Terapias avançadas e saúde suplementar: como fechar essa conta?
Biotech and HealthPopulation Health Management (PHM)

Terapias avançadas e saúde suplementar: como fechar essa conta?

Operadoras, associações e governo discutem como financiar tratamentos de alto custo sem desequilíbrio financeiro. Precificação está no alvo dos debates, contudo, democratização do acesso esbarra no tamanho do mercado, já que algumas terapias são para um número muito pequeno de pacientes.

Era 1960 quando cientistas descobriram que os linfócitos, células no nosso sistema imunológico, eram capazes de combater o câncer em camundongos. De lá pra cá foram gigantes os avanços das pesquisas nesta área. Hoje a terapia celular CAR-T – em que se reprograma as células de defesa do próprio paciente para eliminar os tumores – é considerada a nova fronteira no tratamento de certos tipos de câncer de sangue. Passa a ser possível falar em remissão completa da doença, quer dizer, cura, mas ela tem um custo: aqui no Brasil, o procedimento aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e precificado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, ultrapassa o valor de R$ 2 milhões por paciente. 

Correndo com as grandes farmacêuticas, estão pesquisas acadêmicas de centros de ensino para tentar disponibilizar essa tecnologia por preços um pouco mais acessíveis. Uma das iniciativas é a da Universidade de São Paulo e Hemocentro de Ribeirão Preto junto com o Instituto Butantan. O CAR produzido pelo projeto deve custar entre 30% a 40% do valor do produto já disponível no mercado. Até agora 13 pacientes já foram tratados com a tecnologia em programa de uso compassivo (com autorização da ANVISA, mas ainda sem aprovação ou registro da agência). O objetivo é ampliar o acesso para o SUS, mas o diretor-científico do Hemocentro RP, Dimas Covas, diz que é possível que a saúde suplementar também possa se beneficiar futuramente por meio de parcerias público-privadas ou acordos de licenciamento de tecnologia. “O nosso grupo de pesquisa tem conversado com hospitais privados, com grupos de medicina suplementar, no sentido inclusive de estudar as possibilidades de transferência de tecnologia para esse setor, é um assunto que ainda está no seu início, mas existe essa possibilidade de que haja um amplo acordo nacional não só para o SUS, como também para o setor privado, porque afinal de contas o setor privado representa 20% da demanda e no caso do CAR-T isso representaria em torno de 500 pacientes por ano”. 

O pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (INCA), Martín Bonamino, que também está à frente de outra pesquisa com células CAR-T, reflete o desafio do custo para a incorporação das terapias avançadas. “Existem terapias gênicas que foram desenvolvidas para um número muito pequeno de pacientes, então elas têm um custo muito alto por paciente e algumas delas têm um custo tão alto que não são nem viáveis do ponto de vista de quem vai consumir e nem de quem produz”. Segundo o especialista o cálculo para a saúde suplementar é complexo, pois muitas vezes é preciso incluir no custo global tratamentos adicionais, mas ao mesmo tempo porque algumas terapias são curativas, elas também previnem vários outros gastos com procedimentos continuados por períodos longos. Bonamino ressalta ainda que para discutir preço é preciso mensurar o tamanho do mercado. “Não sei se a gente tem dados consistentes para ver o tamanho do potencial passivo considerando o número de pacientes no país para cada uma das indicações, para cada uma das terapias avançadas, eu acho que a gente tem uma carência de levantamento mais bem feito do tamanho de cada uma dessas populações que seriam atendidas”. 

O que são terapias avançadas? 

O tratamento com células CAR-T é apenas um exemplo. Por definição da ANVISA, produtos de terapias avançadas são produtos biológicos obtidos a partir de células e tecidos humanos e submetidos a um processo de fabricação e que serão usados com fins terapêuticos. Também entram na classificação da ANVISA os ácidos nucleicos recombinantes e que tem como objetivo regular, reparar, substituir, adicionar ou deletar uma sequência genética ou modificar a expressão de um gene.  

Hoje no Brasil as terapias avançadas são opções de tratamento para doenças consideradas raras ou linhas posteriores de tratamento oncológico. Apenas cinco produtos nesta categoria têm registro da ANVISA. A regulamentação para esse campo da medicina é recente, de 2021, quando a agência publicou uma resolução para boas práticas em células humanas para uso terapêutico e pesquisa clínica.  

A criação desse marco regulatório vai ao encontro da tendência mundial e atende às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a padronização internacional de requisitos e definições de qualidade. 

Dilema Mundial 

Fazer o encontro entre o benefício de terapias de altíssimo custo com negócios que sejam sustentáveis é a pergunta que atordoa o mundo. Vários países, não só o Brasil, estão em busca da resposta. Um dos exemplos mais emblemáticos do momento é o caso da imunodeficiência combinada grave (SCID). A SCID é uma doença rara hereditária em que o recém-nascido apresenta imunodeficiência séria com potencial fatal, tendo que ser mantido em um ambiente protegido para evitar contrair infecções.  

A cura existe! A terapia genética que restaura o sistema imunológico danificado foi desenvolvida pela gigante farmacêutica britânica GSK. Chamado de Strimvelis, o procedimento teve aprovação europeia em 2016. Depois de dois anos o grupo não encontrou uma maneira de lucrar com o tratamento e os direitos do Strimvelis foi parar com outra empresa de biotecnologia, que chegou a mesma conclusão e já passou para uma terceira companhia. 

“As grandes corporações sempre justificam os custos elevados em virtude dos investimentos que foram feitos, e de fato são desenvolvimentos que estão aí há 20, 25 anos acontecendo; então se você for incorporar esse tempo todo e todos os recursos investidos, obviamente esse preço vai se tornar proibitivo, mas tem essa questão: até que ponto o mecanismo de precificação não leva em consideração as necessidades reais da população, mas sim as necessidades econômicas do projeto?”, questiona Dimas Covas. O médico cita a Itália para lembrar que alguns países estão criando políticas próprias e alternativas para o financiamento de tratamentos inovadores no caso do sistema público. O mecanismo italiano se assemelha ao protocolo assinado pelo Ministério da Saúde para o acesso gerenciado da incorporação do Zolgensma – para tratamento da atrofia muscular espinhal (AME) do tipo 1, em bebês de até seis meses de idade – ao SUS. A medicação custa cerca de R$ 6 milhões e o pagamento à fabricante será feito em parcelas e pela performance, quer dizer, pelos resultados apresentados. Após a admissão no SUS, o medicamento também foi incorporado no Rol de Procedimentos para a saúde suplementar. O Zolgensma é a primeira terapia avançada a integrar a lista de coberturas obrigatórias pelas operadoras de planos de saúde.  

Fundos para custeio 

Uma alternativa que vem sendo provocada especialmente por entidades como a Associação Brasileira de Planos de Saúde e a União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde é a discussão de fundos coletivos para atender a demanda. Poderia ser privado, entre as operadoras, ou até mesmo uma opção com participação de dinheiro público. Como saída emergencial, Martín Bonamino acredita que possa funcionar “seria como se fossem fundos patrimoniais, uma verba destinada pra isso que não impacte seu fluxo de caixa, eu acho que é uma das soluções, você isolar esse altíssimo custo dentro de uma conta paralela”. 

Em abril de 2022 foi publicada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar uma Resolução Normativa em que o órgão regulador reconhece que as operadoras possam ter colaboração mútua no que ficou definido como “operações de compartilhamento da gestão de riscos”. Uma das situações previstas é o aporte de recursos para a formação de um fundo comum para minimizar impactos financeiros, outra é a contratação de seguros ou resseguros, dentro das regras da legislação do setor securitário. Segundo o diretor de Normas e Habilitação dos Produtos da ANS, Alexandre Fioranelli, desde o início deste ano, a agência tem realizado reuniões com representantes do setor de saúde suplementar, da indústria farmacêutica e com o Ministério da Saúde na busca de soluções que se apresentem como alternativas sustentáveis. 

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