No início de 2020, após ser demitido da indústria onde trabalhava como operário, no norte da Itália, o jovem senegalês Kabhane Khaby Lame teve uma ideia: fazer vídeos rápidos, satirizando aqueles tutoriais quebra-galho que, em vez de simplificar, só complicam a vida. Sem dizer uma única palavra, valendo-se apenas de uma expressão de enfado cativante, Kabhane conseguiu mais de 100 milhões de seguidores no TikTok, exibindo números igualmente impressionantes em outras plataformas. Números que trouxeram outra perspectiva para quem, negro e imigrante, permaneceria desconhecido do mundo, sem oportunidades, em uma cidade industrial assolada, já na época, pela pandemia de Covid-19.
Apesar de excepcional na sua dimensão, a metamorfose de Khaby Lame de operário desempregado para entertainer viral, com direito a patrocínios e contratos de publicidade, está longe de ser um caso isolado. Na sociedade conectada por meio da revolução digital, pessoas de qualquer lugar do mundo, de qualquer gênero, classe e etnia, têm à sua disposição as ferramentas necessárias para fazer seu talento chegar à audiência. Basta, como Kabhane, ter um celular e uma conexão com a Internet.
São oportunidades igualmente democráticas e inclusivas — e não por acaso esses são valores caros à Nova Economia. No YouTube, por exemplo, apenas um clique separa o chef de cozinha profissional da dona de casa que ensina a fazer as receitas aprendidas com a avó; o artista famoso do garoto do interior que exibe seus solos de guitarra; a esteticista de renome da menina que sabe tudo de produtos de beleza. Marceneiros, eletricistas e mecânicos de todos os estratos, com níveis distintos de produção, monetizam suas dicas e seus truques, e meninos e meninas podem investir nos sonhos de uma carreira que ainda não começou, seja a de narrador de futebol ou de divulgador científico. No passado, essa moçada cheia de ideias e desejos precisava estar no Rio de Janeiro ou em São Paulo, para bater nas portas da Globo ou da Abril – se não, era preciso mudar de cidade, ou Estado, a primeira de muitas barreiras para entrar no jogo: falta de contatos e de experiência, com exigências curriculares e de formação no mais das vezes irreais. As chances de se tornar um grande player eram mínimas.
A vitalidade desse ecossistema, que abarca do entretenimento à produção de conteúdo, é demonstrada pelo fato de que ela vale igualmente para profissionais já reconhecidos, aqueles que, na lógica antiga, tinham seus talentos remunerados por quem podia lhes dar acesso à audiência – emissoras de TV e de rádio, jornais, revistas segmentadas. Hoje, comediantes, jornalistas, chefs de cozinha, professores, artistas, dentre muitos outros, encontram nas plataformas digitais um novo modelo para as suas carreiras.
Rompendo com o modelo tradicional de trabalho, eles administram ativos que são deles e de mais ninguém. São empreendedores de quem não se exige um aporte de capital além da sua expertise e imagem. Circunstancialmente, registre-se, essas plataformas foram providenciais para muitos (músicos, por exemplo) durante a pandemia, tornando-se a única possibilidade de renda em tempos de quarentena. O que não deixa de ser uma ironia para quem – como nossos pais, acostumados às barreiras da Velha Economia – acreditava que o trabalho com carteira assinada era sinônimo de segurança.
Todo esse mosaico de talentos, alguém pode objetar, terá alcance desigual, filtrados pelos algoritmos das plataformas. É verdade. Mas os vídeos caseiros, sem texto e simplíssimos de Khaby Lame servem também como demonstração do quão enganosa é a ideia de que é invencível a vantagem de quem pode investir em produção, equipamento e marketing. Nas condições certas, uma boa ideia é capaz de desmanchar a necessidade de todo esse caro aparato.
A força do ecossistema
É esse contexto que faz com que influenciadores digitais, “empreendedores de si mesmos”, sejam exatamente como uma startup. Como elas, são disruptivos, encaram o risco da inovação e estão preparados para serem ágeis para mudar diante da volatilidade, por exemplo, do consumo de novidades na Internet. À parte a seara do entretenimento, alguns deles são capazes de se tornar referência no mercado em suas atuações.
Um outro caso, em muitos sentidos oposto ao Khaby Lame, mas complementar na constituição dessa nova lógica que faz a diferença na vida das pessoas, é o do brasileiro Thiago Nigro. Nascido em uma família de empreendedores, o paulista se tornou o maior influenciador de finanças do mundo com o canal O Primo Rico, um negócio mais que robusto com a fronteira dos 5 milhões de inscritos ultrapassada.
A história de Thiago segue o script conhecido dos negócios inovadores. Começo caseiro e sem estrutura profissional, antecedido de erros e frustrações que, ao contrário de desviá-lo para a rota de um emprego tradicional no setor financeiro, serviram para aperfeiçoar a fórmula de falar de investimentos para todos os públicos, em especial o pequeno investidor. Hoje, o canal é o carro-chefe de um negócio, o Grupo Primo, que inclui conteúdos especializados, mediante assinatura, de cursos online a marketing. Ele também é o rosto da corretora Rico, da XP Investimentos, replicando valor para o ecossistema.
Esse é um dado importante para mostrar como as possibilidades de mudança na vida das pessoas espelham as transformações macro decorrentes da Nova Economia. Encomendado pelo YouTube, um estudo feito pela Oxford Economics apontou que o mercado em torno da plataforma gerou 122 mil postos de trabalho no Brasil em 2020, impactando o Produto Interno Bruto em R$ 3,4 bilhões. É uma cadeia que congrega programadores, técnicos, roteiristas, editores de vídeo e de arte… Do mesmo modo, atrai grupos de investidores, resultando em estratégias inovadoras de comunicação. Muitas empresas da velha mídia, aliás, já descobriram que a sua sobrevivência junto à audiência e aos anunciantes passa por esses novos marcos.
Tudo isso resulta numa nova configuração do mundo do trabalho. Também na perspectiva do indivíduo, ele ganha mais flexibilidade para gerenciar não só o seu negócio, mas também o seu dia-a-dia. Se os ativos são seus, o tempo também é: para dedicar a outras atividades, para estudar e se aperfeiçoar. Para, em suma, viver sem as amarras sem sentido que era o custo de uma segurança que, já sabemos, é ilusória. Bem mais reais são as oportunidades que se apresentam em um país em que cerca de 70% da população brasileira tem acesso à Internet. São cerca de 150 milhões de pessoas, ávidas por uma gama de assuntos que vai do entretenimento às finanças – do riso e da leveza trazidas por Khaby Lame, da informação e da expertise fornecidas por Thiago Nigro. As oportunidades estão aí, e são para todos.
Este artigo foi produzido por Diego Barreto, VP de Finanças e Estratégia do iFood e colunista da MIT Technology Review Brasil, em parceria com Laura Bucher e Luiza Mesquita.