TR Q+A: John Halamka – Saúde além das fronteiras
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TR Q+A: John Halamka – Saúde além das fronteiras

Big data, IA e outras inovações transformam o atendimento em saúde, mas a ampliação do uso de novas tecnologias ainda precisa superar barreiras técnicas, regulatórias, políticas e sociais. Privacidade e adaptação a realidades locais são desafios atuais.

Um algoritmo de inteligência artificial (IA) é capaz de identificar uma disfunção cardíaca a partir de um eletrocardiograma e ainda antecipar qual será a sobrevida do paciente em longo prazo após uma cirurgia cardíaca. A partir de dados monitorados por um dispositivo de pulso, semelhante a um smartwatch, outro algoritmo prevê convulsões em um paciente com epilepsia intolerante a medicamentos, que é avisado 30 minutos antes de um episódio.

Ambos os resultados acima são de estudos conduzidos por pesquisadores da Mayo Clinic, uma instituição norte-americana sem fins lucrativos de referência na área, e mostram como a tecnologia pode ser valiosa para a detecção de doenças, otimização de tratamentos e melhora na qualidade de vida de pessoas doentes.

A telemedicina, até mesmo sem aparatos tão sofisticados, é capaz de conectar os melhores especialistas do mundo aos pacientes mais necessitados ou, de forma mais abrangente, pode democratizar atendimentos de média complexidade em países de grandes extensões, como o Brasil.

IA, big data, wearables e outras ferramentas transformam a lógica de cuidado do paciente, mas a ampliação do uso dessas inovações ainda precisa superar barreiras técnicas, regulatórias, políticas e sociais. A privacidade de dados e a adaptação de algoritmos a realidades locais são desafios atuais.

Em entrevista exclusiva para a MIT Technology Review Brasil, John Halamka, presidente da Mayo Clinic Platform, fala sobre as iniciativas e preocupações da instituição na busca pela disseminação de inovações tecnológicas para revolucionar a saúde. Sem se arriscar sobre um futuro distante, em curto prazo, ele imagina serviços mais conectados e novas formas de cuidado ganhando espaço no dia a dia de milhares de pessoas.

“Seja o atendimento virtual ou algoritmos de IA ajudando a direcioná-lo para o bem-estar que você deseja, é muito democratizante. Transcende fronteiras e presença física”, afirmou.

Quando titular de uma cadeira na Harvard Medical School, o médico aconselhou os governos de George W. Bush e de Barack Obama sobre a implementação de estratégias de informação em saúde e até hoje participa ativamente de fóruns de formulação de políticas de saúde.

No Brasil, apesar dos avanços em termos de conectividade impulsionados pela pandemia da Covid-19, ainda caminhamos a passos lentos nesse cenário. A mensagem passada por Halamka a gestores é simples: “Não existe inovação sem risco. O que temos que fazer é tentar soluções. Comece pequeno, pense grande, mova-se rápido. Claro, sempre se certifique de que tudo seja feito com a máxima segurança”.

MIT Technology Review: Como você descreveria a Mayo Clinic Platform? Como ela pode ajudar os pacientes não apenas dentro de sua instituição, mas também globalmente?

John Halamka: Uma pergunta recorrente nas reuniões das quais eu participo é: quais são as barreiras quando se busca uma inovação disruptiva? Algumas são tecnológicas, algumas regulatórias e políticas, e outras são culturais. A Mayo Clinic Platform realmente quer superar as três. Se nos perguntarmos se vamos conseguir alcançar os cuidados de saúde que todos desejamos, personalizados e acessíveis, podemos dizer que é isso o que a plataforma aspira a fazer, mesmo que os cuidados em saúde às vezes sejam difíceis de navegar. A estrutura tecnológica central da Mayo Clinic Platform traz componentes para coletar dados, transformá-los em conhecimento e ação, garantir que eles sejam equitativos e justos, e fornecer um conjunto do que chamo de componentes de orientação para que você possa obter os cuidados necessários onde você precisar e quando precisar. Portanto, a plataforma é um conjunto de componentes de tecnologia que ajudam a reduzir barreiras para alguns fluxos de trabalho inovadores.

Ao mesmo tempo, devemos trabalhar em várias questões políticas e regulatórias. No Brasil, há novas regulamentações sobre privacidade. É possível buscar dados do passado e usá-los para criar planos de cuidados refinados para o futuro, desde que você o faça de forma a cumprir a lei e o uso ético dos dados, respeitando os novos requisitos de privacidade do país. Precisamos trabalhar no contexto das restrições regulatórias nacionais e internacionais para entregarmos as soluções que buscamos. E precisamos ter certeza de que estamos atendendo às necessidades dos pacientes, porque eles sempre estarão em primeiro lugar, assim como suas expectativas e seu nível de conforto tecnológico. Minha mãe tem 80 anos. Antes da Covid-19, ela não sabia lidar com programas de computador. E hoje ela diz: “Claro que eu quero atendimento virtual. Por que eu iria querer sair de casa?”. Nesse sentido, é realmente importante criarmos esse conjunto de capacitação tecnológica apoiada por políticas, ao mesmo tempo em que observamos com muito cuidado o que os pacientes desejam como entrega e empoderamento.

TR: Quais são os principais desafios para a adoção da IA na área da saúde e como podemos acelerar essa transformação digital?

Halamka: Os desafios são muitos. Quando você compra uma lata de sopa, pode olhar no verso do rótulo e dizer: “Ah! São 1000 miligramas de sódio, 500 gramas de gordura e 800 calorias, então eu não quero essa sopa”. Não há rótulo em nenhum algoritmo de IA, uma noção de transparência do que esse algoritmo faz. Muitas vezes, os algoritmos de IA são muito justificáveis, mas você não entende bem a causalidade. Como o algoritmo processa as entradas e cria uma saída? Além disso, você não tem certeza sobre a sua capacidade de ser testado. O algoritmo criado em Rochester, Minnesota, funcionará bem no Brasil? Nós sabemos? Como vamos testá-lo?

Como sociedade, estamos trabalhando bastante em questões de transparência, explicabilidade e capacidade de testes para garantir que esses algoritmos sejam incorporados aos fluxos de trabalho sem que criem maiores impactos. Trabalhamos para que um clínico seja aprimorado pelo algoritmo de IA, porque sabemos que a IA não está substituindo humanos, não está substituindo a empatia, não está substituindo o toque de cuidado. Queremos garantir que os médicos que atendem pacientes possam tomar as melhores decisões com base em evidências. E há também um aspecto cultural. Mais uma vez, minha mãe, na casa dos 80 anos, conversa com seus amigos que dizem: “IA? Você não viu ficção científica o suficiente para saber que, quando você liberar a IA, os robôs dominarão a humanidade?”. E, claro, a minha mãe, que me ouve, diz: “Este é apenas um conjunto de probabilidades que ajudam os médicos a tomarem decisões e, com diretrizes e proteções, garantiremos que sejam usados corretamente e não causem danos”. Essas são algumas questões nas quais estamos trabalhando.

TR: Como a tecnologia pode ajudar a expandir o acesso a serviços de saúde de alta qualidade e reduzir a inequidade que existe hoje?

Halamka: Essa é uma excelente pergunta. Vou lhe dar uma resposta um pouco peculiar. Sou médico de emergência e um dos maiores especialistas dos Estados Unidos e do mundo em envenenamento por cogumelos e plantas. Mais uma vez, sei que isso soa um pouco incomum, mas faça a si mesma a pergunta: se eu sou o especialista do país ou o especialista internacional, você não gostaria de poder me consultar no caso de um envenenamento já que eu provavelmente daria a você a resposta certa e a orientação correta? Acebei de receber no meu smartphone, por exemplo, a foto de uma pequena amostra de cogumelo em um pedaço de papel. Uma criança de três anos comeu isso, então surgem perguntas: “Ele vai morrer? Devemos dar-lhe carvão ativado? Ele precisa de um antídoto?”. Usei esse exemplo porque faço 900 consultas virtuais para todo o mundo, todos os anos, levando minha especialidade para qualquer pessoa, em qualquer lugar sem quase nenhum atrito ou perda. É assim que as plataformas funcionam: você me envia uma foto em um telefone e isso significa que você não precisa necessariamente ir a um hospital. Elas não exigem que um paciente tenha uma tecnologia particularmente sofisticada para usar em suas casas, mas precisamos ter um conjunto de componentes hospedados na nuvem. Então, seja o atendimento virtual ou algoritmos de IA ajudando a direcioná-lo para o bem-estar que você deseja, é muito democratizante. Transcende fronteiras e presença física.

TR: A crescente quantidade de dados de saúde gerados ao longo dos anos tem sido fundamental para o avanço digital da medicina. Mas, considerando as necessidades de armazenamento e análise desses dados, como devemos lidar com a privacidade? Como podemos manter a segurança de dados individuais neste contexto?

Halamka: Na época em que eu era o diretor de informações da Harvard Medical School e seus hospitais, a questão era como armazenar terabytes de dados. Agora, estamos lidando com escala de petabytes e com fluxos de dados de alta velocidade. A pergunta mudou. Não é mais uma questão de armazenamento e computação. É uma questão de como protegemos a privacidade e aproveitamos os dados que coletamos de maneira ética. Na Mayo Clinic, temos uma abordagem que chamamos de “data behind glass”. Então, imagine que você decide que está de acordo sobre o uso de seus dados do passado para pesquisa. Nós vamos desidentificá-lo. A desidentificação é mais do que apenas remover um nome, endereço e número de telefone. Removo referências geográficas, relacionamentos familiares e funções de trabalho. De outra forma, os dados poderiam ser reidentificados. Em seguida, os colocamos em um contêiner seguro e garantimos que qualquer trabalho feito nele não inclua o linkage. O sistema impede a ligação com dados externos e reidentificação. Além disso, os dados não serão divulgados fora do controle da Mayo. Eles podem ser aproveitados para criar novos algoritmos ou validar algoritmos existentes, mas não podem ser retirados daqui. Portanto, essa ideia de usar dados totalmente desidentificados em contêineres criptografados controlados pela Mayo Clinic, sem possibilidade de vinculação, para insights e sabedoria, é como abordamos a questão da privacidade. É importante ressaltar também que a Mayo nunca vende dados.

TR: Qual a sua visão sobre o uso do metaverso por profissionais de saúde e pacientes?

Halamka: Mais uma vez, vou responder de uma maneira um pouco incomum. Precisamos atender não só cada paciente, mas cada profissional no seu nível de conforto tecnológico. Existem aqueles para os quais a realidade aumentada ou a realidade virtual serão realmente um trunfo: “Ajude-me a operar este paciente, mostrando-me onde devo cortar”. Ou, enquanto vejo um paciente: “Ajude-me com consciência situacional, entendendo mais sobre sua história ou seus testes diagnósticos atuais”. Se eu estiver em um departamento de emergência: “O que está acontecendo ao meu redor?”. Nas últimas duas décadas, experimentei várias tecnologias, como Google Glass, realidade aumentada vestível e equipamentos de realidade virtual. Novamente, eles podem ser úteis. Mas não são para todos. Como William Gibson nos disse: “O futuro já chegou, só não foi uniformemente distribuído ainda”. Você verá algumas instituições que adotaram a ideia do metaverso para algumas utilizações, alguns pacientes e alguns provedores e outros que realmente não o farão porque consideram que não adiciona empatia ou utilidade a um fluxo de trabalho específico. Então, precisamos ter um cuidado aqui. Não é uma panaceia. Devemos usá-lo onde for útil para pacientes e provedores.

TR: Como se comportam as adaptações de algoritmos quando usados em contextos diferentes daqueles para os quais foram criados? Eles poderiam ser usados em outros países, por exemplo?

Halamka: Eric Horvitz é o cientista-chefe da Microsoft. Alguns anos atrás, ele comprou um conjunto de software desenvolvido por alguns médicos brilhantes. A ideia era coletar grandes quantidades de dados, criar algoritmos e protocolos de IA e oferecer um atendimento maravilhoso. Ele descobriu que quando pegou os dados e o software desenvolvido na empresa e levou dois quarteirões rua abaixo —Apenas dois quarteirões! — o algoritmo não funcionou. A população de pacientes era diferente, talvez com uma mistura diferente de demografias e coberturas por seguros de saúde. Então, os algoritmos precisam ser ajustados e validados em relação a uma população local, que pode ser muito diferente da população de treinamento para a qual eles foram criados. A Mayo Clinic abordou esse problema utilizando um conjunto de tecnologias muito novas que nos permitem trazer conjuntos de dados de qualquer pessoa com dois algoritmos e, em seguida, medir as características de desempenho e entender onde pode haver problemas. É muito importante que todos entendam que um algoritmo desenvolvido com um milhão de pessoas de ascendência escandinava em Minnesota pode não ser adequado para o propósito no Brasil e, portanto, o ajuste e o teste local são essenciais antes da implantação.

TR: Quais são as políticas da Mayo Clinic de apoio a startups que visam a explorar dados para fornecer melhores cuidados de saúde?

Halamka: Trabalhei com startups globalmente e a Mayo Clinic recentemente iniciou uma aceleradora para trazer startups de todo o mundo para co-desenvolvimento de produtos. Muitas vezes, essas startups têm ideias extraordinárias e talvez ótimas tecnologias, mas não têm uma sandbox pela qual possam executar sua tecnologia em grandes conjuntos de dados longitudinais com proteção de privacidade. Portanto, a Mayo Clinic quer capacitar os parceiros dessas startups, trazendo-as para nosso ambiente seguro e garantindo que seus produtos sejam os melhores possíveis. Não vendemos dados, não enviamos dados, mas executaremos seus produtos em relação aos nossos dados para torná-los melhores. Estamos inscrevendo agora grupos de startups apenas para esse propósito específico.

TR: Como você visualiza um novo paradigma para a saúde em dez anos?

Halamka: Não penso em mais do que seis trimestres à frente. Porque, pense bem, se em 1993 alguém dissesse: “Tim Berners-Lee acabou de inventar essa coisa chamada World Wide Web. O que você acha que vai fazer em dez anos?”. Ninguém teria respondido a essa pergunta, certo? Então, eu digo que nos próximos seis trimestres, ao olharmos para nossos produtos da plataforma, vejo o Gather — que é um produto para ingestão de novos fluxos de dados de alta velocidade do seu telefone ou dos dispositivos que você utiliza — se tornar proeminente. Veremos cada vez mais tipos de dados coletados com o consentimento do paciente, porque reunir seu histórico, seus dados atuais, além de sua genômica, resultará em uma melhor orientação, uma melhor maneira de encontrar os cuidados de saúde de que ele precisa no futuro. Portanto, a coleta de mais dados certamente será acelerada. Sabemos que precisaremos de mais algoritmos para fazer isso, mas o desafio é que apenas ter soluções de um milhão de pontos para cada doença não será tão fácil de usar. Assim, a Mayo desenvolverá em paralelo novos algoritmos. Desenvolverá a capacidade de encontrar o caminho para acionar o algoritmo certo no momento certo, que será útil para orientar você e seu provedor na jornada. A Mayo trabalhará para garantir que os algoritmos sejam justos e imparciais, úteis, adequados ao propósito e testáveis em diferentes culturas e ambientes. Portanto, você verá um laboratório de validação para esse propósito específico e todos trabalharemos em novas maneiras de fornecer esses algoritmos e fluxos de trabalho, como cuidados avançados ou agudos em configurações não tradicionais. Como podemos fornecer cuidados de qualidade hospitalar em uma casa? A Mayo vem trabalhando nisso há um ano e meio, e isso se expandirá para mais geografias, para que você possa obter a mesma qualidade, segurança e resultados em um ambiente não tradicional, sem ter que ir a uma instalação de tijolos e cimento. Assim, daqui a seis trimestres, os cuidados estarão mais conectados, os algoritmos serão mais implantados, as proteções e diretrizes para garantir que esses algoritmos sejam apropriados estarão em vigor, e novas formas de prestação de cuidados serão mais comuns.

TR: Gostaria de deixar uma mensagem final?

Halamka: Sim, claro. Às vezes me encontro com ministros da saúde de diferentes países e converso com eles sobre algumas das inovações que todos nós, pacientes, queremos. Muitas vezes eles dizem: “Adoramos a inovação, mas só queremos inovação sem risco”. Eu vou argumentar que não existe inovação sem risco. Então, o que temos que fazer é tentar soluções. Comece pequeno, pense grande, mova-se rápido. Claro, sempre se certifique de que tudo seja feito com a máxima segurança. Algumas das coisas que queremos vão funcionar, outras não vão. Temos que ter tolerância com o fato de que vamos alcançar um tipo completo e verdadeiramente novo de assistência médica nos próximos seis trimestres e anos depois. Haverá riscos e possíveis falhas ao longo do caminho. E tudo bem.


Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.

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