Quanto vale a inovação? O desafio de precificar as terapias avançadas
Advanced TherapiesBiotech and Health

Quanto vale a inovação? O desafio de precificar as terapias avançadas

Ampliar o acesso às terapias avançadas no país ainda depende de discussões sobre acesso, preço e modelos de pagamento.

O que você encontrará neste artigo:

Desafios no acesso às terapias avançadas
O caminho das terapias no Brasil: do registro ao reembolso
Como precificar inovações e o futuro da regulamentação

A inovação disruptiva costuma anteceder sua regulamentação, e um dos desafios fundamentais é permitir que ela avance sem comprometer a segurança de quem a utiliza. No caminho entre um tratamento inovador e o paciente elegível, as incertezas são progressivamente gerenciadas. Na área da saúde, esse cenário exige a revisão de processos consolidados e impõe novos desafios ao cuidado assistencial. Um exemplo global é a chegada das terapias avançadas: embora o número de produtos esteja em expansão, sua oferta ainda é restrita.

As terapias avançadas, categoria em que estão enquadradas as terapias gênicas in vivo e ex vivo – como aquelas com células CAR-T –, terapias celulares avançadas e engenharia tecidual, são produtos capazes de trabalhar o código genético humano e o próprio sistema imunológico como maquinário para interromper a progressão de sintomas de doenças, muitas delas sem nenhuma alternativa terapêutica disponível, como no caso de doenças raras genéticas, ou em patologias com chance de sobrevida muito baixa, como no câncer. Consideradas inovações disruptivas da medicina, em um contexto de personalização da saúde, essas terapias têm o potencial de transformar a história natural das doenças.

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o consultor internacional Neil Grubert destaca a Itália como referência no sistema de saúde para a oferta de terapias avançadas. O país utiliza um modelo de pagamento baseado em performance: as farmacêuticas recebem o valor de forma escalonada e condicionada aos resultados clínicos dos pacientes. Além disso, um fundo específico foi estabelecido para cobrir os custos iniciais dessas terapias, garantindo que os pacientes tenham acesso rápido enquanto os resultados são monitorados.

O modelo italiano reduz os riscos financeiros para o sistema de saúde e incentiva a adoção de inovações de forma sustentável. Por outro lado, a transparência dos preços é limitada, seguindo a prática da União Europeia, em que acordos comerciais são confidenciais para preservar a competitividade do mercado.

Considerando o contexto brasileiro, o especialista cita a Espanha como benchmark: “Eles desenvolveram uma nova plataforma, potencialmente poderosa, que facilita a coleta dos dados clínicos necessários para apoiar acordos baseados em desfechos.” No entanto, o Brasil precisaria aprimorar a infraestrutura de coleta de dados de mundo real para implementar esse tipo de modelo de maneira mais satisfatória.

Segundo informações do Ministério da Saúde espanhol, a plataforma VALTERMED – Sistema de Información para determinar el Valor Terapéutico en la Práctica Clínica Real de los Medicamentos de Alto Impacto Sanitario y Económico en el SNS (Sistema Nacional de Salud) – centraliza a coleta de dados clínicos, permitindo que os resultados dos tratamentos sejam monitorados em tempo real, fornecendo informações essenciais para embasar acordos de pagamento baseados em performance.

Atualmente, as informações são registradas na plataforma espanhola apenas por médicos ou profissionais da saúde. No entanto, está em avaliação a possibilidade de que, em uma etapa seguinte, pacientes possam registrar informações referentes especialmente ao impacto na sua qualidade de vida. Por enquanto, os dados incluídos são administrativos, clínicos e terapêuticos, que permitam o reconhecimento do estado inicial e a análise da evolução de um paciente após o início do tratamento.

Desde o lançamento da VALTERMED em 2019 até dezembro de 2022, 22 tecnologias haviam sido incluídas no monitoramento, sendo maior parte (63%) delas medicamentos órfãos, para o tratamento de doenças raras. Do total de produtos, oito são terapias avançadas. Segundo o governo espanhol, a maioria das terapias são disponibilizadas por acordos inovadores, sendo 45% acordos baseados em desempenho.

Há divergências na literatura sobre o impacto dos acordos de acesso gerenciado, especialmente sobre a forma como são estruturados. Para serem eficazes, precisam de negociações que abordem incertezas regulatórias. No entanto, há uma preocupação crescente de que estejam sendo utilizados mais para negociações comerciais e descontos do que para a gestão real dos riscos associados a dados imaturos.

Acordos financeiros simples podem ser um importante primeiro passo para a adoção de modelos que contribuam para acelerar o acesso a medicamentos, desde que também sejam estruturados para abordar as incertezas de novas terapias, e não apenas para reduzir preços.

O artigo científico “Impacto de acordos de acesso gerenciado na disponibilidade e no acesso a medicamentos: uma avaliação retrospectiva dos acordos implementados para terapias oncológicas em quatro países”, publicado em 2022, avalia produtos ofertados na Austrália, Inglaterra, Escócia e Suécia.

Com base na pesquisa, é possível afirmar que os acordos desse tipo, independentemente do formato utilizado, resultam na redução do tempo de acesso a medicamentos inovadores. Porém, aqueles baseados em resultados, devido à sua complexidade, podem gerar atrasos na tomada de decisão sobre reembolso e, consequentemente, no acesso.

Mercados emergentes

A China também é considerada, segundo a avaliação de Neil Grubert, um importante mercado emergente na perspectiva de ampliação da oferta de medicamentos. Nos últimos anos, o país tem acelerado o acesso às terapias avançadas por meio de uma abordagem agressiva em negociações de preços com parceiros e investimentos em infraestrutura de saúde.

A inclusão de medicamentos inovadores na Lista Nacional de Medicamentos de Reembolso (NRDL) chinesa tem permitido que mais pacientes tenham acesso a tratamentos de ponta, mesmo em um país com enorme disparidade econômica e demográfica. Essa estratégia combina descontos significativos com acesso a um mercado em expansão, oferecendo uma solução sustentável tanto para o governo quanto para as empresas farmacêuticas.

“É provavelmente o principal exemplo de um país de renda média que transformou a saúde da nação fazendo investimentos e incluindo uma melhor cobertura de tratamentos prescritos. A concessão de acesso ao mercado é agora muito mais rápida do que costumava ser, com empresas oferecendo descontos substanciais em troca da perspectiva de entrada no mercado por meio da inclusão na Lista Nacional de Medicamentos de Reembolso”, afirma Neil.

O presidente da International Society for Cell & Gene Therapy, Miguel Forte, mencionou diferenças entre mercados emergentes que impactam o acesso a terapias avançadas, sobretudo relacionadas ao custo de produção, maturidade regulatória e de avaliação de tecnologias em saúde.

“É necessária não só a capacidade de desenvolver e comercializar o produto, mas também a capacidade regulatória de avaliar o produto, o que o Brasil, por exemplo, com a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], tem. É necessário também ter centros técnicos para administrar essas terapias, o que obviamente nem todos os países têm. Às vezes nem mesmo países desenvolvidos têm, a exemplo de alguns locais remotos nos Estados Unidos e na Europa”, explicou, em entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil em 2024.

Mini Banner - Assine a MIT Technology Review

Trilha do acesso

Depois que um produto inovador é desenvolvido, a primeira etapa no caminho até o paciente é o registro sanitário. Nesse momento, as autoridades regulatórias avaliam dados de segurança e eficácia, gerados a partir de estudos clínicos. No Brasil, já são nove produtos de terapias avançadas autorizados pela Anvisa. As normas que permitiram a inserção do país na primeira onda de aprovações, destacando-se como precursor na América Latina, foram publicadas em 2020, quando foram registradas as primeiras terapias no país, e seguem sendo aprimoradas.

Depois do registro, vem a etapa de precificação. A definição de quanto vai custar uma terapia avançada, assim como qualquer outro medicamento, é feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), de acordo com uma norma criada há mais de 20 anos (Resolução 2/2004). A CMED é um órgão interministerial, composto pelos ministérios da Saúde, Economia, Justiça e Segurança Pública, e sua secretaria-executiva é exercida pela Anvisa.

Nesse fórum, apenas os representantes dos ministérios possuem poder de voto, cabendo à Anvisa a responsabilidade de dar suporte técnico e operacional às decisões, além de implementar e monitorar as normas estabelecidas. Dos nove produtos com registro sanitário, todos os que já passaram pela CMED foram classificados como “casos omissos”, uma situação excepcional prevista na norma em vigor.

Apenas depois de ter o preço definido um medicamento pode ser comercializado no Brasil. Assim, até chegar ao paciente, há mais alguns desafios pela frente. Para ser ofertado no Sistema Único de Saúde (SUS), o tratamento passa por uma avaliação técnica, feita pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), e a decisão final cabe ao Ministério da Saúde. A análise feita pela Conitec deve ser realizada baseada em evidências científicas, levando em consideração aspectos como eficácia, efetividade e a segurança da tecnologia, além da avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já existentes.

Para que os produtos sejam cobertos obrigatoriamente pelas operadoras de planos de saúde, eles passam por uma avaliação feita pela Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar (Cosaúde), mas a decisão final cabe à diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Por força da Lei 14.307, desde 2022, todas as tecnologias que forem incorporadas ao SUS são incluídas no rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória no prazo de até 60 dias, sem nova avaliação.

Ambas as etapas após o registro sanitário precisariam de atualização para tornar o mercado brasileiro mais atrativo para os desenvolvedores, avalia Neil Grubert. Na visão do consultor, seria essencial discutir o financiamento das terapias de alto custo e pensar em uma reestruturação do sistema de saúde como um todo.

“O processo de acesso no Brasil é demorado – em média cerca de 2,5 anos após o lançamento – e apenas cerca de um terço dos medicamentos disponíveis no país são reembolsados publicamente. O teto de preços do governo e o uso de preços provisórios por períodos prolongados não estimulam o lançamento de novos medicamentos no Brasil”, explica.

Dos nove produtos autorizados pela Anvisa, apenas um foi aprovado para oferta, primeiro no SUS e, consequentemente, na saúde suplementar. Zolgensma é indicado para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo 1, uma doença rara causada por uma mutação genética que causa a morte de neurônios motores, prejudicando funções como respirar, engolir e falar.

Com um preço de fábrica de R$ 7,8 milhões, o medicamento teve o preço máximo de venda ao governo estipulado em R$ 6,2 milhões. A incorporação se deu mediante um acordo de acesso gerenciado, em que o pagamento é parcelado e atrelado ao monitoramento de dados de performance, segurança e eficácia da terapia. No entanto, os termos ainda estão em negociação, segundo o Ministério da Saúde.

No caso das terapias oncológicas, existem divergências sobre a obrigatoriedade de cobertura pelos planos de saúde. O posicionamento da ANS indica que esse tipo de produto precisa passar pela avaliação da diretoria para que a cobertura seja obrigatória, contrariando o disposto na Lei 9656/98 e na RN 465/21, que garantiriam a cobertura obrigatória de medicamentos antineoplásicos de infusão hospitalar.

A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) informou, em nota, que segue as normas definidas pela ANS.

Regras de precificação

Definir o preço de um produto em saúde é tarefa difícil, e a atividade entra em um novo grau de complexidade com as terapias avançadas, como explica a secretária-executiva da CMED, Daniela Marreco, em entrevista à MIT Technology Review Brasil. Apesar de serem avaliados com base nas regras vigentes, dispostas na Resolução 2/2004, eles não se enquadram nos critérios previstos na resolução, segundo Marreco.

“Por serem geralmente produtos para doenças raras, eles têm estudos de segurança e eficácia de fase II, e a fase III muitas vezes está em andamento. Além do fato de não termos dados comparativos, que é um dos grandes critérios que a CMED usa na precificação: comparar a nova tecnologia com o que eu já tenho disponível”, afirma.

Além disso, uma particularidade é que esse tipo de tratamento evita outros procedimentos que não o uso de outro medicamento, o que acaba prejudicando uma comparação: “Esses produtos muitas vezes entram em um momento em que se não houvesse a terapia avançada, o paciente faria um transplante. Mas eu posso comparar um medicamento com um procedimento? Nós chegamos a fazer esse exercício e percebemos que seria desafiador comparar duas coisas diferentes”, detalha.

Ainda que exista um grupo de trabalho direcionado à revisão da resolução, ainda não há prazo para um resultado concreto. Em fevereiro deste ano, a CMED publicou um chamamento público para receber contribuições para o aprimoramento das regras. Enquanto isso, os produtos de terapias avançadas vêm sendo enquadrados como “casos omissos”. Nessa situação, o critério utilizado é definido pelo Comitê Técnico-Executivo, geralmente sendo adotado o de referenciamento externo de preço, balizando o valor internacional do produto. A terapia passa a receber um preço provisório, ficando a cargo da CMED monitorar a evolução do preço em outros países, assim como os dados de segurança e eficácia, conforme houver atualizações.

A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) destaca a relevância da discussão sobre a revisão da Resolução 2/2004, pontuando transformações nos campos socioeconômico, político e tecnológico que impactam diretamente a saúde pública e privada na última década. A entidade se coloca em apoio ao governo para a adequação da normativa à realidade do país.

“Nesse sentido, a revisão da Resolução 2/2004 é uma oportunidade de ajustar as normas ao contexto atual da saúde pública e privada, considerando a rápida evolução dos tratamentos, visando garantir o acesso da população às terapias que podem oferecer melhores condições de saúde, mas sem deixar de valorizar e recompensar os altos investimentos na inovação”, diz a nota enviada pela Interfarma.

As operadoras de planos de saúde associadas à Abramge se manifestam a favor da revisão da resolução. O diretor técnico-médico da entidade, Cássio Alves, destaca a defasagem da norma, além de uma distorção de mercado quando se compara a saúde suplementar ao SUS.

Este conteúdo é editorial e não está sujeito à edição ou à aprovação dos patrocinadores. O projeto Advanced Therapies recebeu patrocínio das seguintes farmacêuticas: Johnson & Johnson; Kite; Novartis; PTC Therapeutics; e Ultragenyx.

Último vídeo

Nossos tópicos