A tecnologia é criada para solucionar problemas comuns da sociedade. Com a pandemia, as mudanças sofreram uma aceleração significativa, de forma que, hoje, por exemplo, já não descartamos o home-office como um padrão para diversos tipos de trabalho, ou até um “híbrido-office” para garantir a produtividade com qualidade de vida.
Além do home-office, que vem modificando o estilo de vida no mercado de trabalho, estamos vivenciando mudanças tecnológicas em diversos setores da economia. No Sistema Financeiro Nacional, mais especificamente, assistimos ao surgimento do Sistema Financeiro Aberto (“Open Banking”), e seus possíveis desdobramentos jurídicos e tributários no cenário nacional.
Isto porque, as modificações no Sistema Financeiro Nacional também têm sido intensificadas. A primeira modificação com relação ao sistema de pagamento foi o PIX, que propiciou aos clientes a possibilidade de transferência imediata de valores entre as partes, sem o pagamento de tarifas (para as transferências realizadas por pessoas físicas, pois as instituições financeiras possuem a possibilidade de instituir taxas nas transações realizadas por pessoas jurídicas), e modernizou o meio de pagamento.
Os princípios do Open Banking
O Open Banking consiste em uma plataforma que permite o intercâmbio de dados dos clientes entre as instituições financeiras. Nessa nova realidade, os usuários poderão comparar preços, produtos e serviços, melhorando o controle da sua vida financeira e obtendo acesso a produtos personalizados através de uma plataforma.
Após discussões sobre o tema, o Banco Central do Brasil editou a Resolução Conjunta nº 1/2020 com objetivo de regulamentar a implementação do Open Banking. Dentre os objetivos elencados pelo órgão, estão o incentivo à inovação, a promoção da concorrência, o aumento de eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro, bem como a promoção da cidadania financeira2.
Os princípios do Open Banking não deixam dúvidas: o objetivo é melhorar a experiência do usuário. Com isso, novos produtos personalizados devem surgir, aliando a base de cadastros das grandes instituições financeiras e a eficácia das fintechs.
As novidades certamente serão desafiadoras para as instituições financeiras tradicionais. Para as fintechs, o novo ambiente poderá representar uma abertura do mercado, mas também um possível entrave com relação ao aumento do custo operacional diante da necessidade de governança dos dados disponíveis.
Como forma de cumprir o extenso programa de adaptação à nova realidade, o Banco Central do Brasil segregou a implantação do projeto em quatro fases distintas.
A primeira fase compreende a disponibilização, pelas instituições participantes, das informações padronizadas sobre os canais de atendimento e produtos e serviços bancários tradicionais que oferecem.
Na segunda fase, os clientes, se assim desejarem, poderão solicitar o compartilhamento de seus dados. A partir desse momento, será possível o envio de produtos e serviços adequados a cada perfil, inclusive propiciando aos usuários soluções sobre finanças pessoais.
O novo ambiente do setor financeiro não somente aproxima os usuários dos demais players do mercado, como também contribui com a educação financeira. Isto porque a plataforma disponibilizará aos usuários informações de como estão sendo realizados os seus gastos, as consequências financeiras em caso de manutenção do comportamento de consumo e eventuais sugestões para melhoria.
Além disso, a ausência de informações aos usuários sobre os produtos financeiros e os impactos de cada escolha deixará de existir. Quem nunca recebeu ofertas de seu gerente de banco para investir em produtos como título de capitalização, caderneta de poupança ou consórcios, com a promessa de que seriam ótimos investimentos em termos de rentabilidade?
Hoje, existem diversos produtos para investimentos que ainda deixam de ser ofertados todos os dias, e isso se reflete no perfil atual de investimentos dos brasileiros. Estudos divulgados pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais informam que a maioria dos brasileiros não aplica em produtos financeiros, e ainda, dentre os que são investidores, a maioria aplica na caderneta de poupança.
Ou seja, a divulgação das informações através do Open Banking ajudará também na educação financeira dos brasileiros com relação aos seus investimentos.
Na terceira fase, é possível o compartilhamento dos serviços de iniciação de transações de pagamento e de encaminhamento de proposta de operação de crédito e, por fim, na quarta fase, os dados sobre outros serviços financeiros estarão presentes na plataforma (tais como operações de câmbio, investimento, seguros, previdência, etc).
Os dados no centro da transformação
Com estes norteadores, o Open Banking surge com objetivo de inovar o setor financeiro, utilizando como base a divulgação de dados pessoais para geração de benefícios aos usuários. De fato, não somente para o setor financeiro, os dados se tornaram o elemento central para desenvolvimento da economia nos dias de hoje.
Para implementação da plataforma, o novo sistema tecnológico parte da premissa de que os dados são de propriedade dos usuários, sendo, portanto, necessário o prévio consentimento expresso e específico dos clientes para compartilhamento de seus dados com as demais instituições financeiras, em consonância com os dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados e da Lei de Sigilo Bancário.
Além disso, o Open Banking permite a portabilidade e a revogação do consentimento de compartilhamento dos dados dos usuários a qualquer momento, também em consonância com as normas previstas na LGPD. Isto porque, tanto o open banking quanto a LGPD preveem a necessidade de um consentimento expresso e específico do usuário.
A título exemplificativo, o antigo modus operandi das grandes instituições de solicitar o consentimento dos usuários através de contratos de adesão não será suficiente neste novo cenário. O ponto central passou a ser a proteção ao titular dos dados. Portanto, a LGPD, a Lei de Sigilo Bancário e o Open Banking caminham em harmonia, seguindo os mesmos princípios de proteção aos dados do titular.
Além das questões envolvendo a proteção dos dados, é importante destacar que as modificações de relacionamento entre os usuários e as instituições financeiras do Sistema Financeiro Nacional pretendem trazer um maior acesso às informações e uma redução no custo, além de ofertar produtos personalizados seguindo o perfil de cada cliente, o que, muito provavelmente, impulsionará um aumento das transações bancárias.
Mas a pergunta que fica no ar é a seguinte: será que todo este arcabouço de inovações no setor financeiro e de pagamentos somente traz notícias positivas para os usuários?
Imposto sobre transações digitais
O aumento das transações bancárias visa atrair cada vez mais usuários e, consequentemente, alargar uma base possivelmente tributável com a instituição do imposto sobre as transações digitais, desejado pelo Governo Federal como parte da Reforma Tributária.
Não é nenhum segredo que o ministro Paulo Guedes é um defensor da instituição deste imposto sobre transações digitais para equilibrar a perda de arrecadação com a desoneração da folha de pagamento das empresas. Segundo informações divulgadas, a ideia proposta pelo Governo Federal é de instituir um imposto com uma alíquota de 0,2% sobre as transações financeiras. A arrecadação seria um contrapeso para aliviar a tributação incidente sobre a folha de salários.
No entanto, recentemente o próprio ministro admitiu que vem sofrendo resistências no Congresso Nacional, o que pode ameaçar os planos do Governo Federal com relação a este ponto da reforma.
O legado das inovações no Sistema Financeiro
Independentemente da aprovação ou não do imposto sobre as transações digitais, a adoção do PIX, como forma de facilitar os meios de pagamento, e do open banking, como forma de gerar facilidades aos usuários na obtenção de produtos e serviços financeiros, deixará um legado relevante para o desenvolvimento da economia, o que significa geração de empregos e riqueza e, consequentemente, aumento da arrecadação tributária.
Por fim, não menos importante, as inovações tecnológicas representam também a diminuição da prática nefasta da sonegação fiscal, na medida em que as informações sobre os valores, sobretudo no PIX, são compartilhadas com a Receita Federal, facilitando a fiscalização das autoridades.
Antes do advento da LGPD, o tema sobre o compartilhamento de informações com a Receita Federal já havia sido validado pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu como constitucional a troca de informações com as instituições bancárias, independentemente de prévia autorização judicial.
Naquela oportunidade, o julgamento pela Suprema Corte teve como objetivo combater a evasão fiscal, o que é louvável. No entanto, resta sabermos como estes dados serão tratados pelas autoridades fiscais, a fim de evitarmos excessos que possam macular as regulares operações deflagradas pelo órgão.
Este artigo foi produzido por Renato Peluzo, Sócio na Terciotti Andrade Gomes Donato Advogados e colaborador da MIT Technology Review Brasil.