Um cão-guia robô, um braço-máquina e um software que humaniza voz. O que eles têm em comum?
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Um cão-guia robô, um braço-máquina e um software que humaniza voz. O que eles têm em comum?

Até 2050, a estimativa da OMS é de que 3,5 bilhões de pessoas precisem de produtos para assistência e reabilitação, mas o crescimento de patentes de tecnologias assistivas emergentes não acompanha a demanda.

Imagine que estamos em um museu. Uma pessoa com deficiência visual pode transitar entre quadros e esculturas acompanhada por um cão-guia capaz de descrever detalhadamente cada obra de arte, permitindo uma experiência imersiva por meio da audição. A cena poderá virar realidade no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, a primeira instituição a receber a doação de uma unidade da Lysa, um cão-guia robô. Informações que promovem acessibilidade em arte, e não apenas mobilidade, estão sendo embarcadas na tecnologia, que será disponibilizada ao público em breve.  

Provavelmente, a imagem da Lysa formulada pelo cérebro, ao imaginar um cão-guia, é diferente da realidade proporcionada pela robótica. Sem focinho, orelhas, patas e rabo, ela se assemelha a uma mochila de rodinhas que, em vez se ser puxada, vai na frente de seu tutor. Para isso, está equipada com motores, sensores, câmeras, navegação por GPS, Inteligência Artificial (IA) e um software contendo dados de acordo com a necessidade identificada. 

A tecnologia surgiu na disciplina de robótica da professora de Ciência da Computação Neide Sellin, em uma escola pública no Espírito Santo. A docente conta que sempre estimulou os alunos a desenvolverem soluções para melhorar a vida deles ou de outras pessoas e que a proposta de um cão-guia robô partiu da própria turma. Em 2014, Neide fundou a startup Vixsystem, que é responsável pelo produto no mercado.  

Com foco em autonomia e qualidade de vida para deficientes visuais, o produto pretende ser uma alternativa ao uso de animais na função. Segundo a professora, a disponibilização de um cão-guia custa em média R$ 80 mil, e o treinamento pode ter até dois anos de duração. “Temos certeza de que a Lysa não substituiria um cão na relação de afeto, que é insubstituível, mas há limitadores no acesso aos animais”, afirma.  

Fonte: Lysa

A Lysa tem um custo de venda que é um terço de um cão-guia, podendo também haver o aluguel do equipamento. Até o momento, 20 robôs foram produzidos e estão em operação dentro de empresas, já que a tecnologia está disponível apenas para uso em ambientes internos. Ir para as ruas é um próximo passo desejado, mas a criadora da Lysa relata dificuldades para tornar a solução mais escalável.  

“Vivemos em um país em que é difícil ter investidores que acreditem no nosso potencial, então há esse desafio. O governo apoiou muito o desenvolvimento dessa tecnologia e foi fundamental para hoje ela estar no mercado”, conta.  

Escalando tecnologias 

A expectativa da empreendedora é que esse ritmo de desenvolvimento ganhe agilidade. A Vixsystem passou a ser uma das empresas incubadas na Eretz.bio, o ecossistema de inovação e startups do Einstein, em junho deste ano. Segundo a criadora da Lysa, reuniões voltadas ao auxílio nas etapas de registro de patente e homologação do produto foram importantes para avanços no aperfeiçoamento do produto.  

Youri Eliphas, consultor de inovação do hospital, conta que o piloto da Lysa foi colocado em teste para a assistência de um colaborador cego durante duas semanas e conseguiu demonstrar seu potencial. “Entendemos que o produto é muito interessante, tanto quando falamos de inclusão, que também é uma das nossas missões, quanto em potencial de mercado. Trouxemos ele para dentro e estamos fazendo todo o planejamento de ação”, afirma.  

O especialista avalia que o cenário brasileiro não é ideal para que esse tipo de ideia prospere no mercado, o que resulta frequentemente na migração de projetos para outros países. “O mercado internacional tem uma velocidade e um aporte muito maior, mas isso também traz dificuldade quando falamos de incorporação para o Brasil. É muito difícil trazer uma tecnologia que custa em dólares, em euros. Isso se torna inviável. E quando se investe aqui, no país, estamos falando de startups brasileiras, da nossa cultura, do nosso jeito de fazer as coisas. Geralmente, isso torna muito mais viável a incorporação de soluções”, analisa.   

Robôs no cotidiano  

Os pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology) Shen Li e Theodoros Stouraitis se dedicam a avanços nas interações entre robôs e humanos, visando segurança e eficiência na colaboração de tarefas. Li é doutorando do departamento de Aeronáutica e Astronáutica do MIT e Stouraitis é cientista visitante do Grupo de Robótica Interativa do Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial. Ambos integram o grupo que projetou um robô que ajuda pessoas a se vestirem. Trata-se de um braço robótico que funciona com um modelo baseado em aprendizagem automática a partir da coleta de dados sobre o comportamento humano. 

“Primeiro, equipamos o humano com sensores de Unidades de Medição de Inércia (IMU) e projetamos manualmente controladores para permitir que o robô vista o humano em várias configurações diferentes. Dessa forma, podemos coletar dados sobre os movimentos humanos e as medidas de força na mão do robô durante o processo”, explicam os pesquisadores em entrevista à MIT Technology Review Brasil.  

O desafio foi manter a operação segura no contato com humanos, já que, segundo Li e Stouraitis, o robô tem dificuldade de prever com precisão o comportamento das pessoas e o movimento dos braços. “Respeitar o que o robô não sabe por meio de estimativas de incerteza dos modelos preditivos de movimento e força é fundamental para a segurança ao interagir em proximidade com um humano”, destacam. 

Os pesquisadores consideram a tecnologia ainda limitada, o que deve ser melhorado futuramente com a incorporação de novos recursos, como a visão computacional, por exemplo. Ainda assim, eles destacam o potencial de ajudar pessoas com problemas de mobilidade, pacientes em pós-operatório e idosos em atividades diárias. Essa última função, aliás, foi a grande motivação para o foco da pesquisa em tecnologias assistivas.  

“Meu avô era uma pessoa muito ativa, queria viver de forma independente o maior tempo possível. No entanto, há alguns anos, ele passou a precisar de ajuda para tarefas cotidianas, como cozinhar, se vestir, limpar. Isso me fez reconsiderar o impacto que os braços e mãos dos robôs poderiam ter na sociedade humana”, conta Theodoros. No caso de Shen, a avó dele foi uma inspiração: “Fiz algumas pesquisas sobre cadeiras de rodas autônomas para ajudar minha avó a se locomover dentro de casa e fiquei impressionado com a capacidade dos robôs de ajudar fisicamente as pessoas no mundo real”, relembra.  

Mais inovação para produtos assistivos 

De acordo com o mais recente relatório “Global report on assistive technology (GReAT)”, divulgado em 2022 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a estimativa é de que até 2050 cerca de 3,5 bilhões de pessoas no mundo vão precisar de um ou mais produtos assistivos. Atualmente, já são 2,5 bilhões de pessoas. 

Os produtos assistivos não são, necessariamente, inovações disruptivas. Um par de óculos de grau é uma tecnologia assistiva, por exemplo, já que faz com que uma pessoa enxergue, exemplifica o especialista no assunto Rafael Alves, da Auxii Tecnologia Assistiva. Rafael participou de treinamentos sobre eye tracking e comunicação alternativa em Estocolmo – Suécia, tendo atuado desde 2010 no apoio à implementação de tecnologias para acesso ao computador, comunicação alternativa e automação residencial, ele presenciou um caminho de mudanças pelo qual os dispositivos passaram ao incorporar cada vez mais inovações.  

As estatísticas confirmam: entre 1998 e 2019, o registro de patentes de tecnologias assistivas emergentes – aquelas que usam ferramentas como IA, Internet das Coisas (IoT) e interface cérebro-computador – cresceu, anualmente, uma média de 17%, enquanto o registro de tecnologias assistivas convencionais aumentou apenas 6%. Os números são da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. 

Em 2013, Rafael recebeu um paciente com esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa que afeta o sistema nervoso, acarretando paralisia gradual com a perda de capacidades como falar e se movimentar. O maior desejo dele, à época, era voltar a dar aulas. Com o uso da tecnologia, isso foi possível.  

“Em contato com parceiros, descobrimos que o Hospital Infantil de Boston tem um serviço chamado Message Banking Process. É um site em que você armazena arquivos de áudio. Já tínhamos arquivos de palestras desse paciente, áudios do WhatsApp, e importamos para essa ferramenta. Esse software interpreta e converte esses arquivos. Na época, não estava tão disseminada a voz criada por Inteligência Artificial, mas o software já estava fazendo isso, dentro desse sistema de comunicação, que não usava a voz robotizada, quer dizer, humanizando a voz”, conta Rafael. Com a tecnologia foi possível – por meio do controle do mouse e teclado –  o som ser reproduzido recriando a voz do paciente. 

O paciente, que antes tinha uma expectativa de vida de três anos, está há mais de 10 anos convivendo com a doença. A melhora é creditada à reabilitação em ações cotidianas proporcionadas pela tecnologia assistiva descrita.  

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