Um novo tom ao “Open Health” no Brasil
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Um novo tom ao “Open Health” no Brasil

País caminha em direção à interoperabilidade de dados em saúde e já há ampliação de projetos em curso nos sistemas público e privado, mas ainda existe um longo percurso pela frente.

Com os recentes avanços na digitalização da saúde, iniciativas que maturaram por anos, tanto no sistema público quanto no sistema privado, começam a ser ampliadas e dão um novo tom à proposta de “Open Health” ventilada anteriormente no Brasil. Globalmente, o país está em posição de atraso, mas começa a dar os primeiros passos rumo à interoperabilidade de dados. A importância do movimento para o aprimoramento e a busca por sustentabilidade do sistema é reconhecida, mas também há desafios claros pela frente, como a necessidade de proteção de dados pessoais, heterogeneidade dos serviços de saúde em operação e baixa maturidade digital do setor. 

Mais de uma década atrás, no Cariri, localizado interior do Ceará, surgia o piloto de um projeto que pode se tornar o maior modelo de interoperabilidade de dados em saúde na iniciativa privada brasileira. Embora ainda seja embrionária frente ao que se propõe, a rede de troca de informações tem uma meta ousada: a de conectar os dados de mais de 20 milhões de beneficiários de planos de saúde no país e, quem sabe, também se conectar com o Sistema Único de Saúde (SUS) no futuro.  

Quando tudo começou, em 2011, os principais obstáculos para o sucesso da iniciativa foram as poucas oportunidades de mercado e o desejo precoce de ampliação do projeto, iniciado nas regiões do Cariri e de Sobral, para todo o território nacional. Quem conta a história é próprio idealizador da proposta, o médico Darival Bringel de Olinda, presidente da Unimed Ceará.  

“Não evoluiu bem por alguns fatores: primeiro, pelo mercado pequeno para a ousadia do projeto; segundo, pela nossa megalomania de querer implementar um projeto dessa magnitude no estado do Ceará e extrapolar para o Brasil. Não tivemos êxito”, lembra. 

Anos mais tarde, em 2019, o projeto ganhou fôlego com o apoio da Federação das Unimeds do Estado de São Paulo. Assim, com a formação de uma nova sociedade, nasce a chamada Interall. A empresa foi designada responsável por administrar todos os dados clínicos integrados do Sistema Unimed – que concentra o maior número de beneficiários de planos de saúde no país. Atualmente, a Interall tem um repositório de informações de quase 1,5 milhão de pacientes, que já são acessadas por mais de mil médicos autorizados. 

“Qual é a nossa meta? É ousada. É implantar o registro eletrônico de saúde para 20 milhões de clientes do Sistema Unimed. Adicione a esses números todos os hospitais, clínicas e prestadores de serviço credenciados. Nós teremos, em um futuro breve, o maior banco de dados privado de saúde da América Latina. O objetivo é conhecer todos os nossos doentes crônicos, para trabalhar com esse doente não só pelo acesso ao nosso serviço, mas para fazer parcerias com universidades, com o sistema público”, afirma Darival.  

Questionado sobre o prazo para isso acontecer, o gestor avaliou que se trata de um momento de aprendizado. “Existem algumas barreiras, tanto na área da saúde quanto por parte do cidadão — aspectos culturais e ideológicos. A partir do momento em que há 20 milhões de brasileiros que confiam nos nossos serviços, nós iniciamos um processo de aprendizado mútuo”. 

A Interall é inspirada no modelo de negócios da iniciativa norte-americana Healthix e sua sustentabilidade financeira é baseada em uma assinatura mensal em troca de uma série de serviços, como o acesso a ferramentas de análises, relatórios e gestão de linhas de cuidado. A Healthix, criada em 2005, integra mais de 8 mil organizações de saúde de um território que contempla Nova York, Long Island, Hudson Valley, partes de Nova Jersey e Connecticut.  

No cenário mundial, os Estados Unidos se posicionam como precursores na interoperabilidade de dados de saúde ao lado de países da Europa e do Canadá. Nos anos 2000, foi iniciado um movimento em resposta à fragmentação do sistema de saúde norte-americano, quando foram criadas as redes de troca de dados em saúde, denominadas Health Information Exchange (HIE). Mais recentemente, os EUA aprovaram o Trusted Exchange Framework and Common Agreement (TEFCA), que tem como objetivo criar uma “rede de redes” para apoiar a interoperabilidade a nível nacional, integrando as HIEs regionais. Surge o conceito das chamadas redes de troca de dados qualificadas, as Qualified Health information exchange (QHIN), que trocarão dados entre si de acordo com os padrões técnicos e políticos do TEFCA.  

Se comparado a esses modelos, o Brasil ainda caminha a passos bastante lentos, com poucas iniciativas, avalia a diretora de Desenvolvimento de Negócios em Saúde da InterSystems, Teresa Sacchetta.  

“No contexto da interoperabilidade de dados em saúde, o Brasil está em uma fase de desenvolvimento que pode ser comparada a estágios iniciais de locais que foram precursores nesse movimento. Embora o país tenha feito grandes progressos na digitalização de registros e na implementação de sistemas de informações em saúde, ainda está no processo inicial de adoção da interoperabilidade”, afirma. 

A análise feita por Teresa Sachetta a pedido da MIT Technology Review Brasil é a de que, nos Estados Unidos, houve forte protagonismo e incentivos financeiros do governo para impulsionar a interoperabilidade de dados. Mais de 20 anos atrás, o governo federal norte-americano criou as regras e forneceu incentivos à adoção de registros eletrônicos de saúde e, por consequência, à adoção de redes para a troca de informações. Em seguida, governos estaduais e municipais também entenderam que se tratava de um investimento estratégico, considerando os benefícios proporcionados ao sistema de saúde.  

“Uma grande diferença entre o ocorrido nos EUA é o incentivo por parte do governo americano. Resguardadas as diferenças entre os modelos de saúde, o mesmo ocorre na Europa, Canadá e Austrália. Com base nas experiências de outros países, em que troca de dados em saúde é comandada e financiada pelo governo, há fortes evidências sobre os seus benefícios e se comprovou que a tecnologia não é um entrave, os desafios são de outra natureza“, explica Sacchetta.  

Por outro lado, a executiva chama atenção para a própria dificuldade de as empresas brasileiras de saúde lidarem com os dados. “No sistema privado, a discussão é mais incipiente, o dado é visto como das próprias instituições e ninguém se sente estimulado a dar o primeiro passo nessa direção”, avalia. 

O artigo “Governança dos dados na saúde: uso e compartilhamento”, escrito por um grupo de trabalho da Comissão de Governança na Saúde do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), faz um resgate histórico sobre interoperabilidade de dados em saúde, abordando o funcionamento de redes como a Interall e a Healthix, além de trazer uma pesquisa qualitativa inédita feita a partir de entrevistas com executivos brasileiros. O material foi disponibilizado em primeira mão à MIT Technology Review Brasil.  

A vice-coordenadora da comissão do IBGC, Isadora Campos, autora do texto ao lado de Teresa Sacchetta, explica que o grupo começou a se debruçar sobre o tema quando, em fevereiro 2022, o então ministro da Saúde divulgou a intenção de implementar o “Open Health” no Brasil. Na ocasião, o debate público ficou marcado por diversas incertezas sobre o modelo proposto, o que acabou prejudicando a discussão. O principal intuito do trabalho, de acordo com ela, é democratizar o conhecimento sobre o tema. Também assinam o documento Ana Lin, Eliana Herzog, Paulo Cardoso e Ricardo Lamenza. 

“O que percebemos é que as pessoas estão em níveis muito diferentes de compreensão. Ainda existem muitos tabus sobre a interoperabilidade de dados. Então, o nosso desejo é trazer informação e desmistificar um pouco o tema, para que as pessoas entendam que as dificuldades já estão sendo ultrapassadas, que já existem iniciativas importantes. Não precisamos esperar que venha uma questão regulatória para dar um susto. Os elos da cadeia poderiam se aproximar e nós poderíamos fazer uma coisa realmente transformadora, que seria benéfica para o setor como um todo”, afirma Isadora.  

A visão do mercado privado 

Na pesquisa qualitativa desenvolvida pelo grupo do IBGC com 13 executivos brasileiros, a maior parte dos entrevistados diz que as empresas praticam governança de dados e que já utilizam a troca de dados internamente e entre empresas do mesmo grupo. Outra parte continua trabalhando com sistemas que não conversam entre si e há desconfiança em relação à qualidade do dado.  

Dentro do grupo dos que já utilizam a troca de informações em saúde, foram constatados resultados positivos, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista da gestão do cuidado do paciente. Na amostra dos que não utilizam, os entrevistados citam como motivo a falta de investimento, disparidade tecnológica e falta de incentivos.  

O grupo concluiu, após a pesquisa, que todos os entrevistados consideram a troca de dados na saúde um tema relevante para o aprimoramento do sistema. No entanto, a característica predominante nas empresas é a de querer o dado para si.  

“Quando exploramos questões sobre o estágio de maturidade da governança de dados e como praticam (os que praticam) interoperabilidade de dados em suas organizações, observamos que ainda há um longo caminho a ser percorrido. Mesmo em grandes empresas que afirmam que suas organizações realizam a governança de dados, e até nas que citam já possuir iniciativa de troca de dados de saúde de pacientes com outras empresas do grupo (ou com fonte pagadora), ainda não se evidenciam projetos concretos significativos ou iniciativas sobre a troca de dados com outras empresas. O principal motivo? Falta de alinhamento de incentivos e competição entre os diversos players (os dados do paciente ainda são tratados como propriedade da entidade e, portanto, considera-se que geram valor competitivo à mesma)”, diz um trecho do material. 

Interoperabilidade no sistema público  

A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), instituída em 2020, é a plataforma criada pelo governo federal para a interoperabilidade de dados em saúde no Brasil. A ambiciosa política pública tem como objetivo estabelecer a rede, até 2028, como uma plataforma digital de inovação, informação e serviços em saúde.  

Parte dos dados da RNDS é disponibilizada no ConecteSUS, um software que se tornou acessível ao cidadão em 2021. O uso do aplicativo durante a pandemia de Covid-19 foi, na avaliação de Teresa Sacchetta, um dos bons exemplos de interoperabilidade no país. Segundo ela, a plataforma exerceu papel crucial para a resposta à crise sanitária por meio do registro de casos suspeitos e confirmados, acompanhamento da evolução da doença e o monitoramento dos pacientes. 

 “Isso ajudou na identificação de surtos e no direcionamento de recursos para áreas com maior necessidade. A plataforma também foi usada para registrar informações sobre a vacinação”, lembra.  

Na atual gestão do Ministério da Saúde, houve a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital. Em julho de 2023, a pasta anunciou um convênio com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) para expandir o uso do Aplicativo de Gestão para Hospitais Universitários (AGHU) a mais de 3 mil hospitais de média e alta complexidade do SUS. O projeto também tem a participação do Ministério da Educação, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretariais Municipais de Saúde (Conasems).  

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o diretor de Tecnologia da Informação da Ebserh, Giliate Coelho, explica que o AGHU tem mais de 10 anos de uso está instalado nos 41 hospitais universitários vinculados à rede, com uma adesão acima de 96%. O sistema tem cerca de 57 mil usuários únicos e 3 milhões de acessos por mês. 

A ferramenta de gestão hospitalar tem 15 módulos que contemplam funções administrativas como controle de estoque, cadastro de agendas, de pacientes — e também tem as funcionalidades de um prontuário eletrônico, registrando a parte clínica do atendimento assistencial.  

“É um volume muito grande. Hoje, é o maior prontuário eletrônico do sistema hospitalar público do Brasil. Ele está maduro. A rede Ebserh é muito ampla e muito diversa, tem hospitais do interior do Rio Grande do Sul até a Região Amazônica. É um sistema muito adaptável a diferentes realidades, por isso foi tomada a decisão de disponibilizá-lo de forma gratuita para o SUS”, afirma.  

Atualmente, o AGHU é acessado por profissionais de saúde e gestores locais. Também é feito o monitoramento de mais de 20 mil itens da cadeia de suprimentos da rede Ebserh, além do controle da rede assistencial, como os dados de atendimentos e de ocupação de leitos. 

“A Ebserh também tem uma solução que integra os prontuários de toda a rede. Então, se você for atendido em Niterói e depois em Pernambuco, o médico consegue ter acesso ao seu histórico. E o paciente vai também acessar esse dado a partir de um aplicativo chamado HU Digital. Nesse aplicativo, além de poder ver seus dados clínicos de atendimento, ele também pode fazer gestão do compartilhamento de dados, ele tem acesso a consultas agendadas no sistema. Também está em fase de teste toda a parte de disponibilização de receita médica, atestados e exames”. 

Segundo o diretor de TI da Ebserh, a entidade ficará responsável por criar uma comunidade de desenvolvimento colaborativo, e o Ministério da Saúde atuará para que estados e municípios façam a instalação e executem o sistema. O passo seguinte, após o acordo formalizado em julho deste ano, é o lançamento de uma chamada pública para que qualquer órgão público possa aderir ao projeto. A instituição interessada será responsável pelo suporte local, e a Ebserh fornecerá os arquivos de instalação do sistema.  

Para o diretor, a principal dificuldade para a implantação do prontuário eletrônico em serviços público de saúde é a capacitação e a disponibilidade dos profissionais, principalmente porque o histórico do SUS é o de organização de dados em diferentes sistemas.  

“Demorou 10 anos para se consolidar em toda rede, mas foi uma questão de gestão. Decidiu-se, em determinado momento, que o AGHU teria que ser obrigatoriamente implantado e isso está, inclusive, no nosso contrato com os hospitais. É um desafio a implantação nos serviços de saúde, mas esperamos que estados e municípios tenham pessoas dedicadas a isso. A resposta do SUS, de maneira geral, tem sido muito positiva. Existe um clima de otimismo”, afirma.  

De acordo com Giliate Coelho, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foi uma das instituições que procurou a Ebserh espontaneamente para iniciar a instalação do sistema AGHU em 11 unidades assistenciais. 

A ideia é que, no futuro, o AGHU seja integrado à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) e tenha dados disponíveis no ConecteSUS. “Estamos em andamento para fazer essa conexão. E também estamos em andamento para fazer uma conexão com o e-SUS APS, que está presente em 40 mil unidades básicas de saúde. É o maior prontuário eletrônico da atenção básica do mundo. Ou seja, se você for atendido em uma unidade básica e depois no hospital universitário, você vai ter esse dado integrado”, explica Giliate.  

Na avaliação do diretor de TI, a criação da Secretaria de Transformação Digital da Saúde do ministério impulsionou o projeto e solucionou o problema de fragmentação de ações dentro da pasta. “Foi realmente um marco na história do SUS”, afirma.  

Próximos passos 

A discussão sobre interoperabilidade de dados no Brasil tem ganhado um novo tom. Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, divulgada nesta edição digital, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirma que o projeto em parceria com a Ebserh para unificar os sistemas dos hospitais públicos é uma das prioridades da gestão da Secretaria de Informação e Saúde Digital. Mas, além disso, o ministério lançará uma ferramenta chamada Índice de Maturidade Digital, com o objetivo de orientar o diagnóstico e a elaboração de planos de transformação digital nas esferas estaduais, municipais e distrital de saúde.  

“Tudo isso está incluído em uma ampla política que se desenha na secretaria e deve ser lançada em breve, chamada SUS Digital Brasil. O nosso objetivo é trazer a transformação digital para um SUS mais inclusivo e universal”, afirma a ministra.  

Para Teresa Sacchetta, da InterSystems, o país precisa acelerar as discussões sobre aspectos regulatórios, sobre a efetiva integração de sistemas distintos, incentivos financeiros, colaboração entre os elos da cadeia e a participação dos usuários. 

“É imprescindível desenvolver uma regulamentação clara para proteger a privacidade e a segurança dos dados, ao mesmo tempo que estimula e orienta a interoperabilidade. Além disso, apesar dos benefícios da troca de dados para a segurança e qualidade do cuidado, incentivos financeiros podem encorajar os prestadores de serviços de saúde, tanto do setor público quando do privado, a avançarem na interoperabilidade, acelerando sua adesão e uso generalizados”, avalia.  

A executiva reforça que existem vários modelos de financiamento aplicáveis. “Esses incentivos podem vir do governo, de serviços privados e de outros interessados, como fontes pagadoras, que reconhecem os benefícios da interoperabilidade trazendo redução de desperdícios, transparência e eficiência para o sistema de saúde, além da qualidade e segurança do atendimento. Podem ocorrer na forma de acordos operacionais, novos modelos de negócios ou ainda por meio de parcerias entre o setor público, privado e acadêmico, buscando, de forma conjunta e envolvendo as distintas partes interessadas, incluindo a sociedade. O diálogo aberto é o caminho para viabilizar a interoperabilidade que respeite as particularidades do nosso país e os diferentes interesses dos elos da cadeia de saúde”, finaliza.  

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