A proposta de Todd Humphreys à SpaceX foi simples. Com alguns ajustes no software, a constelação de satélites Starlink em franca expansão também poderia fornecer posicionamento, navegação e sincronização precisas. O Exército dos EUA, que financia o trabalho de Humphreys na Universidade do Texas em Austin, buscava um reforço para seu venerável, e vulnerável, sistema de GPS. Será que a Starlink poderia cumprir esse papel?
Humphreys afirma que os executivos da SpaceX estavam abertos à ideia quando ela foi proposta pela primeira vez em 2020. Mas então, veio uma ordem de cima. “Elon disse aos líderes com quem conversamos: todas as outras redes de comunicações LEO [em órbita terrestre baixa] estão falidas”, Humphreys relatou a MIT Technology Review americana. “Portanto, nós [a SpaceX] temos que nos concentrar totalmente em não entrar em falência. Não podemos ter distrações”.
Porém, Humphreys não aceitaria um não como resposta. Nos últimos dois anos, sua equipe no Laboratório de Radionavegação da UT Austin tem feito engenharia reversa dos sinais enviados para receptores terrestres por milhares de satélites de internet da Starlink em órbita terrestre baixa. Agora, Humphreys afirma que sua equipe resolveu o problema, e ele acredita que os sinais projetados para ajudar os receptores a se conectar com os satélites poderiam formar a base de um sistema útil de navegação. O mais importante é que isso poderia ser feito sem qualquer ajuda da SpaceX.
Em um artigo não revisado por pares publicado no site arXiv, Humphreys afirma ter conseguido fazer a reprodução mais completa dos sinais da Starlink já vista. Segundo ele, esta informação é o primeiro passo para o desenvolvimento de uma nova tecnologia de navegação global que operaria independentemente do GPS ou de seus equivalentes europeus, russos e chineses.
“O sinal do sistema Starlink é um segredo bem guardado”, diz Humphreys. “Mesmo em nossas primeiras conversas, quando a SpaceX estava sendo mais cooperativa, eles não nos revelaram nada sobre a estrutura do seu sistema. Tivemos de começar do zero, basicamente construindo um pequeno radiotelescópio para espionar os seus sinais”.
Para iniciar o projeto, a UT Austin adquiriu um terminal Starlink, usando-o para transmitir vídeos do YouTube em alta definição das partidas do tenista Rafael Nadal. Isso forneceu uma fonte constante de sinais da Starlink que uma outra antena próxima poderia ouvir.
Humphreys rapidamente percebeu que a Starlink depende de uma tecnologia chamada multiplexação por divisão de frequência ortogonal (OFDM, pela sigla em inglês). A OFDM é um método eficiente de codificação de transmissões digitais, originalmente desenvolvido no Bell Labs na década de 1960, sendo usado atualmente em Wi-Fi e 5G. “A OFDM está na moda”, diz Mark Psiaki, especialista em GPS e professor de engenharia aeroespacial da Virginia Tech. “É uma maneira de colocar a maior quantidade de bits por segundo em uma determinada largura de banda”.
Os pesquisadores da UT Austin não tentaram quebrar a criptografia da Starlink nem acessar quaisquer dados de usuários transmitidos pelos satélites. Em vez disso, eles procuraram por sequências de sincronização: sinais previsíveis e repetidos transmitidos pelos satélites em órbita para ajudar na coordenação com os receptores. Humphreys não só encontrou tais sequências, como também disse que “foi uma feliz surpresa descobrir que eles tinham mais sequências de sincronização do que o necessário”.
Cada sequência também contém pistas sobre a distância e a velocidade do satélite. Com os satélites da Starlink transmitindo cerca de quatro sequências por milissegundo, Humphreys afirma que “isso é maravilhoso para usar o sistema também para posicionamento”.
Se o receptor terrestre tiver uma boa noção dos movimentos dos satélites, que a SpaceX compartilha online para reduzir o risco de colisões orbitais, ele pode utilizar a regularidade das sequências para determinar de que satélite vieram e, em seguida, calcular a distância até ele. Ao repetir este processo para vários satélites, um receptor pode determinar seu posicionamento com precisão de aproximadamente 30 metros, diz Humphreys.
Se, no futuro, a SpaceX decidisse cooperar incluindo dados adicionais sobre a posição exata de cada satélite em suas conexões com receptores terrestres, essa precisão poderia, teoricamente, aumentar para menos de um metro, sendo capaz de competir com o GPS. A SpaceX não respondeu aos pedidos de comentários.
Outros pesquisadores têm trilhado caminhos semelhantes. Zak Kassas é professor do Departamento de Engenharia Elétrica e da Computação na Ohio State University e diretor de um centro do Departamento de Transportes dos EUA com foco na resiliência dos sistemas de navegação. Em 2021, sua equipe foi a primeira a demonstrar que os sinais da Starlink poderiam ser utilizados para posicionamento, em parte através do machine learning.
A abordagem de Kassas, que ele chama de navegação oportunista cognitiva, analisa o período e a mudança de frequências dos sinais de um satélite à medida que ele se desloca. O receptor também usa as sequências de sincronização, descobre a órbita do satélite e o rastreia. Após várias passagens do satélite, o receptor consegue calcular a sua própria localização. Em uma conferência em setembro, Kassas alegou que seu sistema havia alcançado precisões de menos de 10 metros com os satélites da Starlink. Segundo ele, “É uma estrutura tão geral que podemos aplicá-la a qualquer sinal terrestre ou extraterrestre”. “Ele aprende na hora, e mostra o que está sendo transmitido e onde você está”.
Uma compreensão mais profunda dos sinais da Starlink tem implicações para além da navegação. Um exemplo é que, atualmente, os satélites da Starlink não parecem usar dois dos oito canais para os quais a SpaceX é licenciada. Humphreys especula que isso pode ser porque Musk não deseja interferir nos radiotelescópios que operam em frequências vizinhas. Os feixes brilhantes de luz refletida pelos satélites Starlink em órbita já foram acusados de atrapalhar a astronomia óptica.
As conclusões da UT Austin também destacam a possibilidade de interferência deliberada por parte da própria Starlink. Humphreys observa que, embora as sequências de sincronização sejam promissoras para a navegação, o fato de serem totalmente previsíveis e utilizadas em toda a constelação é uma vulnerabilidade de segurança. Psiaki afirma que “Humphreys prestou um grande serviço à comunidade de navegação identificando essas sequências”. “Todavia, qualquer sistema de navegação que use sequências de código aberto certamente poderia ser manipulado, pois todos saberão como detectar esses sinais e falsificá-los”.
A Starlink supostamente sofreu uma perda catastrófica de comunicações na Ucrânia ao final de setembro de 2022, onde vinha sendo utilizada para comunicações de voz e eletrônicas, para ajudar a pilotar drones e até para corrigir o fogo de artilharia. Embora não esteja claro se as interrupções foram devido à interferência das forças russas, Musk escreveu em seu Twitter semanas após o ocorrido: “a Rússia está tentando ativamente matar a Starlink. Para se proteger, a SpaceX desviou recursos enormes para criar uma defesa”.
A Starlink foi, sem dúvidas, um salva-vidas para a Ucrânia. No entanto, os relatos das interrupções e a confusão contínua sobre quem pagará pelos serviços utilizados gera preocupações quanto ao seu futuro.
“À medida que o tempo passa e a sua dependência da Starlink se aprofunda, a Ucrânia e os seus aliados no Ocidente estão percebendo que têm pouco controle sobre ela e sabem pouco sobre a mega-constelação”, afirma Humphreys. “Contudo, milhões agora têm interesse na segurança da Starlink, incluindo sua resiliência a obstruções. A avaliação dessa segurança começa com uma compreensão clara da estrutura do sinal”.