Um documento que não havia sido divulgado anteriormente, distribuído pelo alto funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos Darren Beattie, revela um esforço abrangente para descobrir todas as comunicações entre a equipe de um pequeno escritório governamental focado em desinformação online e uma longa lista de figuras públicas e privadas — muitas das quais são alvos históricos da direita política.
O documento, compartilhado inicialmente com cerca de uma dúzia de funcionários do Departamento de Estado no início de março, solicitou e-mails e outros registros da equipe com ou sobre uma série de indivíduos e organizações que monitoram ou publicam sobre desinformação estrangeira — incluindo a jornalista da Atlantic, Anne Applebaum, o ex-funcionário de cibersegurança dos EUA, Christopher Krebs, e o Stanford Internet Observatory — ou que criticaram o presidente Donald Trump e seus aliados, como o comentarista conservador anti-Trump, Bill Kristol.
O documento também solicita todas as comunicações da equipe que mencionem Trump ou pessoas em seu círculo, como Alex Jones, Glenn Greenwald e Robert F. Kennedy Jr. Além disso, ele exige uma busca por comunicações com uma longa lista de palavras-chave, incluindo “Pepe the Frog”, “incel”, “q-anon”, “Black Lives Matter”, “teoria da substituição”, “extrema-direita” e “infodemia”.
Para várias pessoas que receberam ou viram o documento, as amplas solicitações por informações não redigidas soaram como uma “caça às bruxas”, diz um oficial — uma caça que poderia colocar em risco a privacidade e a segurança de inúmeros indivíduos e organizações.
Beattie, nomeado por Trump em fevereiro para o cargo de subsecretário interino para diplomacia pública, disse aos funcionários do Departamento de Estado que seu objetivo ao buscar esses registros era um “document dump” (quando se divulga um grande volume de arquivos e informações) no estilo dos “Twitter files”. O objetivo era “reconstruir a confiança com o público americano”, de acordo com um funcionário do Departamento de Estado que ouviu os comentários. (Beattie estava se referindo aos documentos internos do Twitter que foram divulgados após a compra da plataforma por Elon Musk, na tentativa de provar que a empresa havia silenciado conservadores. Embora o esforço tenha fornecido mais detalhes sobre os desafios e erros que o Twitter já havia admitido, não produziu nenhuma prova contundente.)
O documento, datado de 11 de março de 2025, aborda especificamente os registros e comunicações do hub Integridade da Informação e Combate à Manipulação e Interferência de Informações Estrangeiras (Counter Foreign Information Manipulation and Interference – R/FIMI), um pequeno escritório no Departamento de Estado na área de diplomacia pública que acompanhava e combatia campanhas de desinformação estrangeira. Ele foi criado após o fechamento do Centro de Engajamento Global (Global Engagement Center – GEC) no final de 2024. A MIT Technology Review divulgou a notícia no início deste mês de que o R/FIMI também seria fechado.
Alguns membros da equipe do R/FIMI estavam na reunião onde o documento foi inicialmente compartilhado, assim como advogados do Departamento de Estado e funcionários do Bureau de Administração do departamento, responsáveis por conduzir buscas para atender a solicitações de registros públicos.
Também estão incluídos entre as quase 60 pessoas e organizações envolvidas na busca de Beattie nomes como Bill Gates; a plataforma de jornalismo de código aberto Bellingcat; o ex-agente especial do FBI, Clint Watts; Nancy Faeser, ministra do Interior da Alemanha; Daniel Fried, oficial de carreira do Departamento de Estado e ex-embaixador dos EUA na Polônia; Renée DiResta, especialista em desinformação online que liderou pesquisas no Stanford Internet Observatory; e Nina Jankowicz, pesquisadora de desinformação que liderou brevemente o Disinformation Governance Board no Departamento de Segurança Interna dos EUA.
Quando informados sobre sua inclusão na solicitação de registros, várias pessoas expressaram preocupação com a existência de tal lista em uma instituição americana. “Quando estava no governo, nunca fiz nada assim”, diz Kristol, ex-chefe de gabinete do vice-presidente Dan Quayle. “Qual seria a razão inocente para fazer isso?”
Fried ecoa esse sentimento. “Passei 40 anos no Departamento de Estado e nunca coletei nomes nem solicitei registros de e-mails”, diz Fried. “Nunca ouvi falar de algo assim” — pelo menos não no contexto americano, ele esclarece. Isso o lembrou de “agentes do Partido Comunista da Europa Oriental observando a burocracia não confiável”.
Ele acrescenta: “Isso também se aproxima da compilação de uma lista de inimigos.”
Focando no “complexo industrial da censura”
Tanto o Global Engagement Center (GEC) quanto o State Department’s Counter Foreign Information Manipulation and Interference (R/FIMI), focavam no monitoramento e combate a campanhas de desinformação estrangeira de países como Rússia, China e Irã, entre outros, mas o GEC foi frequentemente acusado — e até processado — por críticos conservadores que alegavam que o centro facilitava a censura das opiniões conservadoras americanas. Um juiz rejeitou uma dessas alegações contra o GEC em 2022 (enquanto encontrou informações que outras partes da administração Biden exerceram pressão indevida sobre plataformas de tecnologia).
Beattie também promoveu pessoalmente essas visões. Antes de ingressar no Departamento de Estado, ele fundou o Revolver News, um site que defende pontos de vista de extrema-direita que frequentemente ganham força em certos círculos conservadores. Entre as ideias promovidas no Revolver News está a de que o GEC fazia parte de um “complexo industrial da censura” voltado para suprimir as vozes conservadoras americanas, embora a missão do GEC fosse desinformação estrangeira. Essa ideia ganhou mais força; o Comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes realizou uma audiência intitulada “O Complexo Industrial da Censura: A Necessidade de Salvaguardas da Primeira Emenda no Departamento de Estado”, no dia 1º de abril, focada no GEC.
A maioria das pessoas na lista parece ter se concentrado, em algum momento, no monitoramento ou combate à desinformação de maneira geral, ou no enfrentamento de falsas alegações específicas, incluindo aquelas relacionadas à eleição de 2020. Alguns dos indivíduos parecem ser principalmente críticos de Trump, Beattie ou de outros no ecossistema de mídia de direita. Muitos deles foram alvo das queixas públicas de Trump por anos. (Trump chamou, por exemplo, Krebs de “um ator de má-fé significativo” em uma ordem executiva direcionada a ele no início deste mês.)
Beattie solicitou especificamente “todos os documentos, e-mails, correspondências ou outros registros de comunicações entre funcionários, contratados, subcontratados ou consultores do GEC ou R/FIMI” desde 2017 com todos os indivíduos mencionados, bem como comunicações que apenas os mencionassem. Ele também solicitou comunicações que mencionassem qualquer uma das organizações listadas.
Por fim, ele solicitou uma lista de registros adicionais não redigidos da agência — incluindo todos os subsídios e contratos do GEC, bem como subcontratos, que são particularmente sensíveis devido aos riscos de retaliação para os subbeneficiários, que frequentemente trabalham em jornalismo local, checagem de fatos ou organizações pró-democracia sob regimes repressivos. Ele também pediu “todos os documentos mencionando” a Election Integrity Partnership, uma colaboração de pesquisa entre acadêmicos e empresas de tecnologia que tem sido alvo de críticas da direita.
Diversos funcionários do Departamento de Estado chamam as solicitações de registros de “inusitadas” e “impróprias” em seu alcance. A MIT Technology Review conversou com três pessoas que viram pessoalmente o documento, além de duas outras que estavam cientes dele; concordamos em permitir que falassem anonimamente devido ao medo de retaliação.
Embora reconheçam que indicados políticos anteriores já fizeram solicitações de informações ocasionalmente através do sistema de gestão de registros, a solicitação de Beattie foi algo totalmente diferente.
Nunca antes “um indicado político” havia buscado “vasculhar sete anos de e-mails de toda a equipe para ver se algo negativo foi dito sobre seus amigos”, diz um funcionário.
Outro funcionário chama isso de “projeto pessoal” de Beattie.
Transparência seletiva
Beattie entregou a solicitação, que ele enquadrou como uma iniciativa de “transparência”, aos funcionários do Departamento de Estado em uma sala de conferências na sede em Washington, D.C., em uma terça-feira à tarde no início de março, na forma de um pacote de 11 páginas intitulado “Inquérito de [Funcionário Sênior] Beattie para Registros do GEC/R/FIMI”. Os documentos foram impressos, em vez de enviados por e-mail.
Rotulado como “sensível, mas não classificado”, o documento detalha as solicitações de Beattie em 12 pontos separados, mas às vezes repetitivos. No total, ele solicitou comunicações sobre 16 organizações, incluindo o Berkman Klein Center de Harvard e a Cybersecurity and Infrastructure Security Agency (CISA) do Departamento de Segurança Interna dos EUA, além de comunicações com e sobre 39 indivíduos.
Evidentemente, isso inclui vários jornalistas: além de Bellingcat e Applebaum, o documento também solicita comunicações com a repórter sênior da NBC News, Brandy Zadrozny.
Defensores da liberdade de imprensa expressaram preocupação sobre a inclusão de jornalistas na lista, assim como sobre a possibilidade de suas comunicações serem divulgadas ao público, o que vai “consideravelmente além do escopo do que… investigações de vazamentos no passado normalmente se concentraram”, diz Grayson Clary, advogado da Reporters Committee for Freedom of the Press. Em vez disso, o esforço parece ser “uma tática projetada para… tornar muito mais difícil para jornalistas estabelecerem esses relacionamentos com fontes no início”.
Beattie também solicitou uma busca por comunicações que mencionassem Trump e mais uma dúzia de outras figuras proeminentes de direita. Além de Jones, Greenwald e “RFK Jr.”, a lista inclui “Don Jr.”, Elon Musk, Joe Rogan, Charlie Kirk, Marine Le Pen, “Bolsonaro” (que poderia se referir tanto a Jair Bolsonaro, o ex-presidente brasileiro, quanto ao seu filho Eduardo, que busca asilo político nos EUA), e o próprio Beattie. Também foi solicitada uma busca por 32 palavras-chave da direita relacionadas a aborto, imigração, negação das eleições e 6 de janeiro, sugerindo um esforço determinado para encontrar funcionários do Departamento de Estado que sequer tenham discutido tais assuntos.
(Funcionários dizem duvidar que Beattie encontrará muita coisa, a menos que, como um deles diz, sejam “consultas anteriores [FOIA] de pessoas como Beattie” ou discussões sobre “alguma narrativa russa ou da RPC [China] que inclua algumas dessas coisas.”)
Diversas fontes afirmam que funcionários do Departamento de Estado levantaram alarmes internamente sobre as solicitações de registros. Eles se preocupavam com a sensibilidade e impropriedade do amplo escopo das informações solicitadas, especialmente porque os registros seriam entregues sem redações, além de como a busca seria conduzida: através do sistema de gestão de arquivos eRecords, que facilita para a equipe administrativa a busca e recuperação dos e-mails dos funcionários do Departamento de Estado, normalmente em resposta a solicitações FOIA.
Isso parecia, segundo eles, um poderoso mau uso do sistema de registros públicos — ou, como Jankowicz, a pesquisadora de desinformação e ex-funcionária do DHS, colocou, “armazenar o acesso [que Beattie tem] às comunicações internas para prejudicar a vida das pessoas.”
“Cheirava mal a quilômetros de distância”, diz um funcionário. “Isso poderia ser usado para retaliação. Isso poderia ser usado para qualquer tipo de propósito impróprio, e nossos comitês de supervisão deveriam ser informados sobre isso.”
Outro funcionário expressou preocupações sobre a solicitação de informações sobre subbeneficiários da agência — que frequentemente estavam in loco em países repressivos e cujas informações eram cuidadosamente guardadas e não compartilhadas digitalmente, ao contrário das listas públicas de contratados e beneficiários, normalmente disponíveis em sites como Grants.gov ou USAspending.gov. “Tornar público que [eles] receberam dinheiro dos Estados Unidos colocaria um alvo sobre eles”, explica essa pessoa. “Mantivemos essa informação muito segura. Nem mesmo enviávamos nomes de subcontratos por e-mail.”
Várias pessoas familiarizadas com o caso dizem que, no início de abril, Beattie já havia recebido muitos dos documentos que solicitou, recuperados por meio do eRecords, assim como uma lista de beneficiários. Uma fonte afirma que a lista mais sensível de subbeneficiários não foi compartilhada.
Nem o Departamento de Estado nem Beattie responderam aos pedidos de comentário. Um porta-voz da CISA enviou um e-mail dizendo: “Não comentamos sobre documentos intergovernamentais e encaminharemos você de volta ao Departamento de Estado.” Entramos em contato com todos os indivíduos cujas comunicações foram solicitadas e que estão nomeados aqui; muitos recusaram-se a comentar oficialmente.
O “chilling effect”, ou “efeito inibidor”
Cinco semanas após Beattie fazer suas solicitações de informações, o Departamento de Estado fechou o R/FIMI.
Uma hora depois que os membros da equipe foram informados, o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, publicou um post no blog anunciando a notícia no Federalist, um dos veículos que processou o GEC por alegações de censura. Ele então discutiu, em uma entrevista com a influente personalidade da internet de direita Mike Benz, os planos para Beattie liderar um “esforço de transparência.”