O papel do Estado como habilitador da Saúde 5.0
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O papel do Estado como habilitador da Saúde 5.0

Descentralização de iniciativas e desigualdade socioeconômica são desafios da saúde também em sua versão digitalizada. O Estado deve ser protagonista da política nacional para uma gestão tripartite coerente e, principalmente, efetiva.

A tecnologia passou a integrar o dia a dia das instituições assistenciais e governamentais de saúde a partir da década de 1990, com o início da substituição do papel pelo computador conectado à internet. Depois dessa mudança, batizada de saúde 2.0, o digital também começou a ocupar, gradativamente, uma posição de destaque no processo de aperfeiçoamento da qualidade, da segurança e da escalabilidade das soluções na área.  

Experiências internacionais observadas em diferentes países na última década, inclusive na Austrália e no Reino Unido, que têm formatos de sistema similares ao brasileiro, demonstram que a tecnologia não só ajudou a criar modelos de gestão mais robustos, mas também se tornou uma ponte para ampliar a resolubilidade e a humanização no atendimento médico.  

A transformação desencadeada pela digitalização da saúde vai desde a modernização dos prontuários clínicos dos pacientes e atendimentos por telemedicina até a aplicação de mecanismos da deep tech, como a Inteligência Artificial (IA) e a Robótica.  

O cenário é promissor, especialmente para um país com um sistema universal e complexo como o Sistema Único de Saúde (SUS), mas a linha entre a ampliação do cuidado por meio da tecnologia e o agravamento da exclusão de uma parcela da população é tênue. A equidade na perspectiva da saúde digital continua sendo uma premissa desafiadora para o Estado.  

A segurança e a usabilidade diante do avanço da tecnologia também são os pontos sensíveis que ainda estão sendo explorados, mesmo para nações com um longo histórico de uso da tecnologia da informação na saúde.  

Um estudo realizado no Reino Unido, publicado pelo The Lancet em 2021, avaliou o quão bem equipado e preparado estava o sistema de saúde britânico do ponto de vista da inovação digital. Pesquisadores identificaram que ainda é preciso avançar na segurança cibernética e na governança de dados para manter a confiança pública no que diz respeito ao armazenamento, ao compartilhamento e ao uso de dados.  

Outro aspecto presente na pesquisa é a necessidade de criação de interfaces mais didáticas e de capacitação de profissionais para utilizá-las corretamente. Um bom nível de usabilidade das plataformas pode ser um fator decisivo para que a digitalização chegue a mais pessoas.  

Avanço descentralizado   

O uso de instrumentos tecnológicos se expande de maneira descentralizada no Brasil, por meio de iniciativas isoladas dentro de municípios, estados e no sistema complementar e suplementar de saúde.  

Essa heterogeneidade, apesar de representar uma ampliação, na prática, acaba gerando um resultado problemático: enquanto o governo federal endossa o uso do prontuário eletrônico para o gestor, alguns municípios já utilizam softwares próprios e, em outros, não há sequer acesso pleno à internet; no setor privado, falta integração de dados entre operadoras e prestadores, e o próprio paciente tem dificuldade de carregar o seu histórico para onde vai.  

Para uniformizar as informações e centralizá-las em um único sistema, o Ministério da Saúde estruturou o Plano de Ação de Saúde Digital para o Brasil 2020-2028. Um dos resultados concretos, até o momento, foi a criação do Conecte-SUS, um projeto com a principal missão de materializar essa estratégia.  

A partir dessa iniciativa, o governo federal tenta garantir que as ações de transformação digital em curso no país estejam de acordo com as necessidades identificadas no Plano Nacional de Saúde.   

A expectativa, para o sistema como um todo, é a de que seja possível utilizar a tecnologia a favor de uma jornada de saúde única para cada paciente, a ser registrada desde o seu nascimento, mesmo que ele passe por diferentes esferas e níveis de atenção. Esse mecanismo servirá para reduzir a fragmentação e o desperdício na saúde por meio de um modelo de gestão baseado em dados.  

No entanto, enquanto a trilha para a chamada saúde 5.0 é traçada, há municípios que enfrentam dificuldades da fase 2.0. A Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Estabelecimentos de Saúde Brasileiros de 2021 apontou que 94% das  Unidades Básicas de Saúde (UBS) têm computador e 92% acessam a internet, mas a velocidade de conexão ainda é reduzida e há pelo menos 3 mil estabelecimentos que não têm acesso ao mínimo de conectividade.  

Com o intuito de suprir essa lacuna, como parte do plano de ação do governo federal, o programa Informatiza APS conseguiu implementar alguns avanços na atenção primária no contexto da pandemia: o acesso a tablets e notebooks foi ampliado, aparecendo em 40% do total de unidades básicas; o monitoramento remoto chegou a ser utilizado por um terço delas; e 14% ofereceram teleconsultas aos pacientes.  

O recém-chegado 5G pode democratizar o acesso à tecnologia aplicada à saúde, mas a previsão da Agência Nacional das Telecomunicações (Anatel) é de que haja sinal disponível em todos os municípios brasileiros com mais de 30 mil habitantes até 2029, ou seja, as cidades menos populosas estão no fim da fila e precisarão contar com medidas alternativas para entrarem na rota.  

Troca de dados em saúde  

A principal aspiração do Ministério da Saúde, nesse caminho, é aprimorar a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) para garantir interoperabilidade (troca de dados) entre as três esferas de governo e o setor privado. A criação de um prontuário único para o cidadão é uma das principais demandas nesse contexto.   

A importância da interoperabilidade para eficiência da tecnologia aplicada à área da saúde já está descrita como imprescindível na literatura científica. Acessar, trocar, integrar e usar cooperativamente dados de maneira coordenada e segura, cumprindo a legislação de proteção de dados, são ações fundamentais para a efetividade na condução de políticas públicas. 

Uma plataforma única conectará os atores do sistema de saúde aos dados, estabelecendo uma conexão com a gestão de unidades de saúde, operadoras, centros de pesquisa e desenvolvimento, laboratórios, atendimento de urgências e emergências, saúde populacional e até serviços de informações com alertas e comunidades de usuários.  

Na pandemia da Covid-19, pela primeira vez, dados dos sistemas público e privado se encontraram e foram disponibilizados na mesma plataforma. O cidadão, com acesso ao Conecte-SUS pelo celular, conseguiu acompanhar suas informações sobre a vacina aplicada pelo SUS e testes de Covid-19 processados por laboratórios privados. 

Depois disso, outros dados, relativos ao atendimento público, entraram nesse relatório virtual: de autodeclaração de uso ou recebimento de medicamentos por meio de programas do governo; e de atendimentos e internações em unidades do SUS. No setor privado, essa integração teve poucos avanços.  

Para o presidente da União Nacional Instituições Autogestão em Saúde (Unidas), Anderson Mendes, apesar de existir necessidade de colaboração na esfera privada para que se conquiste a interoperabilidade de dados em saúde, a política deve ser mantida sob a guarda do governo federal.  

“O ministério já está caminhando com uma plataforma de integração, inclusive com alguns pilotos. Vai caminhar por aí, integrando também com o Conecte-SUS. Pelo conceito de integração, a questão da LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados] e o que se busca, com isso, temos que ter uma origem no sistema público. O Estado tem que assumir a governança, até por uma questão de direitos”, afirma.   

Na visão dele, a sensibilidade dos dados ainda é um aspecto delicado considerando a realidade do mercado privado. “Precisamos ter cuidado para o uso dessa informação. Há vários conflitos e questões éticas a serem trabalhadas. Por isso, eu acredito no Estado como o ente mais legítimo para capitanear esse processo. Não que a iniciativa privada não participe, mas ela sempre vai ter um conflito de interesse maior”.  

O prazo de execução do plano de ação, até 2028, pode ser curto ou longo, a depender do ponto de vista. “Estamos falando de um país continental e de um Brasil profundo. Quando você fala em integrar, no plano Brasil, 2028 é bem audacioso. Se eu for esperar que que as instituições de referência localizadas em São Paulo se integrem, é um tempo distante. O que precisamos desenvolver, juntos, é a divisão desse plano. Entender o que se pode fazer de imediato”, avalia.  

De acordo com o ministério, o projeto está em fase de desenvolvimento. Sua implantação conta, inicialmente, com a realização de uma fase piloto no estado de Alagoas, com unidades de saúde que utilizam o prontuário eletrônico do cidadão e hospitais universitários, que utilizam o aplicativo de gestão.  

Experiência em São Paulo   

A cidade de São Paulo tem uma posição privilegiada quanto ao desenvolvimento na área da saúde e usou a tecnologia como pilar essencial para o projeto de reestruturação e qualificação das redes assistenciais do município.  

O programa Avança Saúde, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), tem como carro-chefe o app “e-saúdeSP”, um software que já recebeu dez milhões de acessos e tem dois milhões de usuários cadastrados, utilizado associado a outras intervenções de comunicação como mensagens de texto, ligações telefônicas e IA.  

O aplicativo está disponível para uso na atenção primária de toda a capital paulista e integra dados clínicos dos pacientes da rede pública, permitindo que o cidadão tenha acesso ao prontuário eletrônico, ao passaporte digital da vacina contra a Covid-19, ao cartão virtual do SUS, ao atendimento por telemedicina e outros serviços ofertados pelo município.  

O aplicativo busca incentivar a promoção do autocuidado. O cidadão pode registrar seus dados de saúde, permitindo o monitoramento de informações como aferições de pressão e glicemia capilar, registro de peso, alergias e medicações de uso contínuo.  

Do lado dos gestores e profissionais de saúde, com a tecnologia aplicada, é possível acompanhar a atuação das equipes e fomentar a medicina baseada em evidências, com mais qualidade, além de avaliar as necessidades de saúde de maneira mais assertiva.  

Segundo o coordenador do Projeto Avança Saúde SP, Marcelo Itiro Takano, o município está cinco anos adiantado em comparação à Estratégia de Saúde Digital do Brasil, embora o aplicativo da capital paulistana não esteja conectado ao estado de São Paulo ou ao governo federal.  

Takano afirma que a segurança dos dados é uma das preocupações do município e que, para garantir essa proteção, a plataforma utiliza assinatura eletrônica avançada e qualificada. 

“Hoje, a tecnologia nos permite acompanhar desfechos de saúde de ponta a ponta. Por exemplo, quando uma gestante tem transmissão vertical de sífilis congênita, o resultado positivo é compartilhado com a gestante e com unidade de saúde que faz o acompanhamento dela. A partir desse cenário, a inteligência artificial auxilia a equipe de saúde a acompanhar seus exames, monitorando de forma personalizada e concedendo todas as orientações necessárias durante o pré-natal”.  

O programa também conta com uma estrutura para capacitação de gestores e profissionais de saúde, além de permitir que a população em áreas de vulnerabilidade tenha acesso à tecnologia, disponibilizando ferramentas aos agentes comunitários e aos profissionais que atuam no consultório de rua.  

“Parte da população que depende do sistema público não tem acesso a um dispositivo móvel. Por esse motivo, estamos instrumentalizando nossas UBS para disponibilizar um computador com álcool, com imagem e captação de imagens de alta qualidade para que as pessoas possam ter, de fato, acesso a diferentes modalidades de atendimento em saúde”. 


Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, Repórter e Editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.

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