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Contam historiadores que data de 510 a.C. o primeiro relato que se tem notícia de algo parecido com o que conhecemos hoje como proteção de propriedade intelectual. Foi na cidade de Síbaris, na Grécia Antiga, onde um concurso culinário premiava o dono da receita vencedora com a permissão exclusiva para o preparo e comercialização durante um ano.
Ainda que o sistema moderno de patentes tenha sido estabelecido apenas dois milênios depois, o conceito básico se manteve: o de proteger a produção de quem a criou, pelo menos por um determinado tempo. O pré-requisito da novidade também se mantém, tendo sido incorporado a isso o fator da aplicação prática, ou seja, ideias por si só não são patenteáveis.
Sempre que nasce uma inovação, ela é passível de ser protegida por uma patente, explica a advogada especialista em propriedade intelectual Ana Carolina Cagnoni: “Patente é uma ferramenta jurídica. No Brasil, quando há o reconhecimento do Estado de que você inventou de fato algo novo, você ganha a possibilidade de explorar economicamente aquela patente por um prazo de 20 anos”.
O processo não é obrigatório, embora seja um recurso extremamente importante para a indústria farmacêutica, posto que “criar” nesse setor econômico tende a ser mais caro do que em outros setores, considerando regulamentações, aprovações sanitárias e garantias de qualidade e eficácia.
“Nessa medida, a patente acaba sendo uma rede de segurança de investimento mais importante do que para outras tecnologias. A indústria farmacêutica é um dos setores que mais dependem de propriedade intelectual, dado o volume muito grande de investimento até o produto acabado, testado, aprovado”, analisa a advogada.
Ainda assim, o setor está fora do topo do ranking dos depositantes de patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o que revela um pouco sobre o cenário de dificuldade para inovar.
Perfil das patentes
A legislação em vigência no Brasil é de 1996 (Lei 9.279/96, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial). Antes disso, o país até reconhecia a propriedade intelectual, mas não permitia o patenteamento de invenções e produtos farmacêuticos, entre outros, o que desestimulava investimentos. Sendo assim, a Lei de Propriedade Industrial (LPI) trouxe um ambiente jurídico seguro para a inovação.
A lei brasileira não é muito diferente do que se pratica em âmbito internacional, uma vez que qualquer país associado à Organização Mundial do Comércio (OMC) tem a obrigação de cumprir padrões mínimos de proteção da propriedade intelectual. Aliás, o acordo de 1994, tendo a assinatura de 127 países no chamado TRIPS (Trade-Related Intellectual Property Rights) é até hoje o grande balizador dos aspectos de relacionamento comercial entre os países signatários, com regras de proteção de propriedade intelectual.
Contudo, existe no Brasil um debate sobre a atualização da LPI. A discussão chegou ao Judiciário, e coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) decidir pela inconstitucionalidade do artigo que determinava um prazo mínimo de 10 anos de vigência nos casos que o INPI levasse mais de uma década para analisar o pedido de registro de patente. Assim, ficou mantido o prazo de vigência de 20 anos a contar da data do pedido de depósito da patente, independentemente da data de concessão do registro pelo INPI.
A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) vem se posicionando sobre essa discussão em curso. Para a entidade, é necessário um sistema robusto de PI para garantir estabilidade jurídica e aumento em investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil.
Em 2023, o INPI abriu uma Tomada Pública de Subsídios para coletar dados para uma eventual revisão de procedimentos e prazos para requerimento do exame técnico do pedido de patente. Em documento divulgado após análise das sugestões, o instituto informou que elaborou uma Nota Técnica para contribuir com esclarecimentos e adequar suas posições técnicas sem trazer qualquer inovação jurídica.
Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o chefe da Divisão de Patentes Farmacêuticas do INPI, Alexandre Godinho Silva, informou que foi criado, em 2019, um plano com o objetivo de reduzir em pelo menos 80% o estoque de 149 mil pedidos de patentes de diversas áreas depositados até o ano de 2016.
“Esse plano teve êxito. Hoje, dos 149 mil pedidos, restam apenas 2,3 mil a serem finalizados. Muito se falava que o INPI concedia patentes após 10 anos de depósito, e isso era uma realidade, mas hoje o pedido é finalizado em até seis anos. É preciso considerar que nós só podemos examiná-lo após o recolhimento da taxa de requerimento – disponível após a obrigação de um ano e meio em sigilo, uma vez depositada a patente, e que pode se estender até três anos –, então o tempo real é de três anos em média para a concessão de um pedido de patente”, explica Godinho.
Os números do INPI são gerais, sem distinguir área ou setor econômico. Se olharmos especificamente para a indústria farmacêutica, um levantamento publicado em janeiro deste ano pela PhRma – Pharmaceutical Research and Manufacturers of America – dá conta de que o prazo médio de exame de patentes biofarmacêuticas no Brasil, no período entre janeiro de 2020 e setembro de 2023, foi de 9,5 anos.
O pedido de patente pode ser depositado no INPI por duas vias, nacional ou internacional, por meio do Tratado de Cooperação em matéria de Patentes (PCT), um acordo administrado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) que permite requerer a proteção simultaneamente em diversos países a partir de um único depósito. Na área farmacêutica, a maior parte dos pedidos acontece via PCT.
“No Brasil, a maioria dos pedidos no setor farmacêutico é feito por multinacionais. Nós até vemos algumas universidades pedindo depósito, mas em termos de indústria nacional há pouca expressividade, porque temos poucas na área”, detalha Godinho.
Segundo relatório divulgado pelo INPI, entre as cinquenta maiores depositantes de pedidos de direitos de propriedade industrial residentes no Brasil em 2023 não há nenhuma empresa farmacêutica. Já entre as cinquenta empresas estrangeiras, estão oito multinacionais do ramo farmacêutico, cuja participação no número de pedidos soma 11%. Em ambos os cenários (empresas nacionais e internacionais), os setores de tecnologia e implementos agrícolas dominam, assim como se observa grande participação de universidades e instituições de ensino.
Para a professora associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, Marislei Nishijima, a dificuldade de inovar da indústria farmacêutica nacional é histórica e reside na forma como esse setor foi estruturado no Brasil.
“A indústria farmacêutica brasileira é um braço da indústria mundial, e o que acontece é que a lei dos genéricos aqui no Brasil incentivou muito a produção desses medicamentos – aquele que é igual a um que existe, mas que perdeu a patente –, então os braços das indústrias internacionais que estavam aqui e as empresas nacionais viram o filão que era produzir medicamentos com o princípio ativo já sem patente. Só que tem um detalhe: o medicamento tem uma parte que é o princípio ativo e outra que é inerte. Mesmo o Brasil sendo um grande produtor de genéricos, o país nem chegou a desenvolver o princípio ativo copiado, a gente importa isso da Índia e da China. Realmente sempre fizemos pouca inovação. Criar medicamentos é muito caro, e o que se observa de inovação nessa área acaba sendo em grande parte por incentivo e passo inicial do governo”, avalia a pesquisadora.
Outro ponto de atenção, segundo Nishijima, é próprio processo de desindustrialização pelo qual o Brasil passou nos últimos anos, que atingiu diversos setores, não apenas a área da saúde.
“A indústria perdeu muito espaço. Se ela está ali só sobrevivendo, ela não vai fazer um investimento em P&D [pesquisa e desenvolvimento] hoje para algo que não tenha certeza de que vai virar um produto novo. Embora globalmente seja outra realidade, aqui na nossa indústria há menos esse ímpeto de investir”, destaca a especialista.
Na avaliação da pesquisadora, existe uma batalha interna na indústria brasileira: “Fazer mais do mesmo, com pequenas modificações que não são patenteáveis, ou separar um pedaço da minha receita para investir em um fundo que se não der certo não vai ter retorno nenhum?”, questiona.
De todo modo, dados da Pesquisa de Inovação Semestral (Pintec) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2021, os setores que mais investiram em P&D foram os de equipamentos de informática, eletrônicos e ópticos (66,6%), produtos químicos (65,3%) e de farmacêutica e farmoquímica (63%). Os três bem acima da média nacional de 33,9%.
Criando um ecossistema virtuoso
Uma forma de suplantar desafios é identificada na aproximação entre o setor produtivo e a produção científica das universidades brasileiras. Atualmente essa dissociação leva a desencontros, como o desenvolvimento de soluções para problemas pouco relevantes ou a desistência por falta de investimento.
Em outros países, como nos Estados Unidos, já se percebe o fortalecimento da confluência entre esses dois mundos, existindo inclusive no sistema de patentes um atrativo fundamental para as startups e pequenas empresas que nascem incubadas em instituições de ensino, posto que uma patente se torna um ativo importante para alavancar financiamentos e investidores externos.
“O que precisamos entender é que a invenção não é o professor Pardal isolado no laboratório, e a invenção genial não é isolada de todas as outras. É preciso fomentar o espaço das pesquisas e a união de quem está pesquisando com as empresas. Nesse sentido, temos um potencial grande com a Lei 14.874/2024, que tem capacidade de colocar o Brasil em um lugar de atrair mais pesquisas clínicas, pode movimentar esse ambiente e, a partir disso, as ideias podem começar a florescer. Você gera um ecossistema virtuoso”, analisa a advogada Ana Carolina Cagnoni.
A Lei 14.874/2024, antigo PL 6.007/2023, estabelece direitos e deveres para pesquisadores, patrocinadores e participantes de pesquisas com seres humanos, e trata do controle das boas práticas clínicas por meio de comitês de ética em pesquisa, considerando fatores como segurança, bem-estar, privacidade e sigilo dos participantes. De uma maneira geral, o intuito é acelerar a liberação de pesquisas clínicas no Brasil, por meio da regulamentação do tema.
Na avaliação da Interfarma, a Lei de Pesquisa Clínica é “essencial para o Brasil se tornar referência na realização de estudos clínicos e decisiva para colocar o país entre os dez primeiros países no ranking global de pesquisa clínica, trazendo mais desenvolvimento científico e acesso às terapias mais inovadoras”.
A associação que representa o setor de pesquisa e inovação na indústria farmacêutica também argumenta que o Brasil é capaz de alcançar a 10ª posição no ranking global – hoje o país está na 19ª posição, com apenas 1,6% dos estudos clínicos realizados no mundo em 2023 -, atraindo um investimento direto estimado em R$ 3 bilhões por ano.
De acordo com Alexandre Godinho, o INPI está atento aos movimentos de transformação na economia brasileira e tem fomentado o diálogo entre pesquisadores e investidores com o objetivo de criar um ambiente frutífero.
No cenário global, o número de pedidos de patentes cresce, mesmo diante de uma economia impactada pelas quebras das cadeias produtivas ainda não totalmente reestabelecidas pós-pandemia da Covid-19 e das guerras no Leste Europeu. Segundo relatório da World Intellectual Property Organization (WIPO), em 2022, o depósito de patentes via PCT registrou manutenção, com ligeiro aumento de 0,3%.
Entre as áreas que figuram na tendência de crescimento, está a de biotecnologia, responsável pelo desenvolvimento de tecnologias ou de matéria-prima a partir de organismos vivos. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 80% dos produtos farmacêuticos novos criados até 2030 terão apoio biotecnológico.
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