Tecnologia, segurança e o imponderável humano: quando o cuidado não pode ser automatizado
Humanos e tecnologia

Tecnologia, segurança e o imponderável humano: quando o cuidado não pode ser automatizado

Este artigo discute como a tecnologia está transformando a cultura de segurança no trabalho, sem substituir o papel essencial da motivação, consciência, atitude e liderança humana. A partir de exemplos reais e de análises éticas sobre o uso de inteligência artificial, wearables e sensores, o texto examina os limites da automação em ambientes críticos. Mostra que, embora a IA consiga prever riscos, só a presença humana é capaz de atribuir sentido e cuidado. Propõe um pacto ético no qual dados servem para proteger e não punir, e líderes são formados para escutar e agir. O futuro da segurança é híbrido: digital nos sistemas e humano na essência.

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Vivemos um momento em que a inteligência artificial é capaz de prever falhas antes mesmo que os erros aconteçam. Em muitas empresas, já é possível identificar um risco operacional pela alteração da frequência cardíaca de um colaborador. Sensores instalados em capacetes, cintos e coletes estão conectados a sistemas que disparam alertas automáticos. Em alguns casos, desligam até a operação.

A empresa finlandesa Framery incorporou sensores nos assentos de suas cabines acústicas de escritório para monitorar sinais vitais, como frequência cardíaca e respiratória. Esses sensores detectam níveis de estresse dos usuários, permitindo que supervisores sejam alertados sobre possíveis situações de sobrecarga emocional. Mas, não é só na Finlândia (eleita o país mais feliz do mundo pela oitava vez consecutiva no Relatório Mundial da Felicidade de 2025, publicado pela Organização das Nações Unidas – ONU) que existe esta tecnologia, aqui no Brasil já temos a Neoenergia, que implementou um projeto-piloto onde operadores de subestações em Sobral (CE), Fernão Dias (SP) e Baixo Iguaçu (PR) utilizam esses dispositivos acoplados aos capacetes, permitindo que especialistas remotos acompanhem as atividades em tempo real, oferecendo suporte e orientação durante as operações.

Outro exemplo é o Serviço Social da Indústria (SESI), que desenvolveu o Drive 4.0, uma iniciativa voltada à saúde de motoristas de veículos industriais. O projeto integra sensores biométricos, como monitores de frequência cardíaca e acelerômetros, instalados em wearables (relógios inteligentes) e em bancos dos veículos.

Sim, a tecnologia pode salvar vidas. Mas há uma pergunta que insiste em permanecer — incômoda e urgente: quem cuida de quem cuida (engenheiros, técnicos de segurança do trabalho e saúde ocupacional e uma equipe cada vez mais multidisciplinar)?

A cultura de segurança — aquela que garante não apenas que acidentes sejam evitados, mas que as pessoas se sintam respeitadas, valorizadas e escutadas — não nasce de sensores. Ela nasce de valores. De decisões conscientes. De líderes que olham nos olhos. De ambientes onde o medo dá lugar à confiança.

A Shell já dizia isso há mais de 20 anos com o programa Hearts and Minds: segurança é escolha, cultura e, acima de tudo, coerência entre discurso e prática. Não há inovação tecnológica que funcione em ambientes de silêncio, assédio ou negação da realidade emocional das equipes.

Tecnologia pode prever. Mas só o humano pode perceber.

Os sistemas digitais que hoje monitoram condições ambientais, posturas, níveis de ruído e padrões de movimento são aliados poderosos. Mas ainda estamos aprendendo a não confundir “monitorar” com “cuidar”.

A verdadeira virada de chave acontece quando usamos a tecnologia para empoderar — e não para punir. Quando um colaborador entende que seu dado fisiológico está sendo usado para preservar sua saúde, e não para aumentar sua carga horária. Quando a liderança é transparente sobre os limites da IA. Quando o trabalhador pode errar, aprender e crescer — e não apenas ser corrigido por uma máquina.

Wearables e dashboards não criam cultura. Relacionamentos criam.

Há um entusiasmo crescente com as soluções digitais para segurança do trabalho. E com razão: estudos mostram que treinamentos com realidade virtual aumentam a retenção de conteúdo e reduzem falhas operacionais. Plataformas gamificadas engajam equipes com rankings, desafios e recompensas. Dados preditivos reduzem drasticamente a exposição a riscos. Mas ainda assim, os maiores acidentes da história industrial ocorreram em ambientes que tinham tecnologias avançadas, mas culturas negligentes.

Por quê? Porque tecnologia não muda cultura — só quem muda cultura são as pessoas. Cultura segura não se programa. Se constrói. Na escuta. Na consistência. No exemplo. Na adequação de valores. Na mudança de atitude.

Segurança não é ausência de acidente. É presença de sentido.

Não basta que o trabalhador volte para casa sem lesões. É preciso que ele volte inteiro. Sentindo que sua vida foi respeitada. Que sua dignidade foi reconhecida. Que seu medo foi escutado. E que seu esforço não virou apenas uma métrica em um dashboard.

É isso que o Hearts and Minds lembra: comportamento seguro depende de valores e de motivação, não de imposição ou norma. De um ambiente em que cada um assume a responsabilidade pelo outro — não por obrigação, mas porque faz sentido. Porque se importa com a sua vida e com a vida do outro.

O coração da segurança no trabalho não é feito de silício, mas de valores. A Shell já dizia: “você não muda uma cultura com regras, mas com significado”. E nesse novo mundo de sensores e códigos, o desafio é resgatar o sentido.

Três prioridades para o futuro da cultura de segurança baseada em tecnologia:

  •  Transparência nos dados: os colaboradores precisam saber o que está sendo monitorado, porque e com que finalidade. Isso é o que sustenta a confiança.
  • Formação crítica para lideranças: o uso da tecnologia de segurança exige habilidades interpretativas, éticas e de comunicação.
  •  Humanização dos sistemas: tecnologias devem ser desenhadas com empatia. Um alerta de risco deve ser compreensível, contextual e orientador — não uma sirene despersonalizada.

A tecnologia pode ajudar a medir e sinalizar. Mas é o humano que atribui sentido. É o humano que acolhe. E é o humano que transforma.

O futuro da segurança é híbrido: digital no sistema, humano na essência.

Projeções de analistas como a McKinsey e a Deloitte indicam que, até 2030, mais de 70% dos processos operacionais em indústrias críticas terão algum tipo de sistema de segurança autônomo. Ou seja: máquinas que tomam decisões sem mediação humana.

Parece promissor. Mas em ambientes imprevisíveis, a rigidez algorítmica pode ser um risco. Esses sistemas podem falhar ao enfrentar situações não previstas durante o processo de treinamento, destacando a necessidade de supervisão humana contínua e de abordagens que garantam a robustez e a segurança das aplicações de IA em contextos críticos. A IA pode encontrar soluções inesperadas para problemas, o que pode resultar em consequências catastróficas se essas soluções não forem alinhadas com as intenções humanas. Além disso, a complexidade crescente dos sistemas de IA pode levar a modos de falha emergentes que são difíceis de prever e controlar, o que pode custar vidas, além de abalo ao patrimônio.

Será que estamos criando sistemas de segurança que inibem a adaptação humana?

Ou podemos usar essa tecnologia justamente para reforçar a autonomia responsável?

Devido a essas limitações, especialistas enfatizam a necessidade de manter a supervisão humana em sistemas críticos. A combinação de capacidades humanas e algorítmicas pode ajudar a mitigar riscos, garantindo que decisões sejam tomadas com base em julgamento contextual e empatia, aspectos que os sistemas de IA ainda não conseguem replicar plenamente.

De acordo com a Occupational Safety and Health Administration (OSHA), nos Estados Unidos, uma das causas mais frequentes de acidentes graves em ambientes industriais é a falha na comunicação de riscos — mesmo em locais altamente automatizados. Já estudos da National Safety Council (NSC) mostram que programas de segurança baseados em comportamento reduzem em até 70% os incidentes, especialmente quando combinados com culturas organizacionais que estimulam feedback, confiança e participação ativa dos colaboradores. Esses dados reforçam a tese central deste artigo: tecnologia é meio, não fim em si própria. Nenhum sensor, algoritmo ou IA substitui o impacto real de uma equipe consciente e bem liderada, emocionalmente segura e treinada para perceber o que as máquinas ainda não veem — o imponderável humano.

O caminho mais promissor parece ser híbrido. A tecnologia detecta, alerta e orienta, mas a decisão final — inclusive sobre como interpretar esse alerta — precisa continuar nas mãos de pessoas conscientes, treinadas e cuidadas.

Estamos diante de um ponto de inflexão. A segurança do trabalho não é mais um campo técnico — é um campo ético. É sobre decisões. É sobre como queremos conviver e sobre o que estamos dispostos a fazer ou ignorar.

Nos próximos anos, veremos a IA decidindo sobre permissões de operação, drones auditando EPIs e plataformas automatizadas prescrevendo pausas por fadiga etc. Mas também veremos — e já vemos — pessoas adoecendo em ambientes “seguros”, mas emocionalmente tóxicos.

Não basta proteger o corpo. É preciso preservar a alma do trabalho.

Para onde vamos a partir daqui?

Três perguntas que líderes e organizações precisam se fazer — urgentemente:

1. Estamos usando a tecnologia para controlar ou para cuidar?

2. Nossos dados estão a serviço da proteção ou da pressão por resultados?

3. Temos coragem de construir ambientes em que as pessoas possam se sentir vulneráveis — sem medo?

Se a resposta for “não sei” ou “ainda não”, então há muito trabalho a fazer.

Porque no fim do dia, a cultura de segurança não se mede apenas em taxas de acidentes. Ela se revela nos silêncios das equipes. Nos turnos em que ninguém questiona nada. No colaborador que não denuncia o risco porque não acredita que alguém vai escutar.

Nenhuma IA será capaz de corrigir o que uma liderança ausente deixou de construir.

É preciso um novo pacto: usar sensores para empoderar, dados para aprender e algoritmos para proteger — não para punir. O futuro da segurança é digital, sim. Mas será seguro apenas se for, acima de tudo, humano, porque a tecnologia ainda não sabe cuidar por conta própria!

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