Porque os pesquisadores estão medindo a temperatura da neve no topo das montanhas
Natureza e espaço

Porque os pesquisadores estão medindo a temperatura da neve no topo das montanhas

À medida que a crise climática se intensifica, cientistas precisam de uma leitura mais precisa para entender quando a água chegará aos reservatórios e quando ameaçará inundá-los.

O que você encontrará neste artigo:

Monitoramento da temperatura da neve nas montanhas
Uso da tecnologia infravermelha para medir a camada de neve
Impacto dos cortes no governo sobre os dados e a pesquisa

Em uma manhã fresca no início de abril, Dan McEvoy e Bjoern Bingham fizeram traços descendo uma pista larga no Heavenly Ski Resort em South Lake Tahoe, depois se abaixaram sob uma linha de cordas que isolava uma área de neve intocada.

Mini Banner - Assine a MIT Technology Review

Eles subiram de lado por uma pequena elevação, passaram com os bastões por uma fileira de pinheiros Jeffrey e, então, deixaram suas mochilas cair.

A dupla de pesquisadores climáticos do Instituto de Pesquisa do Deserto (Desert Research Institute, ou DRI) em Reno, Nevada, nos Estados Unidos, desceu esquiando até este ponto de pesquisa no meio de um resort para testar uma nova forma de medir a temperatura da camada de neve da Serra Nevada. Eles estavam equipados com um dispositivo experimental de infravermelho que pode fazer medições enquanto é inserido até o chão em um buraco na neve.

O reservatório congelado da cordilheira fornece cerca de um terço da água para a Califórnia e para a maior parte do recurso que sai das torneiras, chuveiros e sprinklers nas cidades e vilarejos do noroeste de Nevada. À medida que derrete na primavera e no verão, os operadores de barragens, agências hídricas e comunidades precisam gerenciar o fluxo de bilhões de galões de escoamento, armazenando o suficiente para atravessar os inevitáveis meses secos de verão, mas sem permitir que os reservatórios e canais transbordem.

A necessidade de dados melhores sobre a temperatura da camada de neve torna-se cada vez mais crítica para prever quando a água descerá pelas montanhas. Isto acontece à medida que a mudança climática impulsiona o aumento das temperaturas, derrete a neve mais rápido e provoca oscilações rápidas entre períodos muito úmidos e muito secos.

No passado, o trabalho de coletar essas observações sobre a camada de neve era árduo. Agora, uma nova geração de ferramentas, técnicas e modelos promete facilitar esse processo, melhorar as previsões de água e ajudar a Califórnia e outros estados a gerenciar com segurança uma de suas maiores fontes de água diante de secas e inundações cada vez mais severas.

Os observadores, no entanto, temem que qualquer avanço nesse sentido possa ser prejudicado pelos cortes do governo do presidente norte-americano Donald Trump em várias agências federais, incluindo aquela que supervisiona o monitoramento e os trabalhos de pesquisa da camada de neve. Isso poderia prejudicar os esforços em andamento para produzir os dados e previsões de água dos quais as comunidades do Oeste dependem.

“Se não tivermos essas medições, é como dirigir seu carro sem um medidor de combustível”, diz Larry O’Neill, climatologista do estado do Oregon. “Não saberemos quanto de água há nas montanhas e se há o suficiente para aguentar o verão”.

O nascimento das pesquisas de neve

O programa de pesquisas de neve nos EUA nasceu perto do Lago Tahoe, que fica em Serra Nevada e é o maior lago alpino da América do Norte, por volta da virada do século 20.

Sem uma forma confiável de saber quanto de água desceria da montanha a cada primavera, proprietários de casas e negócios à beira do lago, temendo inundações, imploraram aos operadores de barragens que liberassem a água mais cedo na primavera. No entanto, comunidades e agricultores, localizados na jusante, se opuseram, exigindo que a barragem fosse usada para reter o máximo de água possível, a fim de evitar escassez mais tarde no ano.

Em 1908, James Church, um professor de estudos clássicos da Universidade de Nevada, no Reno, cuja paixão por caminhar pelas montanhas despertou seu interesse pela ciência da neve, inventou um dispositivo que ajudou a resolver as chamadas Guerras da Água do Lago Tahoe: o coletor de neve Mt. Rose, nomeado em homenagem ao pico de um prolongamento da serra que se projeta para Nevada.

É um dispositivo bastante simples, com seções de tubo que se parafusam juntas, uma ponta afiada e marcas de medição ao longo do lado. Os pesquisadores medem a profundidade da neve mergulhando o coletor até o chão. Em seguida, eles pesam o tubo cheio em uma balança especializada para calcular o conteúdo de água da neve.

Church usava o dispositivo para fazer medições em vários pontos ao longo da cordilheira e calibrava suas previsões de água comparando suas leituras com os níveis crescentes e decrescentes do Lago Tahoe.

Funcionou tão bem que os Estados Unidos iniciaram um programa federal de pesquisa de neve em meados da década de 1930, que evoluiu para o programa atualmente conduzido pelo Serviço de Conservação de Recursos Naturais do Departamento de Agricultura (Department of Agriculture’s Natural Resources Conservation Service, ou NRCS). Durante o inverno, centenas de pesquisadores em todo o Oeste americano seguem para locais estabelecidos com raquetes de neve, esquis ou motoesquis para implantar seus coletores Mt. Rose, que mal mudaram ao longo de mais de um século.

Na década de 1960, o governo dos EUA também começou a instalar uma rede de locais de monitoramento permanente nas montanhas, agora conhecida como rede SNOTEL. Existem mais de 900 estações transmitindo continuamente leituras de estados do Oeste e do Alasca. Elas são equipadas com sensores que medem a temperatura do ar, a profundidade da neve e a umidade do solo, além de incluir “travesseiros” sensíveis à pressão que pesam a neve para determinar o conteúdo de água.

Os dados das pesquisas de neve e dos locais da SNOTEL seguem para relatórios de profundidade e conteúdo de água da neve que o NRCS publica, juntamente com previsões da quantidade de água que preencherá os rios e reservatórios durante a primavera e o verão.

Medindo a temperatura

Nenhum desses programas de pesquisa e monitoramento, no entanto, fornece a temperatura de toda a camada de neve.

A camada de neve da Serra Nevada pode atingir mais de seis metros de altura e a temperatura dentro dela pode variar bastante, especialmente na parte superior. Leituras realizadas em intervalos ao longo da camada podem determinar o que é conhecido como conteúdo frio, ou a quantidade de energia necessária para levar a camada de neve a uma temperatura uniforme de 0˚C.

Conhecer o conteúdo frio da camada de neve ajuda os pesquisadores a entender as condições sob as quais ela começará a derreter rapidamente, especialmente à medida que aquece na primavera ou após a chuva cair sobre ela.

Se a temperatura, por exemplo, estiver próxima de 0˚C, mesmo a vários metros de profundidade, alguns dias quentes podem facilmente iniciar o derretimento. Se, por outro lado, as medições de temperatura mostrarem um perfil mais frio no meio, a camada de neve estará mais estável e resistirá por mais tempo enquanto o clima aquece.

O problema é que medir a temperatura de toda a camada de neve tem sido, até agora, um trabalho difícil e demorado. Quando os pesquisadores o fazem, eles geralmente cavam fossos de neve até o chão e, em seguida, fazem as leituras com termômetros de sonda ao longo de uma parede interna.

Houve uma variedade de tentativas de fazer leituras contínuas remotas a partir de sensores presos a cercas, fios ou torres, que a camada de neve eventualmente enterra. O movimento e o peso da neve densa se deslocando tendem a quebrar os dispositivos ou a destruir as estruturas sobre as quais estão montados.

“Raramente duram uma temporada”, diz McAvoy.

Anne Heggli, professora de hidrometeorologia de montanha no DRI, teve a ideia de usar um dispositivo infravermelho para resolver esse problema durante uma visita ao campus do instituto, em 2019, quando soube que os pesquisadores de lá estavam usando um termômetro infravermelho de carne para fazer leituras da superfície da neve sem contato com ela.

Em 2021, Heggli começou a colaborar com a RPM Systems, uma empresa de fabricação de gadgets, para projetar um dispositivo infravermelho otimizado para as condições de campo da camada de neve. O profiler de temperatura é estreito o suficiente para caber em um buraco cavado pelos pesquisadores de neve e fica pendurado em um cordão marcado em incrementos de 10 centímetros.

No Heavenly, naquela manhã de abril, Bingham, cientista da equipe do DRI, foi descendo lentamente o dispositivo pelo buraco, anunciando as leituras de temperatura a cada marcação. McEvoy anotava tudo em uma folha de cálculo presa à sua prancheta, enquanto usava um termômetro de sonda para fazer suas próprias leituras dentro de um fosso de neve que a dupla havia cavado.

Eles estavam comparando as medições para avaliar a confiabilidade do dispositivo infravermelho em campo, mas o objetivo final era eliminar a necessidade de cavar fossos de neve. A esperança é que os pesquisadores estaduais e federais possam simplesmente carregar um profiler de temperatura da neve e deixá-lo cair nos buracos de pesquisa da camada de neve que já estão criando, para coletar leituras regulares da em toda a região montanhosa.

Em 2023, o Escritório de Recuperação dos Estados Unidos (US Bureau of Reclamation), a agência federal que opera muitas das barragens do país, financiou um projeto de pesquisa de três anos para explorar o uso dos dispositivos infravermelhos na determinação das temperaturas da camada de neve. Através dele, o DRI agora distribuiu dispositivos para 20 equipes de pesquisa de neve em Califórnia, Colorado, Idaho, Montana, Nevada e Utah, para testar seu uso em campo e complementar os dados da camada de neve que estão coletando.

O Laboratório de Neve

O projeto de pesquisa do DRI é uma parte de um esforço maior sobre as montanhas do Oeste.

Até o início de maio, a profundidade da neve havia caído de um pico de 2,9 metros, em abril, para 0,6 metros, no UC Berkeley Central Sierra Snow Lab, uma estrutura de madeira envelhecida situada nas altas montanhas ao noroeste do Lago Tahoe.

Megan Mason, cientista de pesquisa no laboratório, usou uma pá de esqui para desenterrar um trio de instrumentos do que restava da camada de neve com fossos atrás do edifício. Cada um deles possuía diferentes tipos de sensores, dispostos ao longo de uma viga de polímero resistente, projetada para suportar o peso e o movimento da camada de neve de Serra Nevada.

Ela estava retirando os dispositivos após realizar o último conjunto de observações da temporada, como parte de um esforço para desenvolver um sistema resiliente que possa sobreviver ao inverno e transmitir leituras cada hora.

O laboratório está trabalhando no projeto, denominado Iniciativa de Conteúdo Frio da Califórnia (California Cold Content Initiative), em colaboração com o Departamento de Recursos Hídricos do estado. O estado é o único do Oeste que optou por manter seu próprio programa de pesquisa de neve e administrar suas próprias estações de monitoramento permanentes, todas gerenciadas pelo departamento de água.

O plano é determinar quais instrumentos resistiram e funcionaram melhor neste inverno. Depois, eles poderão começar a testar as abordagens mais promissoras em vários outros locais na próxima temporada. Eventualmente, o objetivo é instalar os dispositivos em mais de cem estações de monitoramento de neve da Califórnia, diz Andrew Schwartz, o diretor do laboratório.

O NRCS (instituição do departamento de agricultura) está conduzindo uma pesquisa semelhante em locais selecionados do SNOTEL (a rede de locais de monitoramento permanente nas montanhas) equipados com um cabo de temperatura com esferas. Um desses cabos pode ser visto na estação Heavenly SNOTEL, próximo ao local onde McEvoy e Bingham cavaram seu poço, esticado verticalmente entre um braço estendido da torre principal e o solo coberto de neve.

Schwartz diz que os diferentes grupos de pesquisa estão se comunicando e colaborando abertamente nos projetos, e todos prometem fornecer informações complementares, expandindo o banco de dados de leituras de temperatura da camada de neve no Oeste.

Por décadas, agências e pesquisadores geralmente produziam previsões de água usando modelos de regressão relativamente simples, que traduziam a quantidade de na camada de neve para a que desceria da montanha, baseados, em grande parte, nas relações históricas entre essas variáveis.

Mas esses modelos estão se tornando menos confiáveis à medida que a crise climática altera as temperaturas, os níveis de neve, as taxas de derretimento e evaporação, além de deslocar os padrões climáticos alpinos para fora dos padrões históricos.

“À medida que temos anos que se afastam cada vez mais e com mais frequência da norma, os nossos modelos se mostram despreparados”, diz Heggli.

Inserir observações diretas de temperatura em modelos mais sofisticados que surgiram nos últimos anos, diz Schwartz, promete melhorar significativamente a precisão das previsões de água. Isso, por sua vez, deve ajudar as comunidades a lidarem com as secas e evitar que as barragens transbordem, mesmo enquanto as mudanças climáticas impulsionam padrões climáticos alternadamente mais úmidos, secos, quentes e estranhos.

Cerca de um quarto da população mundial depende da água armazenada na neve das montanhas e nas geleiras, e a atual crise ambiental está perturbando os ciclos hidrológicos que sustentam esses reservatórios naturais congelados em muitas partes do mundo. Portanto, quaisquer avanços em observações e modelagem poderiam trazer benefícios globais mais amplos.

Um clima sinistro

No entanto, há uma ameaça óbvia para esse progresso.

Mesmo que esses projetos funcionem tão bem quanto se espera, não está claro com que abrangência essas ferramentas e técnicas serão implantadas em um momento em que a Casa Branca está reduzindo pessoal nas agências federais, encerrando milhares de bolsas científicas e buscando eliminar dezenas de bilhões de dólares em financiamento nos departamentos de pesquisa.

A administração do presidente Donald Trump demitiu ou colocou em licença quase seis mil funcionários no Departamento de Agricultura (USDA), ou 6% da força de trabalho do órgão. Esses cortes chegaram aos escritórios regionais do NRCS, de acordo com reportagens de veículos locais e especializados.

Isso inclui mais da metade dos cargos no escritório de Portland, segundo O’Neill, o climatologista do estado. Essas reduções levaram um grupo bipartidário de legisladores a pedir ao Secretário de Agricultura a restauração das vagas, alertando que as perdas poderiam prejudicar os dados e análises de água que são cruciais para os setores de “agricultura, incêndios florestais, hidrelétricas, madeira e turismo do estado”, conforme noticiado pelo Statesman Journal.

Existem mais de 80 estações SNOTEL ativas no Oregon.

O receio é que não haja pessoas suficientes para para substituir baterias, painéis solares e sensores que estejam à deriva ou quebrados em todos esses locais, o que poderia rapidamente comprometer a confiabilidade dos dados ou interromper o fluxo de informações.

“Reduções de pessoal e orçamento no NRCS tornarão impossível manter os instrumentos SNOTEL e realizar observações manuais de rotina, levando à inoperabilidade da rede dentro de um ano”, alertaram os legisladores.

O Departamento de Agricultura e o NRCS não responderam às solicitações de comentário da MIT Technology Review.

Se os cortes federais reduzirem os dados provenientes das estações SNOTEL ou do trabalho federal de pesquisa de neve, o método infravermelho do DRI poderia, pelo menos, “ainda oferecer uma maneira simples de medir as temperaturas da camada de neve” em locais onde agências estaduais e regionais continuam a realizar pesquisas, diz McEvoy.

Mas a maioria dos pesquisadores enfatiza que o campo precisa de mais pesquisas, estações, sensores e leituras para entender como os ciclos climáticos e hídricos estão mudando mês a mês e de estação para estação. Heggli ressalta que deve haver amplo apoio bipartidário para programas que coletam dados sobre a camada de neve e fornecem as previsões de água das quais os agricultores e as comunidades dependem.

“É assim que contabilizamos um dos, senão ‘o’ recurso mais valioso que temos”, diz ela. “No Oeste, entramos em uma seca sazonal todo verão. Nossa camada de neve é o que vai se escoando e nos ajuda a passar por essa seca. Precisamos saber o quanto temos.”

Último vídeo

Nossos tópicos