Objetos inteligentes: o dilema da privacidade versus conveniência
Humanos e tecnologia

Objetos inteligentes: o dilema da privacidade versus conveniência

Em breve, cada indivíduo terá a chance de escolher o preço que quer pagar por sua privacidade ou por seu conforto. E as relações precisam ser ainda mais baseadas em transparência e segurança

Imagine a seguinte cena: você se levanta, vai ao banheiro e pega sua escova de dentes. Talvez por hábito, ou por sono, você não perceba que esse simples movimento está sendo monitorado. Dia após dia, a escova vai recolhendo dados sobre esse momento rotineiro: da frequência com que você escova, da eficácia com que você o faz, do estado de sua saúde bucal. Os dados são enviados quase em tempo real para um servidor na nuvem mantido pela fabricante daquela escova inteligente. Sua boca é decodificada. Você ganha uma pontuação pelo seu comportamento. Para o bem: dentistas e médicos podem apontar que há algum problema antes que você sequer perceba. Você muda seu comportamento para evitar o pior. Para o mal: uma seguradora dentária pode olhar esses dados e precificar, de antemão, fatores que o levarão a demandar um tratamento. Você é, de certa forma, punido por algo que ainda nem sabe. O que você prefere: escovar como sempre escovou, sem monitoramento externo, ou se antecipar a algo que pode dar errado com sua saúde bucal? Não precisa responder agora. Até porque, a resposta não é fácil. Mas é este o tipo de dilema que o século 21 nos traz, à medida que objetos inteligentes começam a invadir nossas vidas, nossas vidas e nossa rotina.

As escovas inteligentes são o meu exemplo preferido do livro Too Smart: How Digital Capitalism is Extracting Data, Controlling Our Lives, and Taking Over the World. Na obra, o pesquisador Jathan Sadowski, da Monash University, uma das principais universidades australianas, analisa a chegada e proliferação de smart things em nossas vidas. Não estamos falando apenas de escovas. Carros inteligentes prometem ajudar os motoristas a mitigar o cansaço da direção, guarda-chuvas podem se iluminar quando há previsão de chuva, geladeiras te avisarão quando uma comida estragou ou faltam alimentos para sua janta. Sem contar todos os assistentes que já invadiram nossa casa (hey, Google) e as luzes que acendem quando o carro adentra a garagem. A casa inteligente já é uma realidade. Mas novas tecnologias irão surgir, se combinarão às atuais e criarão objetos ainda mais poderosos. O 5G pode colocar tudo isso dentro de nossa casa em um instante.

Olhando para a superfície dessa história, os objetos inteligentes trazem conveniência e conforto. Ajudam a tirar da nossa cabeça preocupações simples ou antecipar problemas que podem ser complexos. Também melhoram nossa qualidade de vida. Mas o preço disso não é baixo. Nos tornamos usuários deles. Viramos uma pontuação. Geraremos dados que não refletem apenas o anúncio que clicamos na internet ou o post que mais curtimos. Todo nosso comportamento será rastreado. Mas quem irá acessar essa informação? Teremos autonomia para desligar os objetos a qualquer momento? Seremos punidos por um terceiro (seguradora, aplicativo, empresa de dados) que nem conhecemos? Essas perguntas me vieram à mente quando li o dilema que Sadowski considera central. No livro, ele é categórico: o que todos nós precisaremos responder, é se a troca de nossos dados pessoais por conveniência e conectividade vale a pena. Para o indivíduo, para as empresas, para a sociedade e dentro no novo capitalismo digital que está sendo construído.

A China, por exemplo, já avisou o que pretende. O governo está implementando um sistema de crédito social que irá pontuar cada cidadão pelo seu comportamento em sociedade. Todos serão monitorados através do cruzamento de registros oficiais, câmeras de reconhecimento social e dados coletados na internet. Não que esse monitoramento já não ocorra hoje. O novo passo é cruzar todos os dados para dizer qual cidadão merece “recompensas” ou “punições”. Quem pontuar menos, por exemplo, terá o acesso a empregos, boas escolas e até viagens dificultado ou, em última instância, negado. A ideia é que o sistema seja válido a todo país neste ano: ou seja, a bilhões de pessoas. Os objetos inteligentes poderão ajudar nesse monitoramento e, em outros países, criar um microcosmo dessa situação. Aquilo que alguns já chamam de “imperativo do coletivo”: extrair a maior quantidade de dados possível para monitorar, administrar e ganhar em cima. Do lado empresarial, esse novo cenário poderá ajudar a criar empresas digitais que reunirão dados de pessoas comuns para revendê-los a quem precisa. Será a nova geração de Googles, Facebooks e Apples.

Uma lei nacional de proteção de dados não é suficiente para garantir que todos nós sejamos mais recompensados do que punidos nesta nova era inteligente. Aqui no Brasil, nossa LGPD, que está para entrar em vigor, exigirá que companhias perguntem aos usuários se podem capturar dados. É uma atitude necessária. Mas, me diz, quem vai deixar de usar as redes sociais? Você vai negar ao Whatsapp que ele pegue seus dados e perder o acesso ao aplicativo? É mais provável que você faça isso com uma empresa menor ou um produto que ainda não ganhou relevância na sua vida.

Nós acabaremos criando novos tipos de monopólios ao permitir que apenas nossas empresas preferidas, aquelas que já nos conhecem porque deixamos que pegassem nossos dados sem permissão há anos, tenham acesso ao nosso dado e comportamento. Novas empresas inovadoras que precisam de uma base de dados para crescer serão mortas antes mesmo de nascer. Um caminho que vejo como aplicável, inclusive no caso dos objetos inteligentes, é discutirmos a identidade do usuário. É a forma que considero mais eficaz para proteger os próprios indivíduos e garantir que eles aproveitem melhor a conveniência das novas tecnologias, sem ficar refém de terceiros vendendo, no escuro e pelas suas costas, seus dados.

Os dados precisam ser livres e disponíveis a todos. Assim, startups poderiam utilizar para construir novos modelos de negócios, organizações para melhorar serviços e até o governo para direcionar políticas públicas. Mas a condição é receber uma amostra anônima: “homem de 34 anos, residente de São Paulo, que escova os dentes quatro vezes ao dia”. Se quiserem saber quem ele é, perguntem a ele em um segundo momento. O indivíduo será livre ou não para revelar sua identidade – e saberá para quem está fazendo. Terá a chance de escolher o preço que quer pagar por sua privacidade ou por seu conforto.

Outro ponto importante é que essa amostra de dados não pode ser guardada de forma centralizada. Do contrário, caminharemos para réplicas do sistema de crédito social na China, ditaduras digitais ou objetos inteligentes avisando tudo previamente para a seguradora. O blockchain tem o potencial de fornecer um sistema de dados distribuído, ao qual todos poderão se beneficiar. Nesse sentido, uma lei nacional de proteção de dados que punisse, com multas bilionárias, quem desrespeitasse a identidade dos indivíduos ajudaria a não frear a inovação e a não estimular novos monopólios. Criaria um ambiente confortável para que objetos inteligentes sejam inteligentes para nós. E não para os outros.

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