Perto da meia noite do último 18 de janeiro, a tela do TikTok de milhões de usuários norte-americanos destacava uma mensagem: “Uma lei proibindo o TikTok foi promulgada nos EUA. Infelizmente, isso significa que você não pode usar o TikTok por enquanto.”
O choque foi imediato. Para muitos usuários, o TikTok era mais do que um simples aplicativo de vídeos curtos – era um espaço de conexão, entretenimento e, em alguns casos, a principal fonte de renda. Antes mesmo que os servidores desligassem, os fóruns do Reddit já fervilhavam com estratégias para driblar o bloqueio. VPNs, proxys e outras soluções improvisadas ganharam tração na internet estadunidense. Mas, em paralelo ao desespero, surgiu uma alternativa que políticos em Pequim e na Casa Branca não esperavam: um aplicativo chinês chamado RedNote.
Fundado em 2013, o RedNote – conhecido originalmente como Xiaohongshu – já era um fenômeno dentro da China, mas nunca havia despertado tanta atenção fora do país. Com cerca de 300 milhões de usuários ativos, a plataforma começou como um espaço para compartilhar dicas de compras, viagens e comidas de rua, mas evoluiu para um ecossistema de criação de conteúdo semelhante ao Instagram.
Ao contrário do TikTok, que prioriza viralidade instantânea, o RedNote aposta em um algoritmo que favorece postagens autênticas e menos dependentes de grandes influenciadores. Seu feed é construído a partir de interesses reais dos usuários, permitindo um nível de personalização que cativou rapidamente os estadunidenses.
Segundo a Sensor Tower, nos dias que antecederam o bloqueio do TikTok (de 13 de janeiro a 19 de janeiro), o RedNote viu seus downloads nos EUA aumentarem 300%. Quando o TikTok finalmente saiu do ar, o RedNote alcançou a primeira posição na App Store norte-americana. Assim, o que parecia apenas uma migração digital se transformou em um experimento geopolítico.
Ponte cultural entre superpotências
De um lado, norte-americanos recém-chegados tentando entender uma interface completamente nova, mergulhados em um ambiente no qual o mandarim é a língua padrão. Do outro, usuários chineses, habituados a uma bolha digital nacional, observavam a repentina chegada de estrangeiros curiosos e, muitas vezes, perdidos.
Como era de se esperar, veio o choque cultural. Os americanos ficaram surpresos ao descobrir que o custo de vida na China era muito mais baixo do que imaginavam. Vídeos viralizaram mostrando consultas médicas por US$ 15, passagens de metrô por US$ 0,50 e aluguéis 80% mais baratos que em Nova York. Segundo o World Population Review, o salário médio mensal em Xangai, uma das cidades mais caras da China, é de US$ 1.400, enquanto em Nova York ultrapassa os US$ 6.000 – um contraste econômico inquietante.
Além disso, enquanto os estadunidenses tentavam decifrar menus e funções do aplicativo, os usuários chineses passaram a oferecer ajuda. Perfis locais começaram a ensinar mandarim aos recém-chegados, e a busca por aulas de chinês no Duolingo disparou. Dados da plataforma de aprendizado de idiomas indicam um aumento de 216% no número de novos usuários americanos estudando mandarim, diretamente associado à escalada do RedNote.
Como nunca antes, o intercâmbio entre as superpotências virou um tema quente – e sensível – para os EUA. “Pela primeira vez, os americanos estão vendo a China sem os filtros da mídia ocidental. O RedNote pode ter se tornado o maior golpe de soft power da China até agora”, disse Cyrus Janssen, um usuário norte-americano em seu canal do Youtube. Até a publicação desse artigo, seu vídeo-análise sobre as implicações culturais da migração entre plataformas já acumula mais de 300 mil visualizações.
Zona jurídica e diplomática cinzenta
O debate sobre banir o TikTok nos EUA não é de hoje. Durante o primeiro governo Trump, a postura em relação à plataforma era certeira, mas aberta a negociações. Em agosto de 2020, Trump ameaçou proibir o TikTok, mas, ao mesmo tempo, buscou um meio-termo: permitiu negociações para que empresas americanas adquirissem a operação local do aplicativo.
Microsoft, Oracle e até Walmart entraram na disputa pela compra da plataforma, que poderia continuar operando no país sob um novo controle. Na época, havia pragmatismo na estratégia – ao invés de privar milhões de usuários de uma ferramenta de comunicação essencial, os EUA tentariam absorver seu potencial econômico e, ao mesmo tempo, minimizar os riscos de influência estrangeira.
Sob a administração Biden, no entanto, a abordagem mudou. A Casa Branca adotou uma postura mais rígida e direta: TikTok deveria ser vendido para um proprietário americano ou seria banido permanentemente. Ao contrário do governo anterior, que explorava alternativas, a nova legislação aprovada em abril de 2024 – “Protecting Americans from Foreign Adversary Controlled Applications Act” – removeu a possibilidade de negociação e colocou a ByteDance contra a parede, argumentando que o governo chinês poderia usar os dados de cidadãos americanos para espionagem e manipulação de informações.
Ainda assim, a decisão levanta dúvidas. Se o problema é o uso indevido de dados, por que outras grandes plataformas, como Facebook e Google, que também coletam enormes volumes de informações pessoais, não enfrentam restrições semelhantes? A incongruência ficou evidente quando o próprio ex-presidente Trump, que antes defendia o banimento do TikTok, declarou recentemente que “Banir o TikTok não tornará os americanos mais seguros”. De fato, especialistas em segurança cibernética apontam que os dados dos cidadãos americanos já são amplamente acessíveis por meio de data brokers e outras plataformas que vendem informações para quem quiser pagar por elas, incluindo empresas chinesas.
Diante desse paradoxo, os Estados Unidos entraram em uma zona jurídica e diplomática cinzenta. Agora, o governo vive um dilema: manter a coerência de sua política de segurança ou admitir que a decisão está mais ligada a interesses geopolíticos do que à proteção dos cidadãos.
Se a intenção era restringir a influência da China, a migração massiva para o RedNote mostra que o público não está disposto a renunciar suas preferências digitais. Em vez de diminuir a presença chinesa nos EUA, a decisão pode ter acelerado ainda mais sua penetração cultural e tecnológica, algo que Pequim certamente observa com atenção.
Internet fragmentada
A internet, que um dia simbolizou a promessa de um espaço global interconectado, está se fragmentando em distintos blocos digitais. O conceito de “splinternet”, no qual cada país estabelece suas próprias fronteiras digitais, deixou de ser apenas uma tendência e passou a ser um fato no mundo ocidental.A decisão da Suprema Corte norte-americana de manter a obrigatoriedade da venda do TikTok ou seu banimento indica que os tempos de um ambiente digital livre podem estar chegando ao fim.
Prova disso é a escalada de tensões comerciais e políticas entre os países. No fim de 2024, os EUA impuseram sanções a 140 empresas chinesas de tecnologia, incluindo Naura Technology Group e SiCarrier Technology, restringindo seu acesso a semicondutores para limitar a capacidade do país de desenvolver chips avançados ideais para aplicações militares e de inteligência artificial. Em resposta, a China anunciou restrições às exportações de materiais essenciais para a fabricação de semicondutores, como gálio, antimônio e germânio. O país também orientou suas empresas a evitarem chips americanos, a fim de aumentar o esforço por autossuficiência tecnológica.
A fragmentação digital já é uma realidade para usuários, empresas e governos. A internet está se tornando um conjunto de redes nacionais com acessos restritos e regulamentos próprios, enquanto a experiência digital passa a ser cada vez mais definida pela geopolítica. O que funciona nos Estados Unidos pode ser inviável na Ásia, enquanto o que cresce na Europa pode não ter espaço na América Latina. A ideia de uma internet global e universal está se dissolvendo diante dos nossos olhos, dando espaço a um mosaico de redes nacionais incompatíveis entre si.
Da rede social à IA generativa
A hegemonia da IA sempre esteve nas mãos do Vale do Silício, mas isso mudou no início de janeiro. O DeepSeek, modelo chinês de código aberto, causou burburinhos, ultrapassou o ChatGPT e se tornou o aplicativo gratuito mais baixado nos EUA, despertando o pânico do setor.
O que chamou a atenção global não foi apenas a adesão em massa, mas a estrutura que viabilizou o modelo de IA. Com um custo de US$ 5,57 milhões e treinamento em apenas 2.048 GPUs por dois meses, o DeepSeek V3 desafiou o status quo de que IA de ponta exige bilhões de dólares e infraestrutura massiva.
Como era de se esperar, a disrupção do modelo frente aos concorrentes não passou despercebida. Por um lado, o feito rendeu elogios do CEO da Microsoft, Satya Nadella, que frisou a eficiência computacional do modelo, e do Cientista Chefe de IA do Meta, Yann LeCun, que ilustrou o impacto da pesquisa aberta: “Todos podem lucrar com ela”. Por outro, o núcleo das Big Techs, até então pioneiro nos avanços da IA generativa, sofreu um choque brutal com o lançamento da IA chinesa. A Nvidia perdeu US$ 500 bilhões em valor de mercado, e o setor de tecnologia encolheu US$ 1 trilhão na Nasdaq em um único dia.
Os concorrentes chineses também sentiram a pressão: a Alibaba Cloud, braço tecnológico do conglomerado Alibaba, lançou o Qwen 2.5-Max, um modelo que, segundo a empresa, supera modelos como o GPT-4o da OpenAI, o DeepSeek-V3 e o Llama-3.1-405B em “quase todos os aspectos”.
A rápida adoção do DeepSeek e o interesse das empresas nos modelos chineses sinalizam que, mesmo sob sanções dos EUA, o controle da inteligência artificial não será mais exclusivo das gigantes norte-americanas. Modelos de código aberto e alta eficiência estão descentralizando o poder computacional, remodelando a infraestrutura digital e ampliando as opções para governos, empresas e usuários.
Negócios ilhados
Atualmente, estamos diante de um modelo de “ilhas digitais”, no qual cada país impõe regulações segundo seus próprios interesses. Nesse cenário, as companhias que buscam sobreviver e manter o crescimento contínuo precisam reaprender a identificar oportunidades e mitigar riscos, sempre considerando que o ambiente digital é um reflexo das cisões do mundo físico.
Segundo dados da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), 67% das empresas brasileiras do setor de comércio e serviços têm o WhatsApp como principal canal de vendas. Além disso, 62% das pequenas e médias empresas utilizam o Instagram como seu principal canal digital de vendas e engajamento, enquanto 97,6% o consideram a principal plataforma publicitária para suas estratégias de marketing.
Nesse cenário, como as empresas poderiam reagir a uma – hipotética – suspensão dos aplicativos da Meta no país? Haveria um plano B ou estariam totalmente à mercê das oscilações geopolíticas do mercado? É essencial lembrar que uma parcela significativa de usuários (700 mil apenas no TikTok) não renuncia suas experiências digitais em nome de governos e discursos ideológicos. Da mesma forma que se pode perder usuários, o contrário também acontece, transformando plataformas em anfitriãs de milhares de refugiados digitais. É essencial, portanto, se planejar e se posicionar em momentos como esse para não perder oportunidades.
A queda da Nasdaq e a ascensão da tecnologia chinesa não são eventos isolados. Na verdade, são sintomas de uma transição tectônica, em que o modelo norte-americano do Vale do Silício – baseado em inovação privatizada e mercados abertos – se choca ao rival chinês – que une planejamento estatal, escala industrial e excelência em padrões técnicos.
Para as organizações, a saída passa pela adaptação híbrida: diversificar fornecedores, pressionar por padrões abertos e, acima de tudo, reconhecer que, em um mundo polarizado, a sobrevivência depende da capacidade de navegar em múltiplos ecossistemas – sem ilusões de que a tecnologia algum dia será livre da geopolítica.
REFERÊNCIAS
67% DAS EMPRESAS vendem principalmente pelo WhatsApp, aponta pesquisa CNDL/SPC Brasil. CNDL. Disponível em: https://site.cndl.org.br/67-das-empresas-vendem-principalmente-pelo-whatsapp-aponta-pesquisa-cndlspc-brasil/. Acesso em: jan. 2025.
ALIBABA lança IA que diz superar DeepSeek e declara guerra no setor; conheça. InfoMoney. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/business/alibaba-lanca-ia-que-diz-superar-deepseek-e-declara-guerra-no-setor-conheca/. Acesso em: jan. 2025.
CHINA critica último esforço dos EUA para bloquear acesso à tecnologia de chips. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/china-critica-ultimo-esforco-dos-eua-para-bloquear-acesso-a-tecnologia-de-chips/. Acesso em: jan. 2025.
EFEITO DEEPSEEK: Nvidia perde meio trilhão de dólares em valor de mercado. InvestNews. Disponível em: https://investnews.com.br/negocios/efeito-deepseek-nvidia-perde-meio-trilhao-de-dolares-em-valor-de-mercado/. Acesso em: jan. 2025.
FORMER Google CEO calls DeepSeek “turning point” for AI race. Xinhua, 29 jan. 2025. Disponível em: https://english.news.cn/20250129/059869dca36349ae8e5c600c9f447ab3/c.html. Acesso em: jan. 2025.
HOW TikTok became a ‘poker chip’ in a high-stakes game between Trump and China. CNN, 22 jan. 2025. Disponível em: https://www.cnn.com/2025/01/22/media/tiktok-ban-sale-trump-china-analysis/index.html. Acesso em: jan. 2025.
INSTAGRAM é a plataforma preferida dos pequenos negócios com perfil nas redes sociais. CNDL. Disponível em: https://cndl.org.br/varejosa/instagram-e-a-plataforma-preferida-dos-pequenos-negocios-com-perfil-nas-redes-sociais/. Acesso em: jan. 2025.
RED Note Exposed the Truth About China…Trump Now Has a MASSIVE Problem! YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K4ovKtlZCEE. Acesso em: jan. 2025.
WHY is everyone moving to red note rather than something like instagram reels or YouTube shorts? Reddit. Disponível em: https://www.reddit.com/r/NoStupidQuestions/comments/1i4vo0w/why_is_everyone_moving_to_red_note_rather_than/?rdt=34448. Acesso em: jan. 2025.
WHY So Many TikTokers Are Moving to the Chinese App Red Note Ahead of Ban. Time. Disponível em: https://time.com/7206781/red-note-tiktok-migration/. Acesso em: jan. 2025.