A palavra “inovação”, no contexto tecnológico, costuma ser associada a algo custoso, que exige altos investimentos para acontecer. Definições que, à primeira vista, parecem distantes do termo “público”. Mas os caminhos podem convergir, desde que sejam desenhados em um ecossistema capaz de impulsionar o desenvolvimento de novos produtos.
Do ponto de vista da saúde, o Brasil ainda enfrenta desafios para consolidar um ambiente maduro que favoreça a criação de tratamentos inovadores, como os produtos de terapias avançadas. Atualmente, as nove terapias desse tipo aprovadas no país foram desenvolvidas por indústrias farmacêuticas internacionais.
Na categoria de produtos de terapias avançadas (PTA), conforme a classificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são enquadradas as terapias gênicas in vivo e ex vivo, terapias celulares avançadas e de engenharia tecidual. Elas são capazes de trabalhar o código genético humano e o próprio sistema imunológico como ferramenta para interromper a progressão de sintomas de doenças graves, muitas delas sem nenhuma alternativa terapêutica disponível.
Ao mesmo tempo, em 2023, o Brasil teve a aprovação inédita da Anvisa para dar seguimento, com voluntários humanos, ao ensaio clínico de uma terapia CAR-T (terapia gênica ex vivo) desenvolvida pelo Hemocentro de Ribeirão Preto em parceria com o Instituto Butantan. O tratamento com células CAR-T consiste, resumidamente, em reprogramar geneticamente linfócitos T — células do sistema imunológico do próprio paciente — para reconhecer e combater determinados tipos de câncer de sangue.
O produto brasileiro em desenvolvimento, chamado informalmente de “CAR-T acadêmico”, é voltado a pacientes com leucemia linfoide aguda de células B e linfoma não Hodgkin de células B e está atualmente com o estudo clínico de fase 2 em andamento.
A pesquisa é uma das várias hoje existentes no país originadas em laboratórios públicos ou instituições de ensino, voltadas ao desenvolvimento de terapias com células CAR-T em âmbito nacional. Segundo dados do Ministério da Saúde, há pelo menos 24 pesquisas em CAR-T apoiadas com recursos federais, distribuídas em 13 instituições que incluem laboratórios públicos, parcerias com a iniciativa privada e centros de ensino e pesquisa.
Entre as nove terapias avançadas registradas pela Anvisa, quatro são consideradas “CAR-T comercial”: Kymriah® (tisagenlecleucel), indicado para leucemia linfoblástica aguda (LLA) de células B, linfoma difuso de grandes células B e linfoma folicular recidivado ou refratário (r/r), fabricado pela Novartis; Carvykti® (ciltacabtagene autoleucel), aprovado para mieloma múltiplo recidivado ou refratário, da Janssen; Yescarta® (axicabtagene ciloleucel), utilizado em linfoma folicular r/r, linfoma de grandes células B r/r e linfomas de células B refratários à quimioimunoterapia, da Gilead; Tecartus® (brexucabtagene autoleucel), indicado para linfoma de células do manto r/r ou LLA de células B r/r, também da Gilead.
Um exemplo em desenvolvimento
O ex-diretor do Instituto Butantan e atual responsável pelo Hemocentro de Ribeirão Preto, vinculado à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Dimas Covas, relembra o processo de pesquisa e desenvolvimento do produto acadêmico.
“Em 2000, nós começamos a primeira versão do que chamamos de Centro de Terapia Celular (CTC). E foi ali que nasceu o CAR-T brasileiro. Naquela época se falava muito em célula-tronco embrionária, uma revolução, já que era uma célula com potencial de regenerar praticamente todos os tecidos do corpo humano. Evoluímos nesse tema e, em 2012, houve uma iniciativa do governo federal, os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Nós aplicamos o CTC e fomos agraciados. Um dos projetos que apresentamos foi o desenvolvimento de terapias celulares para o câncer. Isso já em 2014, quando o CAR-T ainda era apenas uma possibilidade, com estudos em andamento nos Estados Unidos, mas sem aprovação. Decidimos investir nisso”, relembra.
O primeiro paciente tratado com as células CAR-T desenvolvidas pelo Hemocentro foi um idoso de 62 anos, com linfoma não Hodgkin em estágio terminal, que já havia passado por quatro tratamentos anteriores, incluindo quimioterapia e radioterapia. Registros da pesquisa mostram que ele foi internado no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto em 9 de setembro de 2019 e recebeu alta em 12 de outubro do mesmo ano. Em menos de 20 dias após a aplicação, não apresentava mais células cancerígenas no organismo.
“A premissa era iniciar em pacientes em regime compassivo, ou seja, aqueles que já haviam esgotado todas as opções de tratamento e tinham sobrevida limitada. Houve um processo de interação com a Anvisa, e finalmente iniciamos os estudos clínicos. O primeiro paciente estava em situação crítica, com linfoma, e tinha apenas alguns meses de vida. Ele teve uma resposta fantástica. Uma pessoa à beira da morte se viu livre do linfoma que o acompanhava há vários anos. Isso ganhou grande repercussão. Hoje temos um produto em fase de testes clínicos, em andamento. Mais de 20 pacientes já foram tratados em regime compassivo, com resultados semelhantes aos obtidos com produtos registrados comercialmente”, detalha Covas.
Para ele, iniciativas de instituições públicas e parcerias com o setor privado são fundamentais, não apenas para o mercado, mas para atender diferentes perfis de pacientes: “A iniciativa pública não vai resolver todos os problemas, mas pode atender parte dos pacientes do SUS. Dentro do complexo industrial da saúde, as terapias avançadas deveriam ter uma abordagem especial e coordenada. O Brasil precisa de uma indústria própria de terapias avançadas, independente das multinacionais. Mas essa é uma decisão de Estado, de governo, de política pública. A pesquisa clínica, sobretudo no setor público, enfrenta muitas dificuldades. Conseguir financiamento para um estudo clínico de R$ 100 milhões não é trivial”, observa.
De acordo com o último ranking do Índice Global de Inovação, divulgado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) em 2024, o Brasil está na 50ª posição entre 133 países. Já o levantamento Science and Engineering Indicators 2020, da National Science Foundation, coloca o Brasil em 11º lugar entre os países com mais artigos publicados internacionalmente, com um total de 60.147. Ainda que essas estatísticas não tragam recorte por setores, essa realidade se repete em muitas áreas econômicas, inclusive na área da saúde.
Covas acrescenta que, embora o país tenha grande produção científica — figurando entre os primeiros em número de artigos publicados —, essa experiência raramente se transforma em produtos aplicáveis à saúde pública. “Existe um descompasso entre ciência e aplicação da ciência, que decorre de uma política pública”, afirma.
Complementariedade como caminho
O debate sobre terapias avançadas no Brasil mostra que não se trata de escolher entre modelos, mas de reconhecer que indústria global e produção nacional são complementares. A produção acadêmica, com apoio de parcerias público-privadas, amplia a capacidade de resposta do SUS e fortalece o parque científico-tecnológico local. Já a presença da indústria internacional acelera a incorporação de novas tecnologias e garante escala de produção, como destaca Dimas Covas: “Eu não vejo o Estado como dono de grandes fábricas. Isso você tem que fazer com a indústria privada, com as grandes farmacêuticas”.
Catherine Moura, presidente da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), reforça que uma forma de desenvolvimento não invalida a outra. “Eu não acredito que o caminho vai ser unicamente através de CAR-T acadêmico. Eu não acho que eles configuram uma ameaça à indústria farmacêutica, mas sim uma oportunidade interessante de caminhos diversificados”, afirma.
Corroborando essa visão, Angelo Maiolino, presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), avalia que a pesquisa nacional em terapias avançadas, especialmente em células CAR-T, tem potencial estratégico para o Brasil e não deve ser vista como uma disputa direta entre o modelo acadêmico e o industrial. “Eu não acho que o CAR-T acadêmico e o da indústria farmacêutica sejam concorrentes diretos”, afirma, ressaltando que cada modelo cumpre um papel distinto no ecossistema.
Ele lembra que o país já dispõe de equipes capacitadas e estruturas hospitalares de alto nível, como no projeto do Instituto Butantan com a USP de Ribeirão Preto e na iniciativa do Ministério da Saúde com Bio-Manguinhos, capazes de realizar manufatura local e reduzir a dependência do envio de células para o exterior. “Teria total capacidade de fazer essa manufatura aqui no Brasil, sem dúvida. Mas obviamente isso depende de investimento”, diz.
Para Maiolino, o CAR-T acadêmico é importante para o SUS, pois pode viabilizar um produto desenvolvido localmente, com custos mais compatíveis à realidade do sistema público, enquanto o CAR-T da indústria farmacêutica tende a dominar o setor privado. Ele cita o exemplo de Barcelona, onde, devido à complexidade regulatória, a produção acadêmica é oferecida dentro de ensaios clínicos, ainda que já possua robustez científica. Reconhece que o desenvolvimento acadêmico exige grande investimento e a retenção de profissionais altamente treinados, mas enfatiza que essa estratégia é importante para ampliar o acesso.
O médico também acredita que o mercado evoluirá com mais fabricantes, redução de custos e maior volume de produção. “Vai mudar muito o processo de manufatura do CAR-T no futuro. Eu acredito que isso vai se tornar mais popular. Precisa se tornar mais popular”, afirma.
A visão da indústria de inovação
Na avaliação do presidente-executivo da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), Renato Porto, os investimentos só terão sentido se forem convertidos em condições reais de acesso para os pacientes. Isso envolve dispor de infraestrutura adequada, equipes capacitadas e diagnóstico acessível.
“Colocar o paciente no centro significa exatamente isso: transformar a inovação em uma realidade concreta na vida de quem mais precisa dela”, afirma.
O representante da indústria farmacêutica inovadora destaca desafios como prazos longos de avaliação, insegurança regulatória e desigualdades regionais. Por outro lado, enxerga oportunidades concretas para ampliar a oferta desses produtos no país, como desenvolver modelos inovadores de acesso, expandir a rede de centros habilitados e formar equipes multiprofissionais, além de consolidar o Brasil como destino estratégico em pesquisa clínica, especialmente após a regulamentação da Lei de Pesquisa Clínica (Lei nº 14.874/2024).
“Se bem conduzida, essa agenda pode transformar o Brasil em um polo regional de inovação em saúde, com impacto direto na sobrevida e na qualidade de vida de pacientes com doenças graves e raras”, conclui Porto.
Incentivo à pesquisa
Embora o Brasil ainda não possua um ecossistema maduro de inovação em saúde, ações de fomento à pesquisa têm sido fortalecidas ao longo dos anos. Criada em 1967, a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, atua para promover o desenvolvimento científico e tecnológico de empresas, universidades e instituições de ensino.
Uma das iniciativas recentes mostra o potencial brasileiro em terapias avançadas. Segundo Joana Souza de Meirelles, superintendente de Saúde e Transformação Digital da Finep, o edital de 2023 do programa Mais Inovação Brasil, voltado a Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), superou as expectativas.
“O edital entrou no ar com R$ 250 milhões em recursos. A demanda qualificada foi tão alta que aprovamos 51 projetos, que somaram R$ 693 milhões. Houve um pleito por recursos adicionais e estamos contratando todos os 51 projetos. Eles estão distribuídos em três linhas temáticas: Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), Terapias Avançadas e Produtos e Terapias de alto impacto para o SUS. A linha de Terapias Avançadas concentrou 45% dos recursos aprovados, demonstrando que já temos centros de pesquisa com projetos consistentes, próximos de etapas clínicas e, potencialmente, de chegar à população”, avalia Joana.
A executiva também destaca os esforços da Finep em aproximar instituições públicas e empresas privadas, exigindo que as propostas apresentem parcerias com ICTs para acesso aos editais de subvenção econômica.
Alcançar patamares de investimento em ciência e tecnologia como os de China e Estados Unidos — que destinam entre 3% e 4% do PIB ao setor — ainda é um objetivo distante. Mas o caminho precisa ser trilhado. Uma certeza permanece: inovação em saúde não acontece de forma espontânea. Ela precisa ser induzida com estratégia, investimento contínuo e políticas públicas consistentes.
Este conteúdo é editorial e não está sujeito à edição ou à aprovação dos patrocinadores. O projeto Advanced Therapies recebeu patrocínio das seguintes farmacêuticas: Johnson & Johnson; Kite; Novartis; PTC Therapeutics; Roche; e Ultragenyx.