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No século passado, conjecturar sobre o futuro era como assistir ao clássico “Os Jetsons”, de Hanna-Barbera, em que os personagens se transportavam por uma nave, se comunicavam pelo celular e eram atendidos por um médico a distância. Os anos 2000 chegaram e muitas previsões se concretizaram, como a telemedicina. A prática ganhou relevância entre as operadoras de planos de saúde junto a outras tecnologias aplicadas à área, como dispositivos vestíveis, Inteligência Artificial (IA) e cirurgias robóticas.
Com o avanço tecnológico cada vez mais acelerado, em um conceito cunhado por Gordon Earl Moore – um dos fundadores da Intel, há 57 anos – na famosa Lei de Moore, imaginar o futuro é pensar em uma realidade mais próxima e mais tangível. O horizonte das operadoras de saúde, então, não precisa mais ser analisado sob a perspectiva dos desenhos futuristas. Um novo conceito de cuidado com os pacientes já está sendo construído e utiliza a tecnologia como ferramenta, não como fim.
A saúde suplementar vive um momento de transformação, em que começa a entrar em uma “idade digital”, avalia Leandro Fonseca, ex-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Na idade analógica, o grande diferencial dos planos de saúde, na avaliação do especialista, era ter uma rede assistencial famosa e uma cobertura extra-rol, ou seja, para além dos procedimentos obrigatórios definidos pela ANS. Hoje, as vantagens estão em torno de uma jornada de saúde mais customizada, do atendimento simplificado e de uma atenção primária mais holística, afirma o executivo.
“Os indicadores começam a ser focados nos cuidados à saúde dos pacientes, não mais na proporção de idosos e doentes crônicos. A operadora do futuro não deve cobrir apenas o risco financeiro, mas ter um olhar completo sobre a condição de saúde de seus beneficiários”, avalia Fonseca, que também é conselheiro da healthtech Alice.
O princípio básico da saúde suplementar é o mutualismo. Com base nele, todos pagam mensalmente para que alguns utilizem o serviço quando houver necessidade. Sem esse equilíbrio, os planos de saúde não teriam condições de se manter financeiramente e nem de assegurar os cuidados com seus beneficiários. Nesse contexto, a digitalização do setor representa uma gama de oportunidades para aprimoramento da gestão dos produtos.
Na visão de Vitor Magnani, presidente do Movimento Inovação Digital (MID), a operadora do futuro deve informar e prevenir no lugar de informar e remediar. Nessa nova orientação, informações importantes sobre o dia a dia dos pacientes, como a frequência da prática de atividades físicas, alimentação, histórico de saúde e doenças familiares, serão fundamentais para que os planos de saúde ofereçam um atendimento preventivo personalizado, que priorize o bem-estar do beneficiário e, dessa forma, reduza o índice de sinistros.
O futuro das operadoras se determina muito mais por uma mudança de mentalidade e de configuração do que pela aplicação de novas tecnologia, define Ney Paranaguá, vice-presidente de produtos e operações da Maida Health, holding de tecnologia do grupo Hapvida.
“As operadoras têm de fazer uma mudança de mindset para reconhecer o comportamento da população sem que ela esteja em um quadro agudo de saúde. Devem intervir positivamente na vida do paciente sem parecer moralismo”, afirma.
A transformação também precisa passar pelos profissionais da saúde. Na avaliação de Paranaguá, os próprios médicos são estimulados a se especializar em quadros agudos e não em prevenção. “Hoje, parece muito mais prestigioso um técnico especializado em cirurgia do cérebro do que aquele que pesquisou como construir programas de promoção à saúde e combate a diabetes”, exemplifica.
Mais tempo de vida
Inverter a lógica da saúde tornou-se ainda mais importante com o aumento da longevidade da população. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou que a expectativa de vida dos brasileiros em 2021, sem o impacto da Covid-19, seria de 77 anos — dois meses e 26 dias a mais do que os 76,8 anos registrados no ano imediatamente anterior.
“O setor de saúde é o que mais inovou nos últimos 100 anos. Prova disso é que as pessoas estão vivendo mais”, afirma Magnani. Inovação e digitalização, no entanto, são conceitos distintos, contrapõe. E dada à extensa dimensão territorial do Brasil, Magnani avalia que, na média, as operadoras de saúde e o Sistema Único de Saúde (SUS) estão caminhando a passos lentos no processo de digitalização. “Não estou olhando para os grandes hospitais de regiões privilegiadas de São Paulo, estou olhando para o Brasil como um todo. Somente com prontuário eletrônico e receita digital é possível modernizar o atendimento médico”, afirma.
Redes hospitalares de referência, por exemplo, trabalham com prontuário eletrônico para que o atendimento do paciente no pronto-socorro possa ser acessado no setor de exames, de consultas agendadas e de internação. A ideia é que o tratamento do beneficiário deixe de ser fragmentado e passe a ser visto de forma integral.
Startups também atuam no ecossistema de saúde para democratizar os serviços e oferecer o que existe de mais inovador em tecnologia para beneficiar o atendimento dos pacientes e aproximá-lo das operadoras de planos de saúde.
Desafio da interoperabilidade de dados
Para digitalização da saúde, de fato, avançar, é necessário solucionar o desafio de interoperabilidade: a capacidade de um sistema se comunicar com outro de forma transparente, avaliam os especialistas. Na prática, significa o paciente ser dono de seus próprios dados de saúde, dentro daquilo que foi chamado de “Open Health”. O objetivo é que seu histórico de atendimento possa ser utilizado para pesquisa e em qualquer hospital ou consultório – independentemente da rede a que pertence.
Com as informações dos pacientes em mãos — dentro das regras definidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) —, as operadoras poderão transformar seu modelo de operação, priorizando a prevenção no lugar da remediação.
Internet das Coisas
Alguns dispositivos móveis e vestíveis, como relógios inteligentes, sensores e medidores de glicose, também contribuem para um ambiente de saúde mais conectado e para a redução dos custos das operadoras, destaca Paranaguá. Por meio da Internet das Coisas (IoT) e do uso de IA, os resultados são comparados e analisados com muito mais acurácia e rapidez, contribuindo com a redução dos custos da operadora.
Por meio desses biomarcadores, os médicos são comunicados automaticamente sobre a necessidade de um acompanhamento mais próximo de um paciente, por exemplo. E não é só isso. Segundo o VP da Maida Health, no futuro, será comum que uma consulta seja agendada pelo próprio sistema de acordo com o grau de necessidade do paciente apontado pelos dados.
“Com as informações dos beneficiários, será possível até construir melhor o valor dos planos de saúde. O uso da informação para baratear o acesso à assistência suplementar já está acontecendo em novas operadoras, como a Alice e a Sami. O problema da medicina que não é preventiva é um hospital cheio no pronto-socorro sem necessidade”, acrescenta Paranaguá.
Apoio na redução dos custos
Pressionadas pela alta sinistralidade (relação entre a quantidade de procedimentos feitos pelos pacientes e o prêmio recebido), algumas operadoras brasileiras estão recorrendo a entidades que apoiam a redução dos custos de atendimento, as famosas Accountable Care Organizations (Grupo de Assistência Médica), chamadas de ACOs nos Estados Unidos.
Na prática, uma ACO pode ser formada por grupos de médicos, hospitais e profissionais da saúde que coordenam o cuidado do paciente com a proposta de oferecer alta qualidade de atendimento, com baixo custo e compartilhamento de responsabilidades financeiras e médicas, explica Fonseca, ex-presidente da ANS.
Os Grupos de Assistência Médica são vistos como ferramentas para ajudar um sistema de pagamento ineficiente na área de saúde, que recompensa mais pela quantidade de atendimentos e não pela qualidade.
Esse modelo ganha cada vez mais escala nos EUA. Os desafios, no entanto, são os de reduzir os atendimentos em pronto-socorro, internações e serviços especializados. No Brasil, o modelo ainda é pouco difundido, mas, segundo os especialistas, pode representar uma saída alternativa no caminho de um ecossistema de saúde mais eficiente e equilibrado, à medida que um novo conceito de medicina preventiva se configura no país.
Este artigo foi produzido por Patrícia Basilio, repórter na MIT Technolgy Review Brasil.