O sistema financeiro depois da queda da segunda maior exchange de criptomoedas, a FTX
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O sistema financeiro depois da queda da segunda maior exchange de criptomoedas, a FTX

O que aprendemos com os episódios recentes e como os criptoativos saem fortalecidos de toda essa história para liderar a construção de uma economia ainda mais digital.

Em um dos mais célebres debates da teoria econômica, Keynes e Hayek divergiram sobre a intervenção do Estado vindo a salvar agentes econômicos em momentos de intensa crise de liquidez. Em linhas gerais, o austríaco Friedrich von Hayek, que vivenciara a experiência de hiperinflação na Alemanha no começo dos anos 1920, defendia que alterar o equilíbrio econômico “natural” desdobraria inequivocamente em uma inflação galopante. Já o britânico John Maynard Keynes, pai da macroeconomia, assinalava que medidas e gastos governamentais poderiam garantir o princípio da demanda efetiva e, assim, minimizar efeitos deletérios, como a miséria e o desemprego em massa, característicos do fim de um ciclo de crescimento econômico. 

A “saída” keynesiana era contestada por Hayek por aquele compreender como insustentável essa permanente ação regulatória do Estado. Segundo o austríaco, esse tipo de ação não se sustenta no longo prazo. Em franca oposição, o britânico teria cunhado a célebre frase, “no longo prazo todos estaremos mortos”. 

Esse delicioso e agora centenário debate remete, na verdade, a celeumas anteriores e posteriores – cujo símbolo máximo é a tensão recorrente entre “visões à esquerda” e “visões à direita” – e renasce a cada vez que o mundo observa novo trauma econômico de grandes proporções. 

Isso ocorreu com a crise na economia norte americana em 2008 (ironicamente conhecida como crise do “subprime”, uma deferência a investidores marginais que, na verdade, foram enganados por instituições renomadas no mercado financeiro). O que vimos, no entanto, foi que a intervenção do Estado se deu controversamente a favor dos bancos com o bailout de salvamento da economia.  

Essa alavancagem teve rebatimento em vários cantos do planeta, e reaparece agora, com a falência da FTX em novembro último. Claro que em escala bem menor, mas que chama muita atenção, por se tratar de uma das maiores exchanges globais de criptoativos dentro de um mercado não regulado.  

Alavancagem insustentável e a falência da FTX  

O estopim da crise ocorreu com a divulgação do balanço patrimonial da FTX e da Alameda Research, empresa-irmã da corretora, evidenciando que as duas companhias de Sam Bankman-Fried (SBF) – detentor de uma fortuna estimada em US$ 24 bilhões – enfrentavam sério risco de não honrar com seus compromissos financeiros devido à baixa liquidez dos ativos. Isso levou à FTX a suspender os saques de usuários da plataforma, disseminando temor por parte dos investidores e ocasionando uma venda em massa do token de governança da FTX, o FTT. 

O que está em jogo neste último episódio não retrata, porém, qualquer falsa dicotomia entre dinheiro em espécie, de um lado, e as criptomoedas de outro. O que está no centro do debate é o grau de alavancagem, algo que o universo formal econômico até hoje não conseguiu resolver (como ir contra ao princípio liberal por essência do “retorno ser proporcional ao risco”?) e que possui, não em toda e qualquer criptomoeda, mas precisamente no Bitcoin o antídoto para esse recorrente problema. 

Essa está longe de ser uma opinião exclusiva minha. Landon Manning afirma que o Bitcoin é confiável, sem estado e descentralizado e, assim, caso esteja uma empresa às beiras da falência e nenhuma outra queira resgatá-la, a indústria sofreria perdas, porém a alavancagem seria gradativamente eliminada do sistema, sem que venham a ser socorridas pessoas mal-intencionadas ou empresas com práticas comerciais nefastas. Essas duas amplas categorias foram exatamente as protagonistas do que aconteceu na famosa crise de 2008. 

Voltando ao debate histórico-econômico pelo qual iniciamos, apontar Hayek como supostamente exitoso na controvérsia com Keynes seria, entretanto, prematuro e rasteiro, uma vez que não adular práticas nefastas não deveria ser virtude, mas obrigação cidadã. 

No brilhante documentário Inside Job (Trabalho Interno) , vencedor do Oscar em 2010, registra-se a singela fala de um agente do mercado financeiro dos EUA quando aquele diz ao Parlamento: “vocês devem nos regular, somos muito gananciosos”. Ora, a vida das pessoas está acima do sistema econômico! Assim, há mais o que se fazer do que tomar conta de adultos inconsequentes jogando a roleta financeira, mal lastreada pela nefasta alavancagem.  

Esse é o ponto! 

A discussão sobre a regulação maior ou menor do mercado de criptoativos, que reacendeu “com a crise da FTX”, apesar de relevante, está subjugada, infelizmente, a uma lógica ilógica que faz o mercado financeiro atuar em uma espécie de Estado Permanente de Pirâmide (EPP), jogando sempre para frente o prejuízo, que vai cair no colo de alguém. Esse “alguém” corresponde, invariavelmente, às camadas mais vulneráveis, seja de pequenos investidores, seja da população como um todo, que sofre com desemprego, queda na renda e no consumo e – pior dos mundos – se endividando mais e mais, alimentando o looping que faz girar a roleta financeira da alavancagem insustentável. 

Assim falava Satoshi… e segue a roleta financeira inconsequente 

Quando se fala da forma como as pessoas regem suas vidas, não precisamos neste artigo adentrar pela profecia de Satoshi Nakamoto — embora aquela defina com exatidão o potencial transformador associado ao Bitcoin — para constatar que, se não há como estancar a alavancagem (afinal, o multiplicador monetário se intensifica na realização de transações financeiras), urge que sejam minorados os graus elevadíssimos praticados no sistema bancário convencional. 

Isso, sem contar que a quebra de bancos tradicionais (mesmo levando a tragédias pessoais e corporativas) recebe tratamento diferenciado, em vários contextos, lugares e situações, do que quando se trata da quebra de uma exchange. 

E o que afinal ocorreu com a FTX? No limite, o pior de todos os efeitos que podem acontecer com qualquer instituição financeira desde que foram criados os bancos: a crise de credibilidade e a consequente “corrida aos bancos”. A corretora, terceira maior do mercado, segundo reportagem do Estadão “meteu os pés pelas mãos” quando utilizou recursos dos clientes para o pagamento de dívidas. 

O que derivou da alavancagem desmesurada? A FTX decidiu congelar os saques até que uma solução fosse encontrada, jogou por terra sua credibilidade e decretou, assim, sua própria morte. 

Neste sentido, como em várias situações pelas quais passamos em diferentes momentos da vida, o pior a fazer é não se extrair e apreender com as amargas lições. Já destacamos aqui o poder de resiliência que vem se associando ao Bitcoin e demais cripoativos. 

Bitcoin e a reação à crise: wallet e maior transparência 

Este artigo começa remetendo a uma discussão já secular, e não se pode cometer o vício da não revisitação. Afinal, já se passaram quase 100 anos do primeiro contato entre Keynes e Hayek, que aconteceu em 1927. Ocorreram duas crises econômicas e financeiras de proporções globais, uma em 1929, outra em 2008, e o mínimo a se esperar é que os agentes econômicos se nutram de aprendizagem e ensinamentos. 

Neste cenário vale lembrar da aplicação da prática de Proof-of-Reserve após o advento da FTX visando prover transparência aos balanços das organizações que lidam com criptoativos. Kraken, Bitmex, Nexo, Gate.io iniciaram o movimento de apresentar seus relatórios de comprovação de suas reservas em que se verifica a custódia de um para um, buscando garantir a solvência dos clientes. Desde então, a prática tem sido cada vez mais presente junto às corretoras. Na prática, publicam seus resultados de modo semelhante aos “snapshots” expondo se uma CEX tem fundos suficientes para cobrir os depósitos dos clientes. Outro mecanismo que tem sido explorado são os protocolos de conhecimento zero que provêm controle colateral duplo para liquidação ainda mais segura e blindagem contra lavagem de dinheiro e conhecimento do cliente.  

Muitas vezes, porém, não se implementam mudanças efetivas, de fato. O já citado filme Inside Job mostrou como, após apenas dois singelos anos, vários agentes privados e públicos ligados organicamente à crise, por ganância e/ou conivência, já se encontravam mais ricos e/ou em franca atuação novamente no mercado da roleta financeira. 

Ao levar a mesma lógica, de alavancagem insustentável ou de Estado Permanente de Pirâmide, para o mercado de criptoativos, Sam Bankman-Fried, o SBF, acabou preso e, por possuir Patrimônio Líquido (diferentemente de suas empresas e daqueles relacionados a elas) foi capaz de suportar com tranquilidade a módica fiança de 250 milhões de dólares. 

Enquanto isso, no mundo da vida real, a reação à crise vem ganhando força em duas direções que interagem de forma sinérgica. As wallets são carteiras que utilizam técnicas avançadas de criptografia de blockchain visando garantir total segurança aos usuários. Estes, criando suas próprias wallets (carteiras), podem guardar, enviar e receber criptomoedas sem riscos maiores, mantendo a custódia dos seus ativos. 

Além dessa tendência, que já se afirmou e vem se consolidando, é possível constatar que a situação da FTX tem estimulado algumas exchanges a reforçarem o seu compromisso com a transparência e a proteção dos patrimônios dos seus clientes. Vale sempre resgatar que as inovações disruptivas são quebradoras de paradigmas há muitos arraigados e que há muito poucos favorece.  Assim, dar transparência máxima e visibilidade às ações, para além de constar em redundantes discursos artificiais, é condição sine qua non para a saúde estável não só de uma exchange, mas é como deveria se pautar o comportamento de toda sociedade. 

O sistema fiduciário e o futuro da economia digital global 

Velhas controvérsias embutem eternos ensinamentos. O que difere é a forma de leitura da realidade que se esconde sob os olhos de cada personagem da história. A mim, cabe transmitir ao leitor uma forma de ver o que está em curso de maneira proativa, visualizando e construindo uma nova forma da sociedade lidar com esse ativo tão inquietante e crucial, o dinheiro. 

O que se chama de hiperbitcoinização (a desmonetização da moeda induzida pelo Bitcoin) deve avançar a passos largos, de forma alinhada à contra hegemonia fiduciária e em franca oposição a economias falidas e políticas governamentais autoritárias. São exemplos claros experiências recentes em países como Líbano, Turquia, Venezuela, Cuba, e vários outros que enfrentaram problemas de hiperinflação. 

No extremo oposto, em adendo ao abalo no glamour pós-hollywoodiano pela separação do casal Tom Brady & Gisele Bündchen, o abalo duplicou, pois haviam eles se tornado acionistas da corretora em junho de 2021, logo após a Coinbase abrir seu capital. Além do hoje ex-casal, outros famosos como o astro do basquete Stephen Curry, ou a tenista Naomi Osaka também sofreram perdas consideráveis, mas nada que abale seus respectivos patrimônios líquidos, tal e qual se aplica a SBF. 

O uso das criptomoedas, entretanto e, particularmente, do Bitcoin se destina a objetivo bem superior à especulação cotidiana, seja de personalidades, seja de qualquer cidadão. 

É fato que a especulação cotidiana aponta uma perda relativa recente significativa no valor do Bitcoin, situando-se atualmente abaixo de US$ 18 mil (cerca de R$ 93,7 mil), o que representa uma queda de 70% em relação ao seu pico, em novembro de 2021, de acordo com Joe Tidy, da BBC News. 

Uma vez mais, não se trata de uma opinião isolada. Stefen Deleveaux, presidente da Caribbean Blockchain Alliance, embora considere esta uma época terrível para as criptomoedas, talvez mesmo um divisor de águas, argumenta que os violentos altos e baixos das criptomoedas ofuscam, por vezes, seu progresso geral e, vai além, fazendo a ressalva que “as criptomoedas estão sendo usadas por organizações de caridade para levar fundos para lugares aonde o dinheiro normal não chega devido a conflitos ou repressão e que os recentes escândalos são ‘uma chance de eliminar os golpistas e vigaristas’ do mercado de criptomoedas. Na mesma linha, Carol Alexander, professora da Escola de Negócios da Universidade de Sussex, no Reino Unido, assinala que “cripto é apenas uma palavra muito curta para definir o futuro da economia digital global”. 

Sim, é a essa rede de pensamentos e práticas a qual nos interessa estar ligado, participar e fomentar. É a revolução fiduciária em curso. Aprendendo com o passado e construindo o novo futuro, de uma economia digital global, mais inclusiva e com distribuição menos concentrada da renda e das riquezas. 


Este artigo foi produzido por Christian Aranha, Empreendedor e pesquisador na área de Inteligência Artificial, Big Data e Blockchain, autor do livro Bitcoin, Blockchain e Muito Dinheiro e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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