O apagão tecnológico tem preço alto. Como segurar os seus melhores profissionais?
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O apagão tecnológico tem preço alto. Como segurar os seus melhores profissionais?

O problema da escassez de profissionais em tecnologia está se agravando com a alta rotatividade de profissionais. A boa notícia: há estratégias para lidar com isso e elas podem ser mais simples do que você imagina.

Entre 2018 e 2019, a Meta (antigo Facebook) foi dona da maior taxa de rotatividade entre as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício. Segundo dados do LinkedIn levantados pelo Silicon Valley Business Journal, a média de permanência entre colaboradores na dona de redes sociais era de dois anos e dois meses. Em dezembro de 2020, esse período se alongou para dois anos e sete meses.

Inesperadamente, foi na HP que uma grande mudança parece ter se desenrolado durante o período. Até então, a fabricante de computadores era uma das campeãs em retenção do ranking: ocupava a 21ª posição, com pessoal permanecendo, em média, sete anos e sete meses. Em dezembro de 2020, esse número caiu para três anos e meio — o oitavo menor entre big techs do Vale, de acordo com o portal.

A história acima é para ilustrar um ensinamento que a Transformação Digital traz em sua raiz, sobre a impermanência das coisas. A necessidade de se estar em estado constante de evolução nas mais variadas áreas de um negócio é o que irá permitir organizações previrem e resolverem problemas com agilidade. Como o da retenção de talentos.

Temos um cheiro de como as taxas de turnover devem se intensificar entre profissionais de tecnologia no Brasil. A previsão da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação é a de que, até 2024, 190 mil vagas não sejam preenchidas por falta de oferta de profissionais na área. Formamos 46 mil pessoas por ano em TI , um número que não será suficiente. Fala-se hoje em potencial “apagão tecnológico”.

A área de tecnologia, aliás, é a mais sensível quando se compara os dados de rotatividade de colaboradores de outros setores. Segundo um relatório recente feito pelo Linkedin, que se tornou uma referência na análise de turnovers, o setor “Tech” tem uma taxa de saída de profissionais de 13,20%. Em seguida no ranking estão Varejo (13%), Media & Entretenimento (11,40%) e Serviços (11,40%).

O custo do turnover

Contratar pessoas é caro e leva tempo. Segundo a consultoria Recruit Shop, são necessários cerca de 2 anos para que um colaborador alcance o estágio máximo de produtividade em uma companhia. Nos Estados Unidos, só para contratar um profissional leva cerca de 24 dias. No Brasil, a média é de quase 40 dias.

E se é difícil contratar, o melhor caminho é não perder quem já está no barco. Para tentar medir o impacto financeiro do turnover nas organizações, a consultoria de recrutamento e seleção Bucketlist compartilhou uma planilha em que exemplifica o “preço da perda”. Segundo os cálculos sugeridos, nos Estados Unidos, uma empresa média (500 funcionários), que perde cerca de 65 pessoas por ano da força de trabalho, tem um custo adicional anual de US$3,9 milhões para repor os novos colaboradores.

“Qualquer companhia gostaria que a taxa de saída de colaboradores fosse baixa, o investimento de tempo e dinheiro que são necessários para repor alguém é bastante relevante”, diz Matheus Goyas, cofundador e CEO da Trybe. “Esse tempo gasto para reposição de pessoas que deixam a organização atrapalha o desenvolvimento e a velocidade de evolução da empresa.” Em startups, ter um turnover baixo pode ser decisivo para o sucesso.

A Trybe é uma escola de tecnologia fundada em 2019 por um grupo de empreendedores de Belo Horizonte com mais de 10 anos de experiência em educação e tecnologia. A escola oferece hoje um exigente curso de desenvolvimento web por meio do qual mais de 90% das pessoas estudantes conseguem trabalho em até três meses após a formatura. Antes de fundar a Trybe, o grupo criou o AppProva, uma ferramenta para exames padrão (como OAB e Enem) que ajudou milhões de estudantes pelo Brasil e que foi vendida para a Somos Educação em 2017. A Trybe foi fundada dois anos depois, em agosto de 2019. A maioria dos 74 colaboradores que o AppProva tinha na época da aquisição foi trabalhar na nova edtech de Goyas.

Em uma conversa recente com o Matheus, anotei e desenvolvi insights que podem ser valiosos para empresas sobre o assunto.

Desenvolvimento de carreira e treinamentos

“Pessoas colaboradoras também escolhem o lugar em que vão trabalhar pela possibilidade de aprender coisas novas. É importante permitir que o time seja desafiado com metas nítidas, objetivas, mensuráveis e que tenham apoio para se desenvolver de forma constante para continuarem tendo novos desafios conforme a organização se desenvolve”, diz Goyas. Grande parte das empresas com melhores resultados de retenção investe em treinamento ou disponibiliza orçamento para que funcionários façam cursos para adquirir novas habilidades ou aprofundar conhecimentos. É essencial o estímulo da liderança nesse ponto, algo que vai desde 1:1s dedicados a ajudar pessoas a identificar áreas nas quais querem receber treinamento até compreensão de como cursos e aulas podem afetar horários de trabalho.

No final do dia, o que o líder precisa aspirar é a evolução de todas as pessoas colaboradoras, mirando a evolução da empresa. “É usar o foco naquilo que é pessoal, de cada um, para promover o crescimento do todo”, diz Goyas. “Se você tiver as pessoas trabalhando em sua melhor performance, terá uma empresa atuando em sua melhor performance.”

Tenha uma meta realista de turnover

Ter taxas de turnover abaixo de 5% costuma ser praticamente impossível, a menos que sua empresa tenha menos de 15 funcionários. Para empresas de portes maiores, pode ser interessante calcular a taxa de saída de colaboradores ao longo de um ano e definir uma meta para alcançar números melhores no ano seguinte.

Digamos que uma companhia teve, no ano passado, uma taxa de rotatividade de 13% e queira diminuir o número para 10%. Na prática, você estaria falando que a empresa deveria trabalhar com a meta de ter um número X de pessoas a menos saindo da empresa ao final do trimestre ou ano fiscal. Ter esse “X” bem calculado dá uma melhor perspectiva do que é preciso fazer. Permite que as lideranças e o RH estejam de olho em potenciais insatisfações de colaboradores e atentem-se, sobretudo, ao fator humano da questão. Não é uma porcentagem, são pessoas.

Aprenda com o turnover

A saída de pessoas ocorre em todas as empresas, pelos mais diversos motivos. É algo a se aceitar e, por mais duro que possa parecer, é importante criar um plano estruturado para esse momento. Especialistas do setor afirmam que companhias que homenageiam profissionais que executaram bons trabalhos no momento da despedida costumam criar um vínculo ainda maior com toda a organização. Além disso, passam uma mensagem positiva para o time em uma divulgação que parece negativa à primeira vista: a de que portas seguem abertas, para ambos os lados. Isso se chama, além de empatia, employer branding.

A depender do modelo de negócio, é possível criar grupos de funcionários trabalhando em conjunto para que, no caso da saída de alguém, um novo colaborador seja mais rapidamente integrado às tarefas daquele posto. Para isso, “documentar processos e disponibilizá-los de forma organizada e estruturada para quem acabou de chegar é um passo essencial”, diz Goyas. Essa tarefa ganha ainda mais importância diante do cenário de pandemia e do trabalho remoto — principalmente considerando que a oferta “trabalhe de onde estiver” é uma tendência entre as áreas de tecnologia que não deve se dissipar tão cedo. Não são poucas as organizações criando escritórios em outros países para conseguirem contratar desenvolvedores.

A história de como a Trybe conseguiu documentar seus processos é interessantíssima. “No final de março, não só por conta da pandemia, mas também pelo tamanho que estávamos ganhando, vimos que precisávamos criar maneiras remotas de os times passarem conhecimento e registrarem aprendizados. Para dar uma ideia, de lá para cá, a empresa foi de 40 funcionários para mais de 300. Anteriormente, a documentação de trabalho das áreas era feita separadamente, em diferentes plataformas. Fizemos benchmark com a GitLab (que tem mais de 1500 pessoas trabalhando em 120 países) e decidimos unificar tudo em um só portal”, diz Goyas. “Se transformássemos esse portal em um livro, seria uma obra com mais de 1500 páginas.”

Invista em cultura e reforce isso por toda a empresa

Nunca se falou tanto em cultura organizacional. E não é à toa. Gerações Y (ou Millennial) e Z (esta última, dos nascidos de 1990 a 2010), ​​consideram o trabalho um reflexo de suas personalidades, segundo estudo da BridgeWorks. O que aprendemos desde a geração dos nossos pais é que o que faz uma pessoa permanecer em um trabalho vai além do salário. Em um ambiente ultra competitivo, como o da carreira de desenvolvedores, a questão torna-se ainda mais importante. Mas, como tudo na vida, respirar e viver a cultura organizacional é algo mais fácil de falar do que de fazer.

Outro estudo, o Putting purpose to work; a study of purpose in the workplace (2020), da PwC, revelou que 79% dos líderes acreditam que o propósito é fundamental para o sucesso comercial de uma organização. Mas apenas 34% usam o propósito como guia na tomada de decisões. Além disso, só 27% ajudam funcionários a conectarem os próprios propósitos ao trabalho da empresa.

Nos últimos anos, tornou-se comum ver empresas investindo em ambientes descolados, com mesas de pingue-pongue e videogames. Por algum motivo, o dress code “bermuda e camiseta” passou a ser destacado como um dos benefícios do trabalho. Na pandemia, outras iniciativas se espalharam, como grupos para exercícios online, clubes do livro, happy hours via Zoom. É óbvio que iniciativas assim são importantes, porque ajudam na construção de relacionamentos. Mas são apenas uma parte do que faz colaboradores se sentirem confortáveis ​​e felizes no trabalho. E, indo direto ao ponto, não representam propriamente cultura.

“A cultura começa como um bem intangível: aquilo que a empresa aspira ser, e no que ela irá se ancorar para atingir esse objetivo. Mas a cultura tem que se tornar tangível já a partir do dia 1 — e esse é o ponto que vejo muitas organizações ainda não compreendendo muito bem”, diz Goyas. “Se uma empresa tem transparência como um de seus valores, como é o caso da Trybe, a liderança não só exerce a transparência, mas promove e premia iniciativas criadas com esse valor. Isso gera um efeito cascata por toda a empresa. Se não é colocada em prática, a cultura se torna apenas um monte de palavras bonitas em uma apresentação.”

Na Trybe, um simples sistema de agradecimento por trabalhos bem feitos ajuda a construir um ambiente de generosidade entre o time, por exemplo. Momentos síncronos com toda a equipe para explicar tomadas de decisão, abrindo um canal para dúvidas e comentários, faz com que todos vivam na pele o valor Transparência da empresa.

“Construa uma cultura que reflita os valores que são efetivamente vividos e praticados dentro da organização. A Cultura começa a ser construída pelo exemplo da alta liderança e do que se faz na prática, não é o contrário.” Isso cria uma sensação de pertencimento muito grande e, no final do dia, é fundamental para a retenção de talentos e para a empresa, no geral.


Este artigo foi produzido por Gustavo Caetano, CEO da Sambatech e Samba Digital, e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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