Pessoas que convivem com doenças raras ficam à margem do mercado de trabalho
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Pessoas que convivem com doenças raras ficam à margem do mercado de trabalho

Levantamentos indicam que a maioria dos pacientes está sem emprego, mesmo com acesso a tratamentos. Em alguns casos, a busca pela ampliação de diretos sociais está no âmbito do Poder Legislativo.

Do diagnóstico ao tratamento, pacientes que convivem com doenças raras enfrentam impasses no acesso aos serviços de saúde. Como consequência, esses grupos são alvos de diversos impactos econômicos e sociais — que vão desde a dificuldade de se manter no mercado de trabalho até a falta de recursos financeiros para custear medicações e tratamentos. 

Mais de 70% dos pacientes com doenças raras têm dificuldades para realizar atividades diárias como tarefas domésticas, preparo de refeições e compras. Os números constam no levantamento Malabarismo entre Cuidados e Vida Cotidiana: o ato de equilíbrio da comunidade das Doenças Raras, publicado em 2017 pela Eurodis, grupo que reúne organizações de pacientes com doenças raras de 74 países. 

Ainda de acordo com a pesquisa, 70% dos pacientes com doenças raras e cuidadores precisaram reduzir ou interromper suas atividades profissionais para tratar a doença, e 76% expressaram ter escolhas profissionais limitadas. 

O levantamento O Futuro das Doenças Raras: Não Deixar Ninguém para Trás, publicado em 2021 pela Eurordis, aponta que 79% dos pacientes com doenças raras não esperam ser curados nos próximos dez anos. No entanto, 44% esperam ter acesso a emprego adaptado e acessível, bem como acordos de trabalho flexíveis

A doença rara que atinge grupos mais vulneráveis  

As dificuldades podem ser ainda maiores quando os grupos socioeconomicamente mais vulneráveis também são pacientes de doenças raras. Um dos exemplos emblemáticos é o Distúrbio do Espectro da Neuromielite Óptica (DNMO). O DNMO é uma doença autoimune rara e debilitante, causada por surtos graves e recorrentes no sistema nervoso central (SNC) que podem resultar em incapacidades permanentes, como a perda de visão e paralisia, podendo levar à morte em casos mais graves

A maior parte dos pacientes com neuromielite óptica (90%) apresenta surtos resultantes de uma inflamação no sistema nervoso central, que acomete o nervo óptico. Entre os pacientes, 69% têm perda de visão grave em ao menos um dos olhos em um período de três anos. Outros 41% podem ficar completamente cegos em ao menos um olho cinco anos após o surgimento da doença. Se um tratamento para a neuromielite óptica não for iniciado, 50% dos pacientes precisarão de cadeira de rodas e ficarão cegos ao longo do tempo. Além disso, 34% podem desenvolver uma deficiência motora permanente

Um artigo publicado na revista científica Nature, em 2020, mostra diferenças significativas entre grupos de pacientes, sendo verificadas maiores taxas de prevalência e incidência em pacientes não-brancos. Outro estudo, publicado no Journal of the Neurological Sciences, em 2023, evidencia que há também um recorte importante de gênero, uma vez que a DNMO é nove vezes mais comum em mulheres do que em homens.  

Do ponto de vista das políticas públicas de saúde, existe uma desatenção geral a doenças que ocorrem com maior frequência na população negra e parda, que representa a maioria da população no Brasil, de acordo com dados do Censo 2020 do IBGE. Esse grupo também é um dos que registra os piores indicadores de renda, moradia, violência e saúde.

Dados divulgados em 2023 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicam que, apesar de serem 56,1% da população em idade de trabalhar, os negros são mais da metade dos desocupados no Brasil (65,1%). Esse grupo tem taxa de desocupação em 9,5% — 3,2 pontos percentuais acima dos não negros. Entre as mulheres afrodescendentes, a taxa chega a 11,7%.  

DNMO e empregabilidade 

Ao contrário do que ocorre em outras doenças autoimunes, como na esclerose múltipla, os pacientes com DENMO normalmente não se recuperam totalmente após os surtos, que tendem a ser irreversíveis ou apenas parcialmente reversíveis, além de cumulativos, resultando em progressão de incapacidades. A condição faz com que pacientes precisem adaptar suas rotinas e, em muitos casos, deixar o mercado de trabalho formal — mesmo quando o indivíduo tem grau de escolaridade mais elevado. É o que mostra o estudo “DNMO leva ao Desemprego entre Pessoas com Alto Nível Educacional”, publicado em 2023. A pesquisa foi coordenada pela neurologista Raquel Vassão, da organização Crônicos do Dia a Dia (CDD).  

O material mostra que nove a cada dez pacientes com DNMO são mulheres. De acordo com os dados, 57% estão desempregados — na pesquisa, foram considerados empregos formais e informais. Entre os entrevistados, no entanto, a maior parte tem alto grau de escolaridade: 47,22% têm ensino superior completo e 31,25% completaram o ensino médio. 

Apesar de parte dos pacientes ter sintomas incapacitantes, outra parcela do grupo ouvido no estudo não tem incapacidades neurológicas consideradas graves. Entre os pacientes que não estão trabalhando, 73% são capazes de enxergar com ou sem tecnologia assistiva e outros 60% conseguem andar até 500 metros, com ou sem cadeira de rodas. No entanto, 45% decidiram deixar o trabalho em razão da doença e não conseguiram retornar às atividades profissionais. Além disso, 20% foram demitidos após o diagnóstico. 

A pesquisa ouviu 146 pessoas entre o fim de 2022 e o início de 2023. Os dados evidenciam que esses grupos poderiam ter acesso a atividades profissionais adaptadas, mas ainda são excluídos do mercado de trabalho. “É uma população altamente escolarizada, com baixa incapacidade neurológica se a gente for avaliar a gravidade da doença. Ainda assim, a gente tem uma população de mulheres, jovens, altamente escolarizada e 57% não está trabalhando. Se a gente for comparar com a população geral, esse número é muito alto. Tem o impacto da doença, mas, se olharmos pela escolaridade e mobilidade, não quer dizer que a pessoa não é capaz de exercer um trabalho”, pontua Raquel. 

A neurologista também ressalta que, além dos dados divulgados pela pesquisa, a experiência clínica em consultório mostra que, com o diagnóstico e tratamento adequados, parte dos pacientes consegue ter qualidade de vida suficiente para realizar atividades laborais adaptadas. Por outro lado, quando observados os impactos sociais na vida dos pacientes mais afetados pela doença (mulheres e negros), a capacidade de manter emprego e renda é duramente afetada. 

“É muito frequente, ainda mais no Brasil, ver mulheres que são responsáveis pela renda da família. É muito importante notar que elas perdem a capacidade de gerir, dependendo da fase da doença. São mulheres pretas de 30 a 40 anos. A gente tem dados de 2019 que mostram que 79% da nossa população depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Quando a gente olha para isso e pensa quem são as mulheres que têm NMO em sua maioria, a gente tem que observar que elas demoram mais a ter diagnóstico, suas queixas são menos valorizadas”, ressalta a neurologista. 

Segundo dados do Censo 2020 do IBGE, as mulheres são maioria nos lares monoparentais com filhos (11,053 milhões de famílias de chefia feminina com filhos e sem cônjuge); 62% são chefiados por negras, correspondendo a cerca de 6,8 milhões de domicílios. Entre as chefes negras ocupadas, 25% prestavam serviços domésticos – ou seja, autônomas. 

Mercado de trabalho e benefícios sociais 

A batalha dos pacientes com doenças raras para readaptar o cotidiano e a vida profissional é relatada pela psicóloga Karina Domingues. Diagnosticada com neuromielite óptica, ela faz parte da associação NMO Brasil. Apesar de sempre ter atuado como autônoma, a psicóloga precisou alterar a rotina de trabalho após o diagnóstico da doença. 

“Eu sempre fui de trabalhar demais, sempre estudei muito. Emendei faculdade com pós-graduação, mestrado e trabalho, mas depois da NMO senti que esse ritmo diminuiu. Eu tive momentos de internação em que não dava para trabalhar, momentos em que fiquei com um pouco mais de sequela e não tinha como dirigir para chegar ao consultório e atender. A possibilidade de oferecer teleatendimento acabou me ajudando, mas essa não é a realidade que a gente vê para muita gente”, conta a psicóloga. 

Atualmente, Karina realiza atendimentos on-line e mantém uma empresa de decoração de festas. Ela destaca a necessidade de que o mercado de trabalho abra mais espaço para pacientes com doenças raras, em todos os níveis profissionais, e sugere a criação de vagas mais flexíveis para que os pacientes possam adaptar a rotina de tratamentos com as atividades laborais.  

“A NMO atinge pessoas em idade produtiva. Você encontra muitos casos em que as pessoas já têm uma formação, uma profissão, e se veem em uma condição de necessidade de tratamento. A empresa parece olhar para esse profissional como um bicho de sete cabeças. Quando ele perde o emprego, se recolocar no mercado de trabalho é muito duro”, afirma a psicóloga. 

Legislações para garantir qualidade de vida para pessoas com doenças raras que não conseguem mais manter atividades profissionais e precisam de suporte para custear despesas essenciais, na avaliação de Karina, são necessárias. No caso da NMO, a situação é ainda mais crítica. Antes, a doença era classificada como esclerose múltipla, e os pacientes eram contemplados em uma política de seguridade social específica. Com o avanço da ciência, houve a criação de um CID (Classificação Internacional de Doenças) específico para NMO, mas as pessoas diagnosticadas com base em nesses novos critérios ficaram desassistidas de maneira repentina.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 10.592, de 2018, de autoria da deputada federal Soraya Santos (PL-RJ). O texto propõe a inclusão da NMO no rol de concessão, sem período de carência, de auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez. Além disso, prevê isenção do imposto de renda para portadores da NMO e a inclusão da condição no rol de doenças graves do Ministério da Saúde. O PL já foi aprovado na Câmara dos Deputados e tramita na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado. 

“Tem pessoas que realmente não conseguem mais se colocar no mercado de trabalho. Temos pessoas em funções que, com a limitação física, não têm mais como dar continuidade. As medicações são caras, a gente não consegue todas as medicações via SUS. A aposentadoria vai ser muito útil para esses casos. Essa lei inclui também a isenção de imposto de renda, muitos benefícios. Um paciente que possui uma doença grave e limitante precisa disso”, afirma Karina. 

No Congresso, o projeto de lei tem sido apoiado pela Frente Parlamentar Mista Antirracista, que atua na proposição de pautas voltadas para a população não branca. O grupo conta com 147 parlamentares e tem coordenação do senador Paulo Paim (PT-RS), no Senado, e da deputada Dandara (PT-MG), na Câmara. Segundo a deputada, haverá fortalecimento de ações para que haja avanço na tramitação de matérias como o PL sobre NMO

“Pensamos em avançar no campo dos direitos, nessas legislações que estão paradas, como a proposta da deputada Soraya Santos. Pensamos em avançar no acompanhamento do Plano Nacional de Saúde Integral da População Negra, pegar o que foi resultado da Conferência Nacional de Saúde e acompanhar a aplicação, o desdobramento dessas propostas que foram aprovadas. Também queremos acompanhar de perto a destinação dos recursos para essas áreas no Ministério da Saúde”, afirma a coordenadora da Frente Parlamentar. 

Além disso, a parlamentar ressalta que, apesar do Poder Executivo coordenar o orçamento da União, deputados e senadores podem solicitar a destinação de emendas parlamentares para ações voltadas à saúde de grupos vulnerabilizados. “Estamos dialogando para fazer a destinação de emendas para que as políticas cheguem na ponta. Elas também podem ser um instrumento de corrigir essas distorções orçamentárias”, antecipa.  

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