Tarifas abrangentes podem ameaçar a recuperação da manufatura nos EUA
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Tarifas abrangentes podem ameaçar a recuperação da manufatura nos EUA

Elas não trarão a produção de volta e podem prejudicar a capacidade de realizar inovações no futuro.

Apesar do caos geopolítico e dos colapsos de mercado provocados pelo anúncio do presidente dos Estados Unidos Donald Trump sobre tarifas abrangentes – ou tarifaço, como vem sendo chamado no Brasil – para produtos internacionais, alguns apoiadores ainda esperam que a estratégia produza uma “era de ouro” da indústria americana. O próprio Trump insiste: “Os empregos e fábricas voltarão com força para o nosso país.”

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Embora seja possível que tarifas muito específicas ajudem a proteger alguns setores incipientes da manufatura americana, a crença no poder dessa medida vai contra a realidade do setor. E não é apenas a ideia de um retorno rápido ao poder econômico graças a fábricas que soltam fumaça e à capacidade repentina de montar iPhones baratos em grande escala que soa inacreditável. As tarifas abrangentes ignoram as complexidades das cadeias de suprimentos de hoje e a forma como os avanços tecnológicos estão mudando como e onde os produtos são feitos.

De fato, as altas tarifas mal elaboradas impostas pela administração podem prejudicar uma recente recuperação na manufatura dos EUA. Construir fábricas e as cadeias de suprimentos nas quais elas operam leva anos, até décadas, de investimentos constantes. Enquanto isso, as tarifas têm o impacto imediato de aumentar os custos para suprimentos críticos, muitos dos quais são importados, ajudando a aumentar os preços e, por sua vez, desacelerando a demanda.

Nada disso é bom para aqueles que planejam investir na manufatura dos EUA.

“Tarifas, em geral, como uma ferramenta para incentivar o tipo de manufatura que queremos nos EUA, são um péssimo instrumento”, diz Elisabeth Reynolds, professora de prática no MIT.

Reynolds, que foi conselheira do presidente Biden sobre manufatura e desenvolvimento econômico, afirma que as tarifas de Trump aumentarão os custos da manufatura nos EUA sem fornecer incentivos para “investimentos estratégicos nas tecnologias que nos preocupam para a segurança nacional e econômica.”

Willy Shih, professor da Harvard Business School, diz que as tarifas parecem “atos aleatórios de violência” em como prejudicam a manufatura e as cadeias de suprimentos. Porque as tarifas propostas até agora “são tão espalhadas e mudam com tanta frequência”, ele diz, “isso basicamente congela os investimentos. Quem vai fazer qualquer tipo de compromisso de investimento quando as coisas estão mudando tão rápido?”

Já existem indícios de que a perspectiva de tarifas generalizadas pode estar prejudicando o boom da manufatura nos EUA. Uma pesquisa amplamente observada chamada Índice de Gerentes de Compras, ou PMI, mostrou sinais precoces preocupantes de aumento nos custos para os fabricantes devido às tarifas. Outros indicadores, observados de perto por especialistas em políticas, incluindo pesquisas de fabricantes pelo Banco Federal Reserve de Nova York, o Richmond Fed e o Philadelphia Fed, também mostram uma perda de confiança entre os produtores dos EUA e quedas em novos pedidos e contratações.

Os efeitos a longo prazo das tarifas são, é claro, desconhecidos. Por um lado, os detalhes, quão grandes, por quanto tempo e sobre quais países, parecem estar mudando constantemente. E isso é uma grande parte do problema: para os fabricantes e investidores, a incerteza é o assassino dos planos de expansão, novas fábricas e até mesmo da pesquisa e desenvolvimento que alimenta novos produtos.

É essa incerteza, acima de tudo, que pode prejudicar uma reindustrialização ainda nos estágios iniciais para grande parte do país.

De fato, a manufatura nos EUA nos anos seguintes à pandemia de Covid-19 tem prosperado, ou pelo menos as bases para esse boom estão sendo construídas. Até os últimos meses, os gastos com a construção de fábricas estavam disparando. Novas instalações para construir baterias, células solares, semicondutores, motores elétricos e outras novas tecnologias estão surgindo em todo o país, ou estavam, até muito recentemente.

“Nunca tivemos mais inícios de construção nos Estados Unidos do que tivemos nos últimos quatro anos”, diz Milo Werner, sócio da firma de capital de risco DCVC. “Estamos em um momento incrível em que podemos realmente reconstruir a ‘Main Street’ [empresas e comércios locais] da América e trazer de volta a base industrial.”

A mudança para reforçar a manufatura nos EUA foi alimentada por uma sensação no início da pandemia de que o país precisava recuperar a capacidade de fazer produtos e tecnologias críticas. O declínio da manufatura nos EUA havia se tornado óbvio. O apoio federal para reconstruir a base industrial veio em uma série de projetos de lei aprovados durante a administração Biden, incluindo o CHIPS and Science Act (conhecida no Brasil como Lei dos Chips) e o projeto de lei de clima.

Ao mesmo tempo, as oportunidades oferecidas pelos avanços em inteligência artificial e automação geraram um apetite por novos investimentos entre muitos fabricantes. Muitas dessas tecnologias estão apenas começando a ser implantadas, mas prometem uma maneira para os produtores dos EUA finalmente se tornarem mais competitivos com aqueles em economias de baixos salários.

Se as tarifas de Trump desacelerarem ou até reverterem esse progresso, o impacto no futuro econômico e tecnológico do país pode ser devastador.

Há muitas razões para desejar uma base industrial mais forte nos EUA. Mas não se trata principalmente de termos inúmeros empregos bem remunerados para aqueles com apenas o ensino médio e pouca formação técnica, apesar do que muitos políticos irão dizer. Esses dias já se foram em grande parte.

Os empregos na manufatura representam pouco menos de 10% do total de empregos nos EUA. Essa porcentagem não mudou muito nas últimas décadas—nem é provável que cresça muito nos próximos anos, mesmo que a produção manufatureira aumente, pois a automação e outras ferramentas digitais avançadas provavelmente reduzirão a demanda por trabalhadores humanos.

Ainda assim, a manufatura é crítica para o futuro da economia dos EUA de outras maneiras. A invenção de novos produtos e processos de produção se beneficia imensamente de uma conexão íntima com as capacidades e a expertise em manufatura. Em resumo, suas chances de criar com sucesso um novo tipo de bateria ou chip de IA são muito maiores se você estiver familiarizado com os detalhes da fabricação desses produtos.

É uma lição que foi frequentemente esquecida na década de 2000, quando empresas, lideradas por gigantes do Vale do Silício como a Apple, focaram no design e no marketing, deixando o trabalho de produção para a China e outros países. A estratégia gerou enormes lucros, mas prejudicou severamente a capacidade dos Estados Unidos de avançar para a próxima geração de tecnologia. Em 2010, o cofundador da Intel, Andy Grove, alertou famosamente: “Abandonar a manufatura ‘commodity’ de hoje pode te excluir da indústria emergente de amanhã.”

Motivado por essas preocupações, em 2011, visitei fabricantes por todo o país, desde gigantes industriais como GE e Dow Chemical até startups com novas tecnologias empolgantes, e escrevi “Podemos Construir as Inovações de Amanhã?”. Nos anos seguintes, a resposta à pergunta do título provou ser não. A GE e a Dow abandonaram seus empreendimentos mais inovadores em baterias e energia solar, enquanto quase nenhuma das startups sobreviveu.

Os EUA eram ótimos em inventar coisas novas, mas péssimos em produzi-las.

A esperança é que essa situação esteja mudando à medida que o país fortalece suas capacidades de manufatura. As apostas são particularmente altas. O valor de produzir bens estratégicos e suas cadeias de suprimentos domesticamente, como biomedicina, minerais críticos, e semicondutores avançados, está se tornando óbvio para políticos e economistas.

Se quisermos transformar as descobertas científicas de hoje em energia, chips, medicamentos e tecnologias militares chave, como drones, em produtos reais, os EUA precisarão mais uma vez ser uma potência em manufatura.

Tarifas limitadas poderiam ajudar. Isso é especialmente verdade, diz Werner da DCVC, em algumas áreas estrategicamente importantes marcadas por um histórico de práticas comerciais desleais. Ímãs produzidos com minerais de terras raras, encontrados em tudo, desde motores elétricos até drones e robôs, são um exemplo. “Décadas atrás, a China inundou a economia dos EUA com ímãs de baixo custo,” diz ela. “Todos os nossos fabricantes domésticos de ímãs faliram.”

Agora, ela sugere, as tarifas poderiam oferecer proteção de curto prazo para as empresas dos EUA que estão desenvolvendo técnicas avançadas de manufatura para fabricar esses produtos, ajudando-as a competir com as versões de baixo custo feitas na China. “Você não vai poder depender das tarifas para sempre, mas é um exemplo do importante papel que as tarifas podem desempenhar,” diz ela.

Até Shih, de Harvard, que considera as tarifas abrangentes de Trump “loucas,” diz que versões muito limitadas poderiam ser uma ferramenta útil em algumas circunstâncias para dar proteção temporária ao mercado para fabricantes domésticos que estão desenvolvendo tecnologias críticas em estágio inicial. Mas, ele acrescenta, essas tarifas precisam ser “muito direcionadas” e rapidamente eliminadas.

Para o uso bem-sucedido das tarifas, “você realmente tem que entender como o comércio global e as cadeias de suprimentos funcionam,” diz Shih. “E acredite em mim, não há evidências de que essas pessoas realmente entendem como isso funciona.”

O que está realmente em jogo quando falamos sobre a reindustrialização do país é o futuro de inovação. O portfólio de tecnologias emergentes de universidades e startups em produção e armazenamento de energia, materiais, computação e biomedicina talvez nunca tenha sido tão rico. Enquanto isso, a IA e a robótica avançada podem em breve transformar nossa capacidade de fabricar essas tecnologias e produtos.

O perigo é que escolhas políticas voltadas para o passado, voltadas para uma era de manufatura ultrapassada, possam destruir esse progresso promissor.

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