Em meio às diversas reformas que vêm sendo implementadas em nosso país, a tão esperada reforma tributária começa a dar contornos iniciais de que será debatida. É verdade que a necessidade de uma reforma tributária chega a ser quase uma unanimidade no Brasil. Nesse caso, em geral as maiores divergências sobre o tema estão relacionadas às formas de alteração de nosso sistema tributário.
As principais propostas já apresentadas, e que estão em trâmite no Congresso Nacional (PEC 110/19, PEC 45/19, Emenda Substitutiva 2 à PEC 45/19, Proposta do Comitê de Secretários de Fazenda e PEC 128/19) em geral propõem uma simplificação da tributação federal sobre o consumo. O discurso do Governo Federal também vinha sendo neste sentido: não haverá majoração de tributos, apenas uma simplificação e ampliação da base de forma a tornar a tributação mais justa.
Após longo suspense, o Governo Federal decidiu, enfim, apresentar a primeira etapa de sua proposta através do Projeto de Lei nº 3.887/20, que consiste na extinção do PIS/Pasep e da COFINS e a consequente criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (“CBS”).
De fato, quando observamos o Projeto de Lei nº 3.887/20, verificamos alguns pontos positivos, tais como: a simplificação da base de cálculo (cálculo “por fora”); (a unificação do PIS/Pasep, PIS-Importação, COFINS e da COFINS-Importação em uma única contribuição; a possibilidade de apropriação de crédito de forma irrestrita; e a unificação das alíquotas hoje vigentes (3,65% para o regime cumulativo e 9,25% para o regime não cumulativo) para uma alíquota única de 12% (doze por cento) sobre a receita bruta. Tais alterações representam uma sinalização de diminuição do contencioso tributário existente no país.
Por outro lado, há alguns pontos polêmicos e que, quando analisados de forma isolada – pois ainda não se tem acesso às demais partes da proposta de reforma tributária do Governo Federal – causam arrepios aos contribuintes, principalmente aos prestadores de serviços que, em geral, se submetem à tributação do PIS/Pasep e da COFINS sob uma alíquota de 3,65% e, com a criação da CBS, passarão a submeter as receitas à tributação de uma alíquota de 12%.
A notícia de que a CBS permite a apropriação de crédito na aquisição de bens ou serviços não é tão animadora assim, principalmente para os prestadores de serviços em geral, incluindo o setor de tecnologia, que não costumam adquirir muitos insumos para realização de suas atividades, o que no final do dia representará um aumento da carga tributária.
Em meio a um cenário pandêmico, em que os contribuintes, de maneira geral, apresentarão sucessivos prejuízos, o Governo Federal deve ter cuidado em propor alterações em tributação sobre a receita, de forma a evitar maiores prejuízos para o ambiente de negócios no país.
Na economia digital não é diferente. Apesar de o fortalecimento crescente da digitalização da economia ser inevitável, é preciso compatibilizar o anseio arrecadatório com a atração de investimentos para fomentar a economia digital brasileira.
Não bastasse a guerra fiscal entre Estados e Municípios para tributação das novas tecnologias¹, que certamente causará longas discussões no judiciário brasileiro, a União Federal, com a edição do referido Projeto de Lei, foca sua atenção no controle e na tributação destas operações da economia digital.
As grandes dificuldades hoje existentes na tributação das operações vinculadas à economia digital estão relacionadas com a definição sobre a forma como as rendas devem ser tributadas, deixando lacunas para que surjam planejamentos tributários agressivos, aumentando as possibilidades de não tributação.
Sob este prisma, a Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 3.887/20 dispõe que a instituição da CBS está em consonância com as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), mencionando inclusive os relatórios expedidos para unificação dos tributos e uma diretriz de simplificação, incluindo responsáveis para facilitar o controle e a tributação.
Em um primeiro olhar, observamos que o Projeto de Lei nº 3.887/20 proposto trouxe regras para incidência ou não incidência da CBS sem trazer conceitos importantes, como, por exemplo, o que seriam bens e serviços, o que seria exportação² e importação³. Isto pode parecer dispensável, mas considerando a realidade brasileira, em que a relação entre contribuintes e o fisco não é das melhores, principalmente em comparação com os demais países, seria prudente ao menos obtermos definições claras dos conceitos para garantir segurança jurídica aos empresários.
O primeiro ponto de atenção é a equiparação de cessão e licenciamento de direitos com o conceito de serviços. Nesse caso, o licenciamento de software poderia ser equiparado a serviço? Entendemos que a questão é, no mínimo, controversa e que será objeto de questionamentos futuros.
Outro ponto que cabe mencionarmos é a imposição de responsabilidade tributária para os marketplaces. A pretensão do Governo Federal nos parece clara: melhorar o controle para garantir a arrecadação nas operações que ocorram na economia digital.
No entanto, em que pese as dificuldades decorrentes da fiscalização e arrecadação dos tributos nessas operações, não nos parece razoável impor às plataformas digitais, que possuem o papel apenas de aproximação entre vendedor e comprador, a obrigação de recolhimento da CBS nas hipóteses em que não haja emissão de documento fiscal eletrônico.
Em outras palavras, seria como se impuséssemos a um shopping center a responsabilização por eventuais débitos de CBS atribuíveis ao lojista que deixar de cumprir com suas obrigações.
Não obstante os argumentos legais⁴ que maculam essa imposição de responsabilidade tributária às plataformas digitais – e que provavelmente serão suscitados em juízo -, tais obrigações acabam dificultando ou inviabilizando as atividades do ponto de vista operacional, pois exigem desses agentes um conhecimento e controle de toda a cadeia de emissão de documentos fiscais, recolhimento dos tributos e cumprimento das obrigações acessórias de todas as pessoas jurídicas vendedoras.
A operação das plataformas digitais é distinta dos demais agentes da economia digital, pois atuam em grande escala e em mercados variados. A proposição do Governo Federal soa como uma terceirização da fiscalização aos administrados, que deveria ser realizada exclusivamente pela própria Administração Pública.
Por outro lado, na tentativa de compatibilizar os interesses de arrecadação do fisco e a manutenção das atividades das plataformas digitais do ponto de vista operacional, seria mais razoável impor a estas a obrigação de compartilhamento de dados dos usuários com o fisco. Nesse caso, uma vez verificada pelo fisco eventual evasão de tributos, a plataforma digital deverá adotar medidas para bloquear o usuário e, caso não o faça, entendemos cabível uma responsabilidade tributária em decorrência da omissão.
Por fim, na CBS-Importação o Projeto de Lei impõe tanto aos adquirentes dos bens, quanto às plataformas digitais, a responsabilidade solidária pelo recolhimento da CBS e a obrigatoriedade de cadastro perante a Receita Federal do Brasil. Neste ponto, a legislação brasileira avança no caminho do que vem sendo a recomendação da OCDE, no sentido de exigir que agentes internacionais prestadores de serviços não presenciais ou intermediários sejam, de alguma forma, representados para prestação de informações ao fisco.
Em conclusão, as impressões iniciais da primeira etapa da reforma tributária proposta pelo Governo Federal não foram tão animadoras, principalmente para os prestadores de serviços, que devem sofrer um aumento de carga tributária. Um pleito que vem ganhando força entre os prestadores de serviço é a exigência de apropriação de crédito sobre a folha de salários, com objetivo de mitigar os impactos do aumento de alíquota gerado pela CBS.
Para os agentes da economia digital, principalmente os marketplaces, ainda restam diversas dúvidas que merecem ser esclarecidas sobre a legalidade da responsabilidade tributária imposta, sua adequação para compatibilizar os anseios arrecadatórios com as atividades operacionais, e sobre a forma como será implementado esse cadastro eletrônico para prestação de informações.
Será necessário aguardarmos as cenas dos próximos capítulos que versarão sobre as mudanças no Imposto de Renda, com o provável retorno da tributação sobre os dividendos, alterações no Imposto sobre Produtos Industrializados e a criação de um tributo sobre o comércio e os pagamentos em meio eletrônico. Até o momento, as incertezas provocadas mantêm os empresários “navegando nos mares dos dragões”.
Renato Peluzo é advogado especializado em Direito Tributário, graduando em Ciências Contábeis e sócio na Terciotti Andrade Gomes Donato Advogados.
Notas:
¹ Estados entendem que é uma circulação de bens e, portanto, estaria sujeito à incidência do ICMS (Convênio ICMS 106/2017) e Municípios entendem que é uma prestação de serviços e, portanto, estaria sujeito à incidência do ISS (Lei Complementar nº 116/03).
² O Parecer Normativo Cosit nº 1/2018 procurou definir a exportação como a situação em que o contribuinte situado no Brasil atua para atender uma demanda no exterior.
³ O PIS-Importação e a COFINS-Importação definem que a importação se dá quando o serviço é executado no Brasil ou executado no exterior com resultado verificado no Brasil, o que gera ainda inúmeras discussões acerca da verificação do resultado.
⁴ O artigo 128 do Código Tributário Nacional menciona que a atribuição de responsabilidade tributária somente é admissível a terceiros que estejam vinculados ao fato gerador da obrigação. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou que, em casos de responsabilização de terceiros além da previsão legal, os terceiros aos quais se busca imputar responsabilidade tributária devem estar necessariamente “em posição de contato com o fato gerador ou com o contribuinte”, de modo que somente podem ser responsabilizados “na hipótese de descumprimento de deveres próprios de colaboração para com a Administração Tributária” e “desde que tenham contribuído para a situação de inadimplemento pelo contribuinte” (STF, Pleno, RE 562.276/PR, Relatora Ministra Ellen Gracie, Publicado em 10.02.2011).