O futuro é deficiente
Humanos e tecnologia

O futuro é deficiente

Precisamos tomar medidas em direção a um futuro mais inclusivo — um futuro em que todos nós possamos viver.

“A tecnologia”, escreveu o falecido historiador de tecnologia Melvin Kranzberg Jr., “não é boa nem ruim, nem neutra”. Essa é uma observação que, muitas vezes, não fica na cabeça das pessoas quando pensam sobre tecnologias relacionadas à acessibilidade. Muitas de nossas histórias dominantes sobre tecnologias para deficiência, acesso e mobilidade as pintam como objetos de capacitação ou panaceias heroicas e transformadoras de males sociais. 

Como uma pessoa com deficiência múltipla, às vezes também posso me deixar levar pelo hype comercial e pela esperança em torno da tecnologia prometida: uma perna recém-fabricada que se encaixa perfeitamente, ou um novo medicamento promissor para meus problemas autoimunes, ou até mesmo um novo aplicativo que poderia emitir os lembretes certos para me manter na tarefa. Mas os benefícios de bons dispositivos, aplicativos e tecnologias muitas vezes podem ser temporários ou desequilibrados ou exigir meu constante investimento, cuidado e atenção para que funcionem comigo. A maior parte dos bugs e da falta de tempo das novas tecnologias nunca é mencionada na cobertura da mídia sobre tecnologias assistivas e acessíveis: somos informados de que alguma equipe de engenharia humanitária ou de reabilitação (que heróis!) está trabalhando no problema — o problema sendo descrito como pessoas que não se encaixam em um determinado molde. Jillian Weise, minha poetisa ciborgue favorita, escreve — na voz de homens posicionados como engenheiros / terapeutas / “ajudantes” em um sonho — “Don’t you like it. / Don’t you laud us. / Don’t you god us.” (Em tradução livre para português: “Você não gosta. / Não nos elogie. / Não nos endeuse.”). 

Esses homens (e em sua maioria são homens) normalmente não são os que têm de viver com o que criaram; não são as pessoas que são posicionadas como objetos, obstáculos e inconvenientes. Para as pessoas destinadas a usar a tecnologia, nem todos os avanços são tão desejáveis quanto parecem. Há muito mais ambiguidade no uso — nem bom, nem ruim, nem neutro — quando você se afasta do hype. 

Muitas vezes, ao desenvolver tecnologia de acessibilidade, as pessoas acreditam em níveis de acesso à tecnologia que não existem. Elas não levam em conta os lugares onde a falta de acesso à internet é uma barreira contínua, onde nem todos têm smartphones para usar um aplicativo necessário, onde bons dispositivos são anunciados, mas não são fáceis de comprar ou obter. Os projetos geralmente não estão centrados adequadamente nas comunidades que atendem ou não entendem que essas comunidades podem buscar seus próprios desejos em vez daqueles refletidos na cultura dominante.

O “normal” deixa muitas pessoas de fora e não é, por si só, um bem inerente

Na MIT Technology Review americana você pode ler histórias importantes sobre questões atuais de acessibilidade. Lorena Ríos descreve sua viagem a Ciudad Juárez, na fronteira entre o México e os EUA, para explorar um aplicativo da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA para solicitantes de asilo. Chancey Fleet compartilha conosco seu trabalho na Biblioteca Pública de Nova York para expandir o acesso da comunidade cega a imagens e design. Colleen Hagerty traça o perfil da professora de direito Monica Sanders, que está trabalhando para destacar questões de acessibilidade à Internet no planejamento de desastres climáticos. Corey S. Powell discute o trabalho em andamento sobre projetos de “sonificação” em astronomia, enquanto Julie Kim explora o cenário em torno do acesso a tecnologias eficazes de comunicação assistida.

Ao ler estas reportagens, fiquei pensando em como a equidade e a flexibilidade de uso são princípios básicos do design universal. Uma coisa que me chamou a atenção na história de Ríos sobre o CBP One, o aplicativo para solicitantes de asilo, é como o limite de um aplicativo e de um caminho prejudicou os mais necessitados de asilo, cujo acesso é severamente restringido por esses limites tecnológicos. As histórias sobre sonificação de dados e imagens táteis exemplificam a necessidade de orientação de pessoas com deficiência para enriquecer nossas atividades educacionais, científicas e cotidianas.

Estou escrevendo um livro sobre as histórias que contamos acerca da tecnologia e as histórias que contamos a respeito da deficiência, que explora o que as narrativas sobre tecnologia relacionada à deficiência fazem de errado ao centralizar nos desenvolvedores em vez de nos usuários. Vemos isso em projetos como exoesqueletos apresentados como dispositivos para ajudar as pessoas a andar novamente, ou intervenções que buscam normalizar o comportamento autista. Tudo isso é feito sem ouvir o que os verdadeiros especialistas dizem querer. Muitos enquadram as pessoas marginalizadas como problemas e procuram nos controlar, categorizar ou policiar — ou exigem que sigamos caminhos específicos para sermos “dignos” de acesso aos olhos de uma cultura dominante.

Mas o “normal” deixa muitas pessoas de fora e não é, por si só, um bem inerente. Muitas vezes, desvalorizamos a criatividade e a inteligência das pessoas que estão fora desse quadro, em vez de apreciá-las como criadoras, engenhosas e conhecedoras. Precisamos de mais maneiras de existir além dos limites estreitos que o capacitismo e a supremacia branca permitem. 

Como diz o título do livro provocativo de Leah Lakshmi Piepzna-Samarasinha, o futuro é deficiente. É necessário abrir espaço para pessoas com deficiência e futuros com deficiência para enfrentar de fato o que está diante de nós. Com as mudanças climáticas, por exemplo, devemos esperar mudanças nos padrões de doenças (mais doenças transmitidas por carrapatos, como a doença de Lyme). Com o racismo ambiental, já vemos taxas mais altas de asma e outras doenças crônicas (e isso continuará). Na cauda longa da Covid-19, devemos esperar mudanças de longo prazo em um grande segmento da população, semelhante ao que vimos com a síndrome pós-pólio e com o herpes zoster após a catapora. 

Com muita frequência, vendem-nos a promessa de futuros que trabalham para eliminar a deficiência por meio de projetos eugênicos, edição de genes e terapias criadas para levar as pessoas a uma fala ou marcha perfeita. Muitas vezes, há um foco na cura ou na reabilitação como pré-requisito para a participação; um foco em “soluções” para indivíduos, em vez de infraestrutura para capacitar diversas comunidades. Há uma certa “resistência” injusta imposta a indivíduos que geralmente estão à mercê de sistemas maiores de exclusão. Pedimos que as pessoas se dobrem no tempo e no espaço para se adequarem a uma visão de dignidade, bondade, produtividade e retidão moral e física, que é absolutamente o oposto de inclusão, inventividade e abertura. 

Precisamos de mais maneiras de ser. Parte disso envolve buscar formas alternativas de sentir, processar, mover-se, compreender e comunicar-se, e ver essas formas como boas e valiosas. Abrir-se para o pensamento de acesso total e para a experiência de pessoas com deficiência significará um mundo mais habitável — um mundo em que todos nós possamos viver. 


Ashley Shew, professora associada do Departamento de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Virginia Tech e autora de “Against Technoableism: Rethinking Who Needs Improvement” (2023), é a editora convidada desta edição. 

Último vídeo

Nossos tópicos