Ortopedia deixa a era do gesso e chega ao metaverso
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Ortopedia deixa a era do gesso e chega ao metaverso

Inovações movidas pela necessidade de locomoção levaram a diagnósticos mais precisos, técnicas minimamente invasivas, robótica, impressões 3D e realidade virtual, que revolucionam os tratamentos ortopédicos.

Movimento é vida. Um soldado ferido poderia passar meses imobilizado sem retornar ao campo de batalha caso precisasse de um tratamento para a fixação de ossos fraturados, geralmente executado com gesso, trações e semanas acamado. Na década de 1940, no contexto da Segunda Guerra Mundial, a demanda por combatentes pressionou o desenvolvimento de técnicas para agilizar esse processo de recuperação e surgiram os primeiros parafusos e placas de uso cirúrgico. Assim vimos o nascimento da inovação em ortopedia que, acompanhando as necessidades de mobilidade e de locomoção do ser humano e o envelhecimento mais saudável da população idosa, teve uma evolução de destaque entre as especialidades médicas, sobretudo no século XXI. Nos últimos anos, técnicas minimamente invasivas e novas tecnologias como robótica, impressão 3D e inteligência artificial surgiram para otimizar significativamente os tratamentos. Se no imaginário dos boomers os ortopedistas eram médicos com as mãos sujas de gesso, as novas gerações já podem vê-los fazendo uso de óculos de realidade virtual para treinamento. A especialidade se aproxima do metaverso e terá mais espaço para explorá-lo no futuro.

Na contramão de outras áreas, a ortopedia caminha para o aumento crescente do número de intervenções cirúrgicas e, devido ao desenvolvimento de inovações tecnológicas, as técnicas mais agressivas dão lugar a procedimentos menos invasivos, segundo o chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dr. Moisés Cohen. Apesar de no passado a própria comunidade científica já ter questionado sobre a efetividade das intervenções mais sutis, como a artroscopia — uma cirurgia que utiliza instrumentos e câmara através de cânulas no interior da articulação, popularizada a partir da década de 1970 —, essa resistência foi diminuindo a partir da observação de resultados.

“Era uma forma de manter a inércia da época, mas aos poucos técnicas minimamente invasivas ganharam espaço. Com isso, evoluímos. Apareceram instrumentos, pinças próprias, câmeras próprias. Para as fraturas, surgiram placas, hastes intramedulares, e novos conceitos, como cirurgias que não interferem diretamente no foco da fratura, permitindo uma consolidação mais eficaz. Hoje, as cirurgias são realizadas sem a agressividade que se tinha no passado”, detalhou o ortopedista.

Para o médico ortopedista e traumatologista especializado em quadril Dr. Leandro Ejnisman, do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), a evolução dos métodos diagnósticos foi um dos fatores decisivos para o desenvolvimento de novos tratamentos. “Melhoramos muito nossos métodos diagnósticos nos nutrindo das tecnologias, o que nos permitiu compreender que muitas das doenças que encarávamos como reflexos da idade são passíveis de tratamento e correção”, avaliou.

O estudo da física e da biomecânica também foi fundamental nesse processo evolutivo que permitiu a mobilização precoce e melhores resultados a cada década.

A chegada e o crescimento da robótica

Os tratamentos disruptivos, é claro, exigem mentes abertas e um processo contínuo de aperfeiçoamento. Sendo um dos precursores da robótica ortopédica no país, Cohen admite que resistiu quando precisou dedicar tempo extra ao processo de aprendizagem, já que um procedimento com o uso de robô exigiu dele maior tempo de permanência no centro cirúrgico do que a cirurgia convencional. No entanto, as vantagens proporcionadas pela técnica são reconhecidas.

Com o auxílio de robôs, os cirurgiões ortopédicos alcançaram melhorias em termos de precisão, segurança e resultados pós-operatórios. Há possibilidade de conclusão de uma cirurgia com a tranquilidade de que o objetivo planejado foi atingido, podendo haver correções de eventuais desvios de rota ainda durante o procedimento.

“Estamos começando e tenho orgulho de ser um dos primeiros a passar por isso no Brasil e ter a oportunidade de transmitir aos mais jovens. A técnica da robótica é importante, mas ela precisa vir acompanhada do conhecimento do cirurgião. Só a robótica não vai dar certo – a máquina não vai operar para o cirurgião. Os conceitos de alinhamento, as técnicas de menos invasão e agressão têm que estar inseridas no contexto e serem associadas à robótica”, avaliou o professor da Unifesp.

Cohen também reforça a necessidade de se manter um olhar crítico sobre as inovações. “A gente tem que estar sempre preparado para aprender, acompanhar a ciência. Ela é muito rápida. Acompanhar a evolução dos tempos de forma crítica e embarcar nisso é o melhor que tenho para dizer”.

Ortopedia no metaverso

É justamente no campo da aprendizagem que a ortopedia chega ao metaverso no momento atual. De acordo com Leandro Ejnisman, os óculos de realidade virtual já têm sido usados em treinamentos cirúrgicos. Em todas as inovações que envolvem procedimentos, a curva de aprendizado precisa ser levada em consideração, já que envolve tempo e potencialmente resultados com menor sucesso no seu início. “Um dos maiores desafios que existem em cirurgia é ensinar a técnica cirúrgica, que envolve o lado motor do cirurgião. Algumas empresas ortopédicas e startups estão desenvolvendo mecanismos que possibilitam cirurgias virtuais, com uso de óculos de realidade virtual, permitindo o treinamento sem expor o paciente. Esse esquema também dá liberdade para o aluno treinar quando quiser. Existem também sistemas de realidade aumentada em que pode haver mais de um cirurgião com equipamentos diferentes na mesma sala cirúrgica virtual. Acredito que essa prática aumentará muito com o tempo”, exemplificou.

No futuro, o especialista enxerga ainda mais oportunidades para o desenvolvimento da ortopedia no metaverso. O uso de óculos de realidade aumentada permite a transmissão da cirurgia ao vivo, e ainda esquemas de preceptoria remota. “Por exemplo, um cirurgião menos experiente pode contar com um instrutor presente virtualmente. O metaverso traz essa possibilidade. Se pensarmos em modelos remotos, em vez de telas de plataformas de videochamada, pode existir um ambiente imersivo aos participantes”, finalizou.

Afastadores, placas e meniscos na impressora

Na visão de Moisés Cohen, uma das grandes oportunidades tecnológicas na ortopedia, em comparação a outras áreas médicas, é a técnica de printagem de órteses para imobilização, instrumentais e estruturas ortopédicas, ósseas e articulares. As impressões 3D podem ser usadas desde o planejamento do tratamento até a produção de próteses e placas cirúrgicas. Em um procedimento de substituição cirúrgica de uma articulação degenerada, chamado de artroplastia, são envolvidos inúmeros detalhes, como o local onde os cortes devem ser feitos nos ossos, o posicionamento perfeito da prótese para que não haja frouxidão nem limitação de movimentos e um balanço de partes moles efetivo. Qualquer detalhe mal planejado é capaz de levar ao insucesso da cirurgia. A elaboração de modelos 3D impressos permite uma precisão muito maior de todo esse planejamento que, aliado à cirurgia robótica, traz uma maior garantia de sucesso no procedimento.

Ainda em fase experimental, vemos também o nascimento da engenharia de tecidos, com o auxílio da impressão 3D. A partir de imagens de ressonância magnética de um menisco, por exemplo, pode-se gerar o crescimento celular em um molde gerado em 3D, levando à criação de um novo menisco para o paciente.

“Médicos começaram com a técnica usando impressoras simples, que demoravam muitas horas, mas isso vai se renovando e melhorando. Universidades brasileiras e determinadas indústrias, como na odontológica, já possuem máquinas muito poderosas. Reconstruções de diversas partes do corpo baseadas em tomografia permitem a criação de próteses. A reconstrução 3D é um fato que está avançando rapidamente – o que pode até assustar. É um campo fértil e absolutamente inigualável”, afirmou o Dr. Cohen.

O futuro é para todos?

Como toda inovação, essas tecnologias ainda precisam superar barreiras para se tornarem mais acessíveis à população. O alto custo é um dos principais impeditivos para a democratização dos tratamentos mais sofisticados, principalmente no sistema público. Mas, ainda que haja dificuldade de mensurar essas vantagens para a incorporação de novas tecnologias, já se sabe que os benefícios de técnicas mais modernas, como o aumento da precisão e redução do tempo de tratamento, podem compensar outros gastos. “Ainda não temos respostas definitivas. Porém, se uma cirurgia robótica tem alto custo, a verdade é que uma cirurgia de revisão, em casos que ocorram complicações, potencialmente é muito mais cara. Para um paciente que eventualmente tenha uma luxação, que é quando a prótese se desloca, e precisa reoperar, o custo é muito grande. Com a robótica, podemos diminuir essas complicações e, consequentemente, o custo”, avaliou Ejnisman.

De acordo com o médico do HIAE, também é possível observar resultados importantes na redução de tempo de internação, que tem como um dos efeitos a redução de gastos. “O tempo médio de internação de um paciente com prótese no quadril era de uma semana. Hoje, já diminuímos para três dias. Estamos buscando reduzir para dois dias e já existem centros em outros lugares do mundo em que a internação é de um dia”, disse.

O chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Unifesp considera que o custo-benefício para a oferta de inovações como a robótica ainda pode ser insatisfatório. Mas, para ele, a tendência é que a consolidação das práticas também promova a ampliação de acesso. “Talvez não agora, porque estamos em uma fase inicial de implantação, mas, daqui a pouco, quando o domínio estiver mais palatável, nós vamos ter que seguir esse caminho. Quanto de benefício você está trazendo em médio e longo prazo, aplicando essas técnicas todas, por mais que você possa gastar no investimento? Eu acho que a robótica, a printagem, elas com certeza vão baratear e isso vai beneficiar demais a população de maneira geral, não só no Brasil, mas no mundo todo”, avaliou Moisés Cohen.

Leandro Ejnisman também acredita que a redução de preços seja o caminho para que as novas tecnologias estejam disponíveis para mais pacientes. “Quando pensamos na impressão 3D, a aparelhagem custava centenas de milhares de reais, mas já vem abaixando o custo chegando a 3 mil reais. Apesar de caro, é mais acessível do que no passado. Eu acredito que, em longo prazo, veremos essa redução do preço. Infelizmente a tecnologia chega aumentando o desnível de acesso entre as pessoas, mas com o tempo isso vai diminuindo”, disse.

O que está por vir?

O futuro se inicia após o presente e não tem um fim definido. Aquele soldado ferido em 1940 talvez não tenha imaginado como ele seria tratado em 2022. Mas quem vive os tempos atuais não deixa de pensar no futuro e em mais e mais inovações. Há uma espera ansiosa pelo dia em que novos músculos serão reconstruídos a partir de culturas de células e também pela disseminação das novas tecnologias de forma equânime.

Talvez ninguém melhor do que os próprios cirurgiões ortopedistas para entender seus pontos de dor e necessidade de evolução. Aplicativos para acompanhamento pós-operatório, novos instrumentais cirúrgicos, grandes ideias surgem nos corredores do centro cirúrgico todos os dias. Mas nem sempre os médicos estão munidos de uma equipe multidisciplinar que permita levar essas ideias à frente, como desenvolvedores, designers e administradores. Ejnisman diz que a participação das instituições privadas nesse movimento é de grande importância. “Uma coisa interessante sobre o Einstein é que ele possui um hub de inovação, com essas equipes multidisciplinares. Soluções criadas têm o potencial de serem testadas e absorvidas dentro do hospital e os usuários podem participar desse dia a dia”. O hub apoia o desenvolvimento e a validação das inovações, sejam estas desenvolvidas internamente ou não, por grandes empresas ou por startups, contribuindo para que cada vez mais pessoas tenham acesso a essas novas tecnologias. Ele acrescenta que o Einstein participa da gestão e da administração de diversas unidades do SUS e, desta forma, auxilia na redução da inequidade.

E não haveria melhor conselho do que o dito pelo Dr. Cohen para as novas gerações: “Mente aberta e visão crítica”. Assim, podemos garantir a evolução constante das inovações em ortopedia e uma longevidade com qualidade e movimento para toda a sociedade.


Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.

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