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O cenário da saúde no Brasil reflete as desigualdades socioeconômicas que assolam o país. A maior parte da população brasileira não tem acesso aos serviços privados e, entre os grupos que têm condições de usufruir do sistema de saúde suplementar, predominam os de pessoas brancas, com maiores índices de renda e escolaridade. Isso implica diretamente em restrição na oferta de tecnologias e terapias inovadoras a grupos socialmente vulneráveis.
Segundo números divulgados em junho de 2023 pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Brasil possui 50,7 milhões de beneficiários de planos privados de assistência médica, com ou sem odontologia. O dado representa uma taxa de cobertura de apenas 26,17% da população brasileira. Ainda de acordo com a agência, do total de beneficiários, 47,8 milhões contratam o serviço por meio de planos coletivos, ou seja, vinculados a uma empresa, sindicato ou associação.
Além disso, segundo o estudo “Perfil, características do emprego e avaliação dos beneficiários de assistência médica no Brasil: Análise da Pesquisa Nacional de Saúde”, publicado em 2019 pelo Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), 61% dos beneficiários se autodeclararam brancos, 30% pardos, 7% pretos, 1% amarelos e 0,2% indígenas.
Ainda de acordo com a pesquisa, em 2019, a maior parte dos beneficiários era formada por pessoas casadas (42%), com rendimento médio acima de dois salários-mínimos (47%), ensino médio ou superior completo (66%), residentes na região Sudeste (56%) e em áreas urbanas (97%).
O levantamento foi feito com base em microdados disponibilizados pela Pesquisa Nacional de Saúde e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para José Cechin, superintendente-executivo do IESS, o estudo aponta a necessidade de debater o perfil sociodemográfico de quem usufrui de planos de saúde e de entender as razões pelas quais grupos socioeconomicamente vulneráveis ocupam as menores porcentagens entre os beneficiários dos serviços.
“O estudo revela a desigualdade no país, que não se resolve apenas pelo plano de saúde, mas por meio de políticas públicas de saúde, emprego, cotas. Revela informações para que quem toma decisões na área da saúde tenha mais dados, mais informações. Os dados estavam no IBGE. A gente achou a informação”, ressalta.
O superintendente do IESS também pontuou que as informações sobre saúde suplementar estão diretamente ligadas ao cenário de saúde da população brasileira como um todo e destacou a importância da produção de dados sobre o setor. “Não dá para isolar saúde suplementar da saúde do brasileiro. Estamos sempre olhando como esse setor pode contribuir para produzir uma visão mais ampla, análises, estudos, publicações, artigos, aprofundar conhecimento”, avalia Cechin.
Saúde suplementar x emprego formal
A necessidade de reflexão sobre o perfil dos beneficiários de planos de saúde também é abordada por Fernando Aith, diretor-geral do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador das áreas de direito à saúde e democracia sanitária. Aith pontua que as desigualdades socioeconômicas são justamente as razões pelas quais grande parte dos brasileiros é excluída desses serviços.
De acordo com relatório divulgado em março deste ano pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), elaborado com dados do IBGE, 44% da força de trabalho no Brasil em 2022 era composta por mulheres. Por outro lado, até o ano passado, elas também representavam a maioria entre os desempregados (55,5%).
Os números também apontam que, em 2022, as mulheres ganhavam, em média, 21% a menos que os homens, mas ocupavam o posto de chefes de família em 34,2% dos lares com filhos. Além disso, de acordo com a pesquisa, no ano passado, mães solteiras eram chefes de família em 29% dos domicílios brasileiros.
Aith explica que, quando há desestabilidade socioeconômica nos lares brasileiros, o acesso à saúde suplementar é afetado. “Grande parte do público [de beneficiários] é vinculada a empresas. Quando aumenta muito o número de desemprego formal, diminui o número de usuários de saúde suplementar. Você tem um custo de mensalidade que precisa ser pago. Exige uma renda constante, permanente, que nem sempre as pessoas conseguem manter”, explica o pesquisador.
Pacientes com doenças raras enfrentam caminho árduo
O cenário se agrava ainda mais quando a chefe de família é paciente de alguma doença rara. De acordo com o Ministério da Saúde, são consideradas raras as doenças que afetam até 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos. No Brasil, 13 milhões de pessoas vivem com essas condições.
A permanência de pacientes no mercado de trabalho formal pode ser prejudicada quando a doença traz sequelas graves e potencialmente debilitantes. Um dos casos emblemáticos é o distúrbio do espectro da neuromielite óptica (DNMO), doença autoimune rara, causada por surtos graves e recorrentes no sistema nervoso central (SNC).
Sem o tratamento adequado, a doença pode causar incapacidades permanentes, como perda de visão e paralisia; e, nos casos mais graves, levar à morte. Estudos sobre a DNMO indicam que ela é mais predominante em grupos socialmente mais vulneráveis, como mulheres e negros, população que tem os piores indicadores de renda e emprego, conforme apontam dados do IBGE.
A doença é nove vezes mais comum em mulheres que em homens, e tem prevalência e incidência em pessoas não-brancas. Os dados chamam atenção para as dificuldades para custear os tratamentos contra a doença. Custos associados à DNMO são aproximadamente dez vezes maiores durante os períodos ativos do distúrbio que durante períodos inativos.
A maior parte dos gastos desses pacientes é com hospitalização, e 81,5% dos pacientes relataram surtos que demandaram tratamento hospitalar. Os dados são do artigo “Distúrbio do Espectro da Neuromielite Óptica: experiência dos pacientes e qualidade de vida” (2019). Além disso, segundo o artigo “Avaliação de Comorbidades e uso de Recursos de Saúde entre Pacientes com Neuromielite Óptica Altamente Ativa”, também há custos diretos de cuidados de saúde — que são três vezes maiores do que os de pacientes que não têm a doença.