O Brasil que queremos
Governança

O Brasil que queremos

A adoção de uma identidade digital única estimula a economia e garante a inclusão social e financeira

A corrida pela adequação ao mundo digital é prioridade de qualquer país em tempos de globalização. Mas o enorme casco de tartaruga que o Estado brasileiro carrega cobra seu preço. Em 2017, uma proposta de identidade única para o cidadão, batizada de DIN – Documento de Identificação Nacional, reunindo RG, CPF e Título de Eleitor, ocupou a pauta de discussões. Cinco anos depois, ainda não foi implementada. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou, agora, em fevereiro de 2022, uma nova etapa do processo, com a emissão do documento digital para servidores da Justiça Eleitoral e outros órgãos públicos. Importante: só para eles. Em agosto, para cidadãos de Minas Gerais, com cerca de 500 mil documentos nesse lote. “A expectativa é que, no futuro, o DIN seja um importante meio de identificação do cidadão em suas relações com a sociedade e com os órgãos e entidades governamentais e privados”, diz o comunicado do TSE. Notem: no Brasil, ainda se usa ‘no futuro’ quando o assunto está ligado à tecnologia.

Esse é só um exemplo do problema maior que envolve a criação de uma identidade digital única no país. No lugar de elaborar soluções eficazes, o que se nota aqui é um esforço para digitalizar a burocracia. Mais uma evidência: dias antes de fevereiro terminar, o governo federal anunciou a criação de uma carteira nacional de identidade unificada em todo o país, com o CPF como número padrão para todos – hoje, cada estado tem seu formato e padrão de emissão de RG. Por que não priorizar a unificação de identidades no âmbito digital? Levaremos 10 anos para fazer essa transição.

O Estado – em nível federal, estadual e municipal – já conta com uma base de informações gigantesca, com certidão de nascimento, fotos, PIS, CNH, vinculação com CNPJs de empresas, número de passaporte, ficha criminal, dados de saúde do SUS, de imposto de renda, de carteira de trabalho, de registro profissional, endereços vinculados ao IPTU, contas atreladas a bancos e outra infinidade de fontes que nem sequer lembramos. Para cada acesso a qualquer órgão público, é necessário colocar login e senha. Fica claro que o problema não é a falta de identidade digital, mas sim a existência de identidades demais, espalhadas por diversos canais, sem contar as senhas particulares necessárias para acesso a emails, contas de TV on demand, redes sociais, nuvens com nossos arquivos, entre outros. Um mundo de informações pessoais trafega nas mais diferentes plataformas e é transformado em ouro por empresas privadas, mas não facilita em nada a vida do cidadão.

O preço de nossa identidade

Isso precisa mudar, mas não no futuro, como diz o TSE. Temos de nos tornar donos de nossa identidade hoje. Um sistema digital único pode garantir a possibilidade de entrar em qualquer repartição e resolver burocracias de forma imediata. Trata-se de abraçar a inovação e gerar oportunidades de negócios, com impacto em várias frentes ­– do ganho em tempo e agilidade no processamento de dados até o combate à falsificação de documentos, problema que, segundo o Estado, gera prejuízos da ordem de R$ 60 bilhões ao ano.

Trata-se, também, de debelar outro grave problema do país, que é a invisibilidade social. Enquanto para alguns há uma infinidade de senhas de acesso, para outros não há o essencial. Quase 3 milhões de brasileiros não têm sequer certidão de nascimento, segundo dados do IBGE. Se a pessoa não tem nenhum documento, não existe para o Estado, não existe para saúde ou educação pública. Essa realidade foi escancarada durante a pandemia de Covid-19, quando se constatou que 46 milhões de brasileiros não estavam em nenhuma lista governamental. Eram desempregados, autônomos e trabalhadores informais apartados social e financeiramente, que não conseguiam receber o auxílio emergencial por serem invisíveis aos olhos do governo. Não é possível esperar mais. O Estado precisa escolher um modelo digital e implementá-lo em curto prazo.

Modelos mundo afora

Exemplos de como fazer isso não faltam. A Índia, país com 1,3 bilhão de pessoas, dos quais boa parte em situação de pobreza, montou o programa Aadhaar, inscrevendo em apenas 5 anos 1,2 bilhão de cidadãos. Além de dados básicos, colheu-se biometria, íris e foto de rosto. Pronto. O país passou a ter quase toda a população no grid digitalmente. Um dado do Banco Mundial mostra o que isso significa: em 2011, cerca de 40% dos adultos indianos estavam no sistema bancário. Seis anos depois, o número pulou para 80%, sendo que a maior parte usou como porta de entrada o Aadhaar.

Já na pequena Estônia, referência em administração pública digital, o caminho escolhido mirou as pessoas jurídicas. Em 15 minutos você abre uma empresa por lá, apenas com uma assinatura digital que leva em conta uma combinação de números e o chip presente no RG digital (nada de senha ou login), e que permite acesso a 500 serviços do governo. Isso aconteceu entre 2000 e 2016, quando o país instituiu que uma assinatura digital equivaleria a uma física. A digitalização, segundo Toomas Hendrik Ilves, presidente da Estônia na época, teve impacto de 2% no PIB. E mais: toda essa infraestrutura governamental foi bancada 50% pela iniciativa privada.

Estamos na frente de quem?

O funil desses novos tempos no Brasil provavelmente é o registro biométrico e foto da Justiça Eleitoral, que pediu o comparecimento dos eleitores a cartórios ou postos eleitorais em 2019, suspenso em 2020 por conta da pandemia. Os donos da tecnologia são o próprio TSE e o Serpro, empresa pública de tecnologia da informação. Daí a pergunta: será que várias novas startups não teriam soluções eficientes para agilizar esse processo nacional, como na Estônia?

Em São Paulo, surgiram nos últimos anos algumas experiências de conexão entre o poder público e o mundo digital. O Prodesp, empresa de tecnologia do Estado, criou o Programa Sem Papel, praticamente zerando o trâmite impresso em repartições públicas estaduais. Os Poupatempos encamparam o distanciamento da pandemia e colocaram mais de 150 atendimentos no modo online. No Procon, praticamente tudo está online, desde abertura de reclamações até audiências de conciliação. O Balcão Único, com o portal Integrador Estadual da Junta Comercial de SP, reuniu várias etapas para se abrir uma empresa em um só ambiente. São passos positivos, mas que podem ir muito mais longe com a identificação digital única.

Futuro com segurança

Já estamos vivendo no mundo tecnológico – não precisamos esperar metaverso algum. A identidade digital será uma base de dados poderosa, complexa, e que, claro, estará sujeita aos novos tempos também, como em discussões de segurança digital. Porém, os dados já estão nas redes, nos órgãos públicos, nos inúmeros sites que entramos diariamente, por isso usar a proteção de informação como entrave é levantar uma falsa questão. Manter tudo no papel, no carimbo, na burocracia, no olho no olho não é opção. O futuro é um caminho sem volta e o uso de tecnologia aliado a uma política pública efetiva, seguindo as medidas cibernéticas de segurança, é o mínimo necessário para que o país não fique para trás na corrida global.


Este artigo foi produzido por Luana Tavares, Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford, Professora e Palestrante em Liderança e Conselheira Fiscal do Vetor Brasil.

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