Novas tecnologias abrem espaço para a voz do paciente no SUS
Biotech and HealthPatient Voice

Novas tecnologias abrem espaço para a voz do paciente no SUS

Processo de tomada de decisão em saúde ganha novos contornos, e autoridades consideram a visão de quem convive com as doenças para trazer maior equilíbrio às definições.

O que você encontrará neste artigo:

A participação do paciente na decisão sobre medicamentos
A importância da audiência pública e do paciente-testemunho
Como tornar o processo mais transparente para a sociedade

“Comer era uma das únicas independências que me restavam. A AME [Atrofia Muscular Espinhal] já tinha me levado tantas coisas, que não era justo tirar um dos meus maiores prazeres. Graças à medicação e ao acompanhamento multidisciplinar, eu já não tomo mais água com espessante e já faz um ano que eu não tenho pneumonia. Para nós, pacientes com AME mais velhos, acompanhar o avanço da ciência e ele não nos ser acessível é uma tristeza indescritível.”

A voz firme da paraibana Renally Vidal, aos 25 anos de idade, atravessou centenas de quilômetros que separam Campina Grande de Brasília. Por meio de uma videoconferência realizada no dia 19 de março de 2021, a paciente diagnosticada com AME tipo 2 fez seu discurso direcionado a autoridades presentes virtualmente, incluindo o responsável pela decisão final sobre a oferta do medicamento ao qual ela se referia em sua fala.

A Comissão Nacional de Avaliação de Incorporação de Tecnologias de Saúde no SUS (Conitec) é o órgão de assessoramento que avalia quais produtos e medicamentos são ofertados no sistema público, com o objetivo de fazer uma recomendação técnica à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (SECTICS), responsável pela publicação da decisão (1). Foi a primeira vez na história do SUS que o recurso da audiência pública (2) – previsto como elemento opcional na legislação em vigor – foi utilizado pelo ministério da saúde, representando um marco na etapa de avaliação de tecnologias em saúde. Antes, as contribuições chegavam apenas por escrito, por meio de consultas públicas, que continuam sendo um instrumento obrigatório do processo. A gravação da audiência está disponível no canal da Conitec no YouTube, onde também são divulgados os vídeos das reuniões do colegiado desde julho de 2020 (3).

A AME é uma doença rara, degenerativa e progressiva que afeta os neurônios motores, causando dificuldades para respirar, engolir e limitações motoras. Sua forma mais prevalente é o tipo 1, com início até seis meses de idade. Os tipos 2 e 3 são considerados de início tardio, entre seis e 18 meses e após esse tempo, respectivamente (4). O primeiro medicamento aprovado para o tratamento de AME no país foi incorporado ao SUS em 2019, mas apenas para o primeiro grupo (5).

Para mitigar esse desequilíbrio e contemplar os pacientes excluídos, o Ministério da Saúde tentou implementar um projeto-piloto de compartilhamento de risco (6), em que o Executivo e a indústria desenvolvedora dividiriam responsabilidades considerando parâmetros pré-definidos – uma inovação no país que já havia sido testada por outros países, mas enfrentou divergências técnicas que impediram sua plena execução no Brasil.

“Quem tem AME tem pressa” é uma frase de impacto adotada pela comunidade. Na mesma audiência pública de 2021, a paciente Laissa Pollyana Guerreira da Silva V. Teixeira, pôde fazer seu relato pessoal sobre a progressão da doença. Em outubro de 2014, ela descobriu que tinha AME; em dezembro de 2014, já fazia uso de cadeira de rodas.

“Com cinco anos de idade, eu vivia como uma pessoa normal. Aos oito anos, descobri que tinha AME. No mesmo ano, fiquei na cadeira de rodas. Tentei ficar de pé, com a ajuda de aparelhos, mas não consegui. Depois disso, meu corpo foi encurtando, perdendo a musculatura e vários outros tipos de força. O medicamento traz uma condição de vida melhor para quem tem AME 2 e 3. O medicamento faz efeito. Eu imploro, por favor, não nos deixem morrer, não nos deixem perder a nossa esperança.”

O apelo de Aline Giuliani, presidente do Instituto Viva Íris, também foi proferido na audiência (3). Com um ano e oito meses, sua filha recebeu o diagnóstico de AME, com prognóstico de poucos anos de vida. Assim como Renally, ela acompanhou o desenvolvimento de medicamentos inovadores, mas precisou lidar com a frustração da oferta limitada após a aprovação do primeiro tratamento no Brasil.

“Eu vi minha filha ficar em pé, eu vi a minha filha deixar de ficar em pé. Eu vi minha filha numa UTI, enfrentar pneumonias, eu trouxe para casa um respirador quando ela passou a precisar dele. Eu entreguei minha filha a um centro cirúrgico para receber hastes e parafusos. Eu fiz tudo o que eu podia. Hoje, a Iris tem 16 anos de idade e há quatro anos a gente luta para ter acesso a esse tratamento.”

“O que a gente vê ainda é uma infinita luta para mostrar que a vida dessas pessoas importa. Como membro dessa comunidade, como mãe de uma paciente com AME, hoje eu quero dizer que o medicamento é, sim, eficaz. Vocês precisam olhar para os pacientes. Eles são a resposta”, complementa.

Os apelos feitos pela comunidade de pacientes e por especialistas na audiência pública resultaram na revisão do posicionamento inicial da Conitec: a recomendação do órgão, antes contra a contemplação dos tipos 2 e 3, foi positiva para a oferta do medicamento para pacientes com o tipo 2, com diagnóstico até os 18 meses de idade e conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) definido pelo Ministério da Saúde (5).

O caso da AME no SUS é emblemático, consolidando-se como um exemplo de que o desenvolvimento de soluções inovadoras, combinado à organização da sociedade civil, impulsiona adaptações a processos já estabelecidos e consolidados no âmbito da saúde pública. Em 2021, a Conitec completava 10 anos de existência (7) e, na ocasião da audiência pública, já havia sido anunciado o “paciente-testemunho”, um novo recurso que levou os relatos de pacientes ou representantes para dentro das reuniões técnicas da comissão, oferecendo uma nova oportunidade de escuta (8).

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o ex-secretário de Ciência e Tecnologia e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Denizar Vianna, menciona que a ampliação da participação do paciente na tomada de decisão é uma tendência. Ele foi responsável pela tentativa de implementação do projeto-piloto para atender os casos tardios de AME no SUS.

“Vejo isso de uma maneira muito positiva. A participação do paciente é primordial para orientar a tomada de decisão. Você legitima o processo dando espaço para essa voz. São eles que podem compartilhar a história natural das doenças, as necessidades não atendidas. Cada vez mais, há uma preocupação em analisar todos esses dados”, avalia.

Reconhecido o aprimoramento do processo nos últimos anos, representantes da sociedade civil ainda pleiteiam mais espaço na busca por políticas públicas mais efetivas e um diálogo proativo com as autoridades, avalia Diovana Loriato, presidente do Instituto Nacional de Atrofia Muscular Espinhal (INAME).

“Há um distanciamento muito grande, como se eles [tomadores de decisão] estivessem no castelo e a gente estivesse no feudo. Há desafios de implementação muito grandes, e sutilezas que implicam em conclusões que podem ser muito boas ou muito ruins para os pacientes”, afirma.

Em uma escala de zero a 100, ela diria que a efetividade dos instrumentos disponíveis está no meio do caminho. “O peso que é dado à voz do paciente ainda não é o ideal, e eu sinto muito a falta de instrumentos de controle social sobre as fases do rito, do momento em que o medicamento é incorporado até chegar ao paciente”, explica a presidente do INAME. “Poderia existir, por exemplo, uma sinalização no site da Conitec indicando prazos ultrapassados. Isso deveria ser mais transparente para a sociedade, para que as pessoas pudessem perceber e cobrar”, sugere.

Em 2025, embora parte dos pacientes continue sem acesso aos tratamentos existentes, três medicamentos para AME estão previstos no SUS, sendo um deles uma terapia gênica. Nas duas decisões mais recentes, pacientes ou representantes puderam ser ouvidos nas reuniões da Conitec, por meio do paciente-testemunho. A terapia gênica foi incorporada em 2022, condicionada a um acordo de compartilhamento de risco que ainda está em fase de elaboração (9).

Na perspectiva do paciente, que é o público final de quem desenvolve medicamentos inovadores, ainda há insatisfação sobre a limitação do acesso aos tratamentos. Hoje, porém, com a modernização do rito público, há mais transparência e participação social no processo. De 2020 a 2025, a Conitec abriu 271 chamadas públicas para o paciente-testemunho (10). O surgimento de novas tecnologias em saúde não só tem promovido alterações importantes na trajetória de pacientes antes desassistidos, como acabou abrindo caminhos para que suas angústias sejam consideradas pelos tomadores de decisão.

Mini Banner - Assine a MIT Technology Review

Referências

1. BRASIL. Lei n.º 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do SUS. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.htm. Acesso em: 21 jan. 2025.

2. BRASIL. Audiência pública debate incorporação do Nusinersen para AME dos tipos 2 e 3. Ministério da Saúde, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/audiencia-publica-debate-incorporacao-do-nusinersena-para-ame-dos-tipos-2-e-3. Acesso em: 21 jan. 2025.

3. CONITEC. Reunião Conitec 2021 – Audiência Pública – Nusinersen. YouTube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ajNg560YwQs&t=5423s. Acesso em: 21 jan. 2025.

4. KEINATH, M. C.; PRIOR, D. E.; PRIOR, T. W. Spinal Muscular Atrophy: Mutations, Testing, and Clinical Relevance. Applied Clinical Genetics, v. 14, p. 11-25, 2021. doi: 10.2147/TACG.S239603.

5. BRASIL. Quem tem AME agora tem Spinraza. Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2019/outubro/quem-tem-ame-agora-tem-spinraza. Acesso em: 21 jan. 2025.

6. BRASIL. Portaria n.º 1.297, de 11 de junho de 2019. Institui projeto piloto de acordo de compartilhamento de risco para incorporação de tecnologias em saúde, para oferecer acesso ao medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) tipos II e III no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2019/prt1297_12_06_2019.html. Acesso em: 3 fev. 2025.

7. CONITEC. Conitec completa 10 anos e aprimora processo de avaliação em tecnologias em saúde no SUS. Ministério da Saúde, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/noticias/2021/abril/conitec-completa-10-anos-e-aprimora-processo-de-avaliacao-em-tecnologias-em-saude-no-sus. Acesso em: 21 jan. 2025.

8. CONITEC. Paciente-testemunho: chamadas públicas já estão disponíveis para inscrição de usuários do SUS. Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/noticias/2020/outubro/paciente-testemunho-chamadas-publicas-ja-estao-disponiveis-para-inscricao-de-usuarios-do-sus. Acesso em: 21 jan. 2025.

9. BRASIL. Ministério da Saúde assina protocolo para acordo inédito de incorporação do medicamento para AME. Ministério da Saúde, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/ministerio-da-saude-assina-protocolo-para-acordo-inedito-de-incorporacao-do-medicamento-para-ame. Acesso em: 21 jan. 2025.

10. CONITEC. Chamadas públicas encerradas – Perspectiva do Paciente. Ministério da Saúde, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/conitec/pt-br/assuntos/participacao-social/perspectiva-do-paciente/chamadas-publicas-encerradas-perspectiva-do-paciente. Acesso em: 21 jan. 2025.

Biogen-258249-Janeiro/2025. Material de propriedade da MIT Technology Review Brasil com apoio da Biogen Brasil Produtos Farmacêuticos Ltda. Reprodução total ou parcial sem autorização expressa é proibida. Material não promocional destinado a público amplo.

Último vídeo

Nossos tópicos