassdoor, disseram que já usaram o ChatGPT ou outro programa de Inteligência Artificial em seu trabalho. Erik Brynjolfsson, diretor do laboratório de economia digital de Stanford, afirmou em entrevista à Bloomberg, que o ChatGPT “eliminará muita rotina e trabalho mecânico e deixará as pessoas trabalharem com mais criatividade”. Mas sobre qual trabalho criativo estamos falando? Quais as principais competências que todos nós devemos desenvolver nessa nova era?
O contexto é tudo
A primeira delas é ter em mente que trabalhar com essas novas ferramentas não é deixá-las fazer o trabalho sozinho. Todos os profissionais que citei têm um ponto em comum. Para obter resultados eficazes e inteligentes, eles já entenderam que é preciso ser específico, não se encantar pela primeira resposta que a Inteligência Artificial traz e interagir para refinar os resultados.
Lembre-se de que o ChatGPT, por exemplo, pode acessar uma imensa base de dados na internet. Diferentemente de um chatbot, geralmente programado a partir de perguntas previsíveis, você precisa dar a ele os comandos mais apropriados para acessar as informações que busca. Nesse novo cenário, o jeito que formulamos uma premissa, que validamos uma hipótese, que direcionamos o trabalho da IA conta. E muito. Não à toa, já vemos a ascensão de um novo tipo de engenheiro.
Os engenheiros de prompt
Há vagas abertas em várias empresas do mundo, mas uma em São Francisco (EUA), está pagando até US$ 335 mil por ano para um ‘engenheiro de prompt’. Sua função? Projetar e criar prompts para sistemas baseados em IA. Um prompt é uma mensagem que um sistema de IA apresenta. O usuário então fornece uma resposta, que o sistema analisa para gerar um insight relevante e útil. Sam Altman, CEO da OpenAI, empresa que desenvolveu o ChatGPT, tuitou no dia 20 de fevereiro: “Escrever um ótimo prompt é uma habilidade incrivelmente diferenciada atualmente.”
Com conhecimentos de Processamento de Linguagem Natural (NLP) e de aprendizado de máquina, esses engenheiros também estão sendo requisitados para desenvolver e otimizar sistemas de IA. E para criarem, como o anúncio da vaga apresenta, ‘um conjunto de tutoriais e ferramentas interativas que ensinem a arte da engenharia rápida aos nossos clientes’. E, para isso, precisam mais do que nunca de soft skills. Entre os pré-requisitos listados: “ser um excelente comunicador”, “adorar resolver quebra-cabeças” e “ter menos habilidades básicas de programação e mais pensar criativamente sobre os riscos e benefícios da adoção das novas tecnologias.”
O Cohere, um dos primeiros desenvolvedores de ferramentas para processamento de linguagem natural, tem um guia de atuação para engenheiros de prompt. Organizações como Instituto Brasileiro de Cibersegurança e escolas digitais como a Udemy já oferecem cursos especializados. E no vasto mundo da internet e dos profissionais freelancers e autônomos tem gente compartilhando planilha do Excel com centenas de prompts para venda.
Shane Steinert-Threlkeld, professor assistente de linguística que estuda Processamento de Linguagem Natural na Universidade de Washington, comparou os engenheiros de prompt aos “especialistas em busca” [search specialists] dos primeiros dias do Google. Eram eles quem desenvolviam técnicas para encontrar os resultados perfeitos. Mas fez uma ressalva: conforme o tempo passou e a adoção pública do Google aumentou, esse emprego tornou-se quase obsoleto. E esse é um grande ponto. Vejo com grande entusiasmo essa nova profissão – mas ela é só a ponta do iceberg.
O iceberg
Um relatório recente de Stanford aponta que os modelos de Inteligência Artificial já são milhões de vezes mais treinados do que os disponíveis há 10 anos. O investimento privado global em IA ultrapassou US$ 90 bilhões em 2022 – valor 18 vezes maior do que o realizado em 2013. A proporção de empresas adotando IA em 2022 mais do que dobrou desde 2017, de acordo com dados da McKinsey citados no relatório. Líderes de negócios já percebem redução significativa de custos e aumento de receita – e a pesquisa de IA cresce em todos os setores. O número total de publicações mais do que dobrou desde 2010. Mas o grande avanço para mim é ver como os sistemas de IA estão se tornando mais flexíveis.
“Tradicionalmente, os sistemas de IA tiveram um bom desempenho em tarefas restritas, mas têm lutado para realizar tarefas mais amplas. Modelos lançados recentemente desafiam essa tendência: BEiT-3, PaLI e Gato, entre outros, são sistemas cada vez mais capazes de navegar por várias tarefas”, afirma Stanford.
A criatividade para conectar tudo
Com suas últimas atualizações, o ChatGPT abriu espaço para plugins de terceiros, ajudando a realizar tarefas específicas diretamente do navegador do usuário. É possível, por exemplo, pedir uma receita para o almoço de domingo e receber do sistema um link direto para o WolframAlpha para calcular as calorias da refeição. Outro exemplo, muito mais interconectado, é o que envolve a criação de um avatar pessoal animado. Algo que qualquer pessoa pode fazer, com rapidez e facilidade, sem saber programar. Essa invenção é acessível hoje quando conectamos diversas ferramentas de IA disponíveis.
Este vídeo, por exemplo, mostra como criar um avatar animado unindo quatro diferentes delas. Com o Midjourney, o usuário interage com um bot para gerar imagens personalizadas. O ChatGPT criará o roteiro de um vídeo com base no que você quer que o seu avatar diga e faça. Já o EvenLabs vai criar a voz que narrará o seu avatar. Leve a imagem feita no Midjourney, o áudio gerado na ElevenLabs, a partir do roteiro criado pelo ChatGPT, ao D-ID e você terá seu avatar falando, com movimentos realistas, mexendo a boca, fazendo expressões, falando o que você deseja. Salve e envie para quem quiser. Imagine o potencial de criarmos, daqui para frente, experiências hiperpersonalizadas. Seja para nosso dia a dia, seja como executivo, profissional ou para o nosso negócio.
O que é arte?
Diante de tantas ferramentas novas disponíveis, a própria discussão sobre o que é arte ganhou novos contornos. No fim de 2022, uma das vencedoras da feira anual de arte do Colorado (EUA) foi uma pintura criada por Inteligência Artificial. O resultado gerou polêmica. E gerou também revolta.
O artista Jason M. Allen disse que deixou claro que o seu trabalho foi criado usando IA (no caso, a Midjourney) e que ele não enganou ninguém. O caso reflete um questionamento que muita gente vem fazendo. E que não envolve somente o que a IA é capaz de fazer e onde pode nos levar. Mas, sobretudo, como vamos reavaliar o que entendemos por arte, por criatividade, por trabalho coletivo e inteligente. A IA finalmente entrou em sua era de implantação. Ao longo de 2022 e do início de 2023, novos modelos de grande escala foram lançados. Esses modelos, como ChatGPT4, Stable Diffusion, Whisper e DALL-E 2, são capazes de realizar tarefas cada vez mais amplas. Superam o estado da arte, quebram premissas antigas ou inovações recentes. Para o bem e para o mal.
Há desafios éticos na aplicação de tudo isso e no trabalho conjunto com a IA. É sempre bom e importante lembrar. Também continuamos, talvez até mais, a encarar o risco da divulgação de informações falsas, de produtos tendenciosos, de serviços enganadores. Combater esse lado sombrio é tão importante quanto saber aplicar tudo de positivo e criativo que estamos ganhando acesso. A boa notícia é que as competências que precisamos desenvolver são as mesmas para estas duas missões: pensamento crítico e criatividade.
Este artigo foi produzido por Guga Stocco, membro do Conselho de Administração do Banco Original, Totvs, Vinci e Grupo Soma, fundador da Futurum Capital e colunista da MIT Technology Review Brasil.