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Você já ouviu falar de distrofia muscular de Duchenne? Trata-se de uma condição genética degenerativa e incapacitante, com expectativa de vida abaixo dos 20 anos de idade, se não tratada. E de amiloidose hereditária mediada por transtirretina? Ela causa a deposição de fibras insolúveis nos tecidos de vários órgãos, evoluindo de formigamentos e dormências até a restrição à cadeira de rodas ou ao leito, além de diversos outros sintomas graves. Os nomes síndrome de quilomicronemia familiar e deficiência de descarboxilase L-aminoácidos aromáticos soam familiares?
Esse são exemplos de doenças com registro de ocorrência no Brasil e fazem parte de um universo estimado entre 6 mil e 8 mil patologias consideradas raras no mundo. De acordo com a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), doenças raras são aquelas que afetam até 65 a cada 100 mil indivíduos. Pesquisadores consideram a existência de cerca de 300 milhões de pessoas com doenças raras no mundo e de 40 a 50 milhões, na América Latina.
Histórica e politicamente a América Latina sempre teve dificuldades de se posicionar e avançar de maneira coesa, e o cenário se repete considerando a assistência disponível para diagnóstico e tratamento de pessoas com doenças raras na macrorregião. Embora os países vizinhos tenham desafios semelhantes, existe um retrato fragmentário. Nascer com uma doença rara no Brasil é diferente de nascer com a mesma condição no Chile.
Esse cenário foi encontrado na pesquisa realizada pela ORIGIN Health, que teve o objetivo de fazer um mapeamento sobre o manejo das doenças raras em oito países latino-americanos: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai. Para tanto, foi feito um levantamento sobre dados epidemiológicos, informações sobre padrão de tratamento, e de políticas de registro, precificação e reembolso. Além disso, foi averiguada a contribuição de sociedades médicas, de associações de pacientes e de outros atores no desenvolvimento e na execução de políticas públicas regionais.
Em um primeiro momento, foram realizadas entrevistas estruturadas com representantes de todos os países pesquisados, e o conteúdo foi transformado em um panorama comparativo considerando uma pontuação em três categorias de análise: legislação, engajamento e acesso. Depois, os países foram agrupados conforme o nível de maturidade para o desenvolvimento de políticas públicas em: estágio inicial, intermediário ou avançado.
O resultado foi este: Brasil, Argentina e Colômbia foram considerados países em estágio avançado; Peru, México e Uruguai estão no nível intermediário; enquanto Equador e Chile ficaram na classificação inicial.
A partir da pesquisa, foi possível identificar as diferentes abordagens em relação às pessoas com doenças raras, desde os critérios utilizados para designá-las até as medidas efetivas para garantir o acesso aos tratamentos após o diagnóstico. Embora tenham sido observados avanços nos últimos anos, ainda há uma grande disparidade entre os países no que diz respeito ao desenvolvimento e execução de políticas públicas para o cuidado dessa população.
O Brasil como farol
Com a maior pontuação na pesquisa (20 pontos), o Brasil se firma como uma referência para os demais países da América Latina. Em 2024, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras (Portaria 199/2014) completou 10 anos. Embora tenham sido mapeados avanços ao longo dessa década, algumas limitações prejudicam a sua efetividade.
Entre as melhorias reconhecidas, especialistas destacam que por meio da política foi possível reconhecer os serviços existentes com consultas e equipes multidisciplinares, o que facilitou a remuneração para esses espaços, sem, contudo, ter conseguido reduzir o tempo de espera para diagnóstico de doenças raras. Segundo dados do Ministério da Saúde, hoje o Brasil conta com 31 serviços cadastrados, a maioria concentrada nas regiões Sudeste (12), Sul (7) e Nordeste (7).
Para as fontes ouvidas na pesquisa, dar mais efetividade à política nacional passa necessariamente pela implementação de uma série de ações, tais como: a disponibilização de teleconsulta nos centros de referência; a obrigatoriedade de equipes multidisciplinares para os atendimentos; e a realização de um “censo das doenças raras” para promover o entendimento, a visibilidade e a previsibilidade para a criação de políticas específicas para a coordenação dos centros.
Outro marco importante é a Lei 14.154/21, que amplia para 53 o número de doenças detectáveis no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), conhecido como “teste do pezinho”. Porém, o cumprimento da nova legislação ainda não tem sido uma articulação efetiva em todos os estados brasileiros. Por enquanto, o que se observa são ações isoladas como as que ocorrem no Distrito Federal e na cidade de São Paulo, utilizando recursos próprios. A lei estabelece etapas para a ampliação do teste, mas não determina um prazo para que todos os estados estejam devidamente adequados.
No quesito acesso, o Brasil foi o único país a alcançar pontuação máxima, com instrumentos existentes na área de registro sanitário, registro de preço e reembolso. No entanto, entrevistados durante a pesquisa apontaram para a necessidade de aprimoramento do modelo atual usado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), com objetivo de fazer com que os tratamentos estejam disponíveis com mais agilidade para os pacientes.
Cenário fragmentado
No grupo intermediário, há uma diferença relevante entre os países: enquanto o Peru tem a soma máxima (14 pontos), o Uruguai fica na soma mínima (8 pontos). O Uruguai não possui uma lei específica que estabeleça diretrizes nacionais para as doenças raras, por outro lado, apresenta alto engajamento da sociedade civil e regras específicas para reembolso. Ao contrário, o Peru possui uma legislação que contempla as doenças raras, mas carece de maior engajamento da sociedade civil. A pesquisa constata que, em diversos países, as faltas são justificadas por descontinuidade em trabalhos iniciados devido a mudanças de governo.
No grupo inicial, o Chile apresenta desempenho mais baixo (3 pontos). Em entrevista para a pesquisa, a médica geneticista Rosa Pardo Vargas, especialista em diagnóstico de doenças raras, anomalias congênitas, doenças hereditárias e aconselhamento genético, contou que existe uma dificuldade enorme do ponto de vista de diagnóstico no país, que envolve tanto um desafio tecnológico quanto financeiro — a nível governamental e individual, já que a falta de regulamentação faz com que o custo dos exames seja direcionado aos pacientes: “São poucos os testes que possuem códigos aqui no país para conseguir que tanto o sistema público quanto o privado cubram seus benefícios. Os custos têm que ser cobertos basicamente pelos pacientes, então isso também aumenta a desigualdade”.
No grupo avançado, os porta-vozes manifestam a coordenação dos sistemas de saúde fragmentados e o pagamento de tratamentos como principais desafios. Enquanto na Argentina a situação econômica tem grande impacto na garantia de acesso a tratamentos, na Colômbia a avaliação do diretor-executivo da Federación Colombiana de Enfermedades Raras, Diego Fernando Gil Cardozo, revela que, além da execução das leis, uma das principais barreiras é o custo de um paciente raro para o sistema, sugerindo a busca por alternativas de financiamento para o cumprimento da legislação existente.
“A legislação colombiana é muito semelhante ao padrão das políticas públicas sobre doenças raras na Europa. Somos muito bons em fazer leis, mas somos ruins em implementá-las. Temos leis para tudo: para o rastreio neonatal; para o registo dos pacientes; para o financiamento; mas na realidade é bastante trabalhoso traduzir isso em melhores condições de acesso aos pacientes”, analisa.
Diego Cardozo também está a frente da ERCAL (Enfermedades raras del Caribe y América Latina), entidade sobre o tema para a América Latina, e compartilhou em uma entrevista exclusiva para a MIT Technology Review Brasil sua perspectiva sobre os desafios comuns e caminhos possíveis para o avanço no campo das doenças raras.
“Como estratégia, eu diria que o primeiro passo é fortalecer o relacionamento de todos os stakeholders em nível regional. Não podemos seguir trabalhando de maneira fragmentada. É preciso que as organizações e entidades de pacientes, os governos e associações científicas dos países latino-americanos estejam articulados. O Brasil está tendo importantes avanços, mas esses avanços precisam ser compartilhados. É importante que o caminho que traçou o Brasil, a Colômbia e a Argentina sejam conhecidos pelos outros países, até para que possamos ser mentores desses outros países. Outra coisa importante: há países que estão à frente em termos de conhecimento científico e de advocacy com as associações de pacientes, e esses países precisam ajudar a formar líderes em outras regiões. Se não existe um líder na área científica, é muito difícil avançar e conseguir o convencimento dos envolvidos nas tomadas de decisão, até porque os formuladores das políticas públicas precisam desse respaldo da área científica”, analisa Diego.
Em discussão
A pesquisa foi divulgada na Special Edition “Doenças Raras na América Latina”, com patrocínio da PTC Therapeutics, lançada em um evento em Brasília no mês de abril. Na ocasião, importantes atores foram convidados para discutir os dados levantados e propor soluções. O conteúdo está disponível na íntegra, no canal do Youtube da MIT Technology Review Brasil.
Uma das principais reflexões foi sobre o acesso ao diagnóstico correto de maneira ágil, um gargalo comum a todos os países, independentemente do nível em que eles se encontram de acordo com a pesquisa, visto que a jornada dos pacientes pode durar anos. Para a médica geneticista e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo, Carolina Fischinger, a tecnologia diagnóstica evoluiu muito, mas ainda é preciso encontrar maneiras para garantir que esses avanços estejam disponíveis de maneira equânime.
“A questão do acesso ao diagnóstico já foi uma barreira muito maior quando há 25 anos não havia exames especializados, o diagnóstico era clínico e o paciente ficava à deriva. A família vinha, a gente não sabia o que dizer para ela e pedia uma ressonância. Hoje, a tecnologia nos trouxe para outro patamar, mas é preciso juntar a tecnologia com a realidade. Quando conseguimos fazer isso, avançamos de uma forma mais rápida. Temos que ter acesso, por exemplo, a um exame que consiga revelar mais rapidamente o diagnóstico, porque isso reduz muito a jornada do paciente”, diz a médica.
Presente no debate, o coordenador-geral de Doenças Raras no Ministério da Saúde, Natan Monsores, explicou que o esforço do Executivo está sendo direcionado para a identificação de pontos críticos por meio da atuação de grupos de trabalho, reuniões em câmaras técnicas e assessoria de especialistas. O objetivo é encontrar soluções para aumentar a capacidade instalada e a sensibilidade do sistema de saúde para pessoas com doenças raras.
“O movimento que estamos fazendo enquanto Ministério da Saúde é primeiro entender o alcance da política pública. No ano passado [2023], nós conversamos com todos os serviços, mapeamos as dificuldades, os problemas compartilhados. Ainda temos problemas sérios, por exemplo, com a jornada do paciente que passa por uma lógica de saúde que é a lógica da regulação. Então, como eu faço para regular um paciente que tem uma condição rara específica dentro do sistema de saúde? É a doença rara em si ou eu uso marcadores como gravidade, necessidade de assistência? Essa é uma discussão. Estamos avaliando o que temos de marcos positivos e desafios”, afirma.
No SUS, segundo Monsores, foi iniciado um movimento de investimento na capacitação de profissionais com o objetivo de instruir profissionais da atenção básica para que eles consigam dar o encaminhamento correto dentro do sistema.
A pesquisa da ORIGIN Health, deixa claro que não há soluções simples para um desafio tão complexo como o manejo das doenças raras na América Latina. Entretanto, iniciar uma trajetória de mudanças e melhorias passa inevitavelmente por entender as dores dos pacientes e de seus familiares, assim como as dificuldades dos próprios sistemas de saúde dos países.