Qual é o real valor das tecnologias se colocarmos o paciente no centro do problema?
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Qual é o real valor das tecnologias se colocarmos o paciente no centro do problema?

O amplo acesso à informação médica criou uma geração cada vez mais envolvida em seus cuidados de saúde. Essa troca de informações com os doentes pode contribuir com a indústria de inovação em saúde.

Historicamente, os ganhos em participação social na política e nos direitos humanos foram conquistados por meio de grandes rupturas, conflitos e revoluções. Durante séculos, o ideal democrático ficou limitado à elite com maior renda e escolaridade, até o surgimento dos movimentos operários, com revoltas que mudaram as características desses regimes a partir do século XX. Nesse campo, a área de saúde evoluiu, mas traz peculiaridades que dificultam ainda mais os ganhos em participação social. Um abismo de conhecimento está presente entre dois extremos: de um lado, cientistas, pesquisadores, profissionais de saúde e formuladores de políticas públicas, detentores do conhecimento necessário ao desenvolvimento e acesso a novas terapias; de outro, os portadores da doença, que sabem exatamente as limitações e desafios do cotidiano, quase sempre carentes de conhecimento científico. Como transpor essa barreira?

Medicina personalizada, alvos moleculares, terapia gênica e outras evoluções da medicina trazem inegáveis ganhos à saúde, mas sempre atrelados a custos incrementais relevantes e, na maioria das vezes, impossíveis de serem custeados pelo próprio paciente. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 é um marco histórico, que garante a toda a população proteção à saúde. Porém, o acesso universal à saúde não garante aos cidadãos a disponibilidade de qualquer método diagnóstico, medicamento ou procedimento desejado.

Considerando que o orçamento dos sistemas de saúde é limitado e que a escolha por uma incorporação pode anular outra, o custo de oportunidade deve sempre ser levado em consideração. Deve-se investir alguns milhões de reais para melhorar a saúde de um paciente ou canalizar esse recurso para a medicina preventiva coletivamente? A resposta certa não existe.

Para contornar essas limitações, a maioria dos sistemas de saúde conta hoje com um processo formal de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), que fornece os pareceres técnicos sobre a recomendação positiva ou negativa de financiamento público para determinada intervenção em saúde, seja ela um medicamento, um exame, um procedimento ou até mesmo um programa de aconselhamento. As agências de ATS surgiram no início dos anos 1970, nos Estados Unidos, visando ao fornecimento de informações econômicas, sociais e legais sobre novas tecnologias. Porém, foi na Europa que elas ganharam força a partir dos anos 1980 e 1990, com gestores ávidos por ferramentas que pudessem auxiliá-los no processo decisório de incorporação, com transparência. Em um primeiro momento, para avaliar a eficiência e a equidade na alocação racional de recursos financeiros, dois grandes fatores precisavam ser avaliados: benefícios clínicos e custos, trabalhados em complexos modelos matemáticos que geram a avaliação econômica.

Após o uso extensivo dessas informações, uma nova preocupação surgiu. Qual é o real valor das tecnologias se colocarmos o paciente no centro do problema? Um ganho em meses de sobrevida sem a doença é o mais importante para ele? Ou poder caminhar pela cidade com qualidade de vida entre seus familiares? Diante de um processo tão técnico de tomada de decisão, a voz do paciente, o que realmente importa para ele, ficou menos valorizado. O doente, que deveria ser o centro dessa cadeia, geralmente é a voz menos ouvida. Na balança de benefícios e danos, quais efeitos tóxicos são tolerados pelos pacientes? Quais tipos de benefício clínico ele realmente espera receber de um tratamento?

Recentemente, os pacientes, seus cuidadores e familiares estão sendo reconhecidos como atores importantes em suas áreas terapêuticas. Quem, melhor do que eles, seria capaz de retratar de forma exata o dia a dia da doença e suas expectativas? O amplo acesso à informação médica criou uma geração cada vez mais envolvida em seus cuidados de saúde. Observou-se o nascimento de associações de pacientes propondo educação em saúde, mobilização social, engajamento junto às agências de ATS e sugestões de novos projetos de lei. Essa troca de informações com os doentes pode, além de ajudar no acesso, contribuir com a indústria de inovação em saúde na identificação de lacunas ainda não preenchidas.

No Brasil, não há restrição a que qualquer pessoa (seja ele gestor, profissional de saúde, fabricante, paciente) solicite ao governo o financiamento público de uma nova tecnologia mediante a apresentação de um estudo que comprove seus benefícios clínicos e econômicos. Da mesma forma, qualquer um pode fornecer suas contribuições durante a fase de consulta pública, após a publicação do parecer técnico sobre a incorporação ou não da intervenção pelas comissões governamentais responsáveis, seja na saúde pública ou privada. No entanto, trata-se de um processo extremamente técnico, que requer conhecimento profundo sobre busca por evidências científicas e avaliações econômicas em saúde. Seria correto considerar que isso representa uma participação social? Não-técnicos conseguem contribuir com a mesma força de técnicos no assunto?

Em outubro de 2020, um novo degrau na participação social foi alcançado com a criação no SUS do paciente-testemunho, que tem a possibilidade de relatar, durante a reunião de avaliação inicial da tecnologia, que antecede a consulta pública, suas experiências no enfrentamento da doença em questão. Ainda assim, apenas um paciente entre os inscritos poderá participar com seu depoimento. Qual peso isso trará objetivamente no processo de decisão, não se sabe. Mas entende-se que incorporar as percepções dos pacientes sobre o valor de uma intervenção em uma área terapêutica específica ajudaria a melhorar os benefícios trazidos pelas inovações e preencheria lacunas na saúde.

Entre diversas definições da Sociologia, a participação social significa democratização ou envolvimento amplo dos cidadãos nos processos decisórios em uma determinada sociedade. Estamos caminhando no terreno da participação social em saúde. Seguimos esperando pelo dia em que o equilíbrio necessário será alcançado entre os detentores do conhecimento técnico e aqueles que realmente serão os beneficiados no fim do processo.

Roberta Arinelli é Medical Director na ORIGIN Health Co.

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