Não é de hoje que se observam mudanças no mundo e que, consequentemente, atingem as organizações e as pessoas que nelas trabalham. A revolução digital faz parte desse processo há algum tempo e ainda surpreende e assusta com o seu alcance. Isso parece estar relacionado com o que está por vir, causando inquietação com um cenário no qual parece não existir limites.
Sempre que pesquisadores começam a apontar uma nova era é natural, e necessário, que ao mesmo tempo se inicie um movimento de ajuste das organizações, para que elas possam se manter produtivas. Foi assim na revolução agrícola, na revolução Industrial, tem sido assim na revolução do conhecimento e na revolução digital.
E quanto às lideranças: o que é preciso para sair e se manter na dianteira?
Estudo realizado pelo Instituto Global McKinsey aponta que a demanda por hard e soft skills, portanto, a necessidade de habilidades tecnológicas, sociais, emocionais e cognitivas superiores, aumentará até 2030.
No mundo do Metaverso, IoT, AI, Machine Learning – com destaque para a OpenAI e correlatos, Blockchain e Tokenização –, é essencial manter as equipes atualizadas com novas ferramentas e, por conseguinte, com novas habilidades técnicas em que se desvelam, de certa forma, novas hard skills. Entretanto, nessa realidade, agudizam capacidades muitas vezes não verbalizáveis e não capacitáveis, principalmente, quando se está em contato com o outro, de maneira remota. Isso demanda mais atenção a significados, propósitos e valores humanos, que provocam um desdobramento das soft skills – clássicas na arte de liderar como, por exemplo, resiliência, inteligência emocional e comunicação – naquilo que aqui se denomina de moral skills. Serão elas importantes para o exercício da liderança em um mundo, aparentemente, sem limites?
A era digital: liderança em um mundo sem limites?
A tecnologia revoluciona a vida em todos os aspectos. No que tange à gestão das organizações, permite o acesso ao insumo principal para o processo decisório: a informação. Para que se possa usufruir de toda a informação que a era digital promete oferecer, permanece a necessidade de foco, disciplina e, acima de tudo, flexibilidade cognitiva. A Inteligência Artificial está nos envolvendo e progride a cada dia com a intenção de que seus sistemas aprendam com suas inconsistências. Cabe, aqui, conjecturar: onde fica a responsabilidade moral nos limites, por exemplo, das ações de Machine Learning? Esses limites existem? Sim, existem. As máquinas aprendem o que lhes é ensinado. Se recebem lixo, reproduzem lixo (trash in, trash out).
A despeito da democratização da informação, percebe-se que ainda existem dificuldades para colocá-la a serviço de decisões confiáveis. Diante da avalanche de conteúdos que nos atinge diariamente um dos desafios do líder no mundo digital é identificar quando o “mergulho” precisa ser mais profundo.
Respondendo à pergunta-título deste tópico: a resposta é não. A liderança tem limites.
Por quê? Porque os limites sempre existirão – o limite é o “outro” e o valor ético mais alto aqui é o respeito, na figura da moral skill “a capacidade de respeitar o outro” e que é o primeiro comportamento ético esperado quando se trata de com-viver, com-partilhar e co-operar, na intensidade exigida atualmente.
As pessoas no mundo digital
Máquinas que agem de forma autônoma estão, e estarão, cada vez mais presentes na vida das pessoas no mundo digital. Tudo isso é fascinante, mas traz à tona a vulnerabilidade humana. Como impender as pessoas da responsabilidade e em que nível, nesse cenário que ambiciona uma autonomia irrestrita?
Apesar da constante preocupação com a segurança cibernética, a maioria das consequências é positiva, bastando que se se faça o uso adequado. Aqui chama-se à conversa os aspectos morais. Assim como a ética é uma permanente reflexão sobre os atos humanos, são as morais que nos apontam o comportamento adequado para que sejamos éticos.
A virtualização deu voz a tudo e a todos. Entretanto, se por um lado deixa todos com o mesmo poder de alcance, por outro lado, dá voz a indivíduos imorais e inconsequentes que não percebem a responsabilidade que devem ter diante da tecnologia e o comportamento ético que precisa ser empreendido e demonstrado.
E o que é o comportamento ético? É a capacidade de agir com respeito, solidariedade, integridade e justiça, dentre outros valores humanos universais que, num rápido olhar, nos traduz o próprio exercício da cidadania e da urbanidade. Contudo, diante de cenários plenos de atos de corrupção, preconceitos e outros descaminhos, entende-se por oportuno reforçar os traços do comportamento ético ou, melhor dizendo, a moralidade dos atos humanos, sob a forma de “moral skills”. Esse “Admirável Mundo Novo”1, diria Aldous Huxley, requer esta atenção.
As moral skills
Lançar uma ideia de moral skills é o ponto de partida para um pensar sobre essas capacidades do líder dentro da realidade digital em que se vive hoje, ao mesmo tempo em que se espera suscitar outras capacidades que possam atender ao mesmo intento. Aqui, convida-se à discussão das seguintes moral skills:
Capacidade de respeitar o outro – existe uma máxima no âmbito das relações interpessoais de que “tudo começa pelo respeito”. Cabe nesta competência a prática da empatia para enxergar o outro na sua singularidade enquanto indivíduo, seja de gênero, origem, raça, profissão, idade, dentre uma enorme variedade de matizes que colorem o tecido da diversidade humana. Nesse particular, a chamada Agenda DEI – Diversidade, Equidade e Inclusão –, nunca esteve tão em pauta das discussões em todos os cenários sociais e organizacionais.
Capacidade de agir com justiça – nessa skill, o líder precisa “ouvir a flauta não soprada”, como disse Stephen Covey, para que possa movimentar, reconhecer e recompensar seus liderados de forma justa, por menos que ocorram (ou nem ocorram) os contatos presenciais. A injustiça é talvez a dor mais intensa sofrida por pessoas que entregam ou superam expectativas e, muitas vezes, não são percebidas. A justiça precisa integrar a equidade, uma vez que a primeira preza pela universalidade, enquanto a segunda examina as particularidades – há justiça se todos recebem o mesmo; há equidade se todos recebem o mesmo, de acordo com as suas possibilidades de desfrutar.
Capacidade de buscar a verdade – essa competência exige o aguçamento da percepção e da escuta ativa, para que o líder possa construir ou calibrar a confiança entre os integrantes da equipe, de modo a frutificar o respeito mútuo e a franqueza. À guisa de exemplo, como lidar com denúncias de assédio (moral ou sexual), entre pessoas que trabalham remotamente? Esse é apenas um dos possíveis desafios.
Capacidade de reconhecer a integridade – não obstante a confiança constituída, o ambiente virtual não traz o “olho no olho”, o que dificulta a leitura do mapa emocional do outro. Ainda que seja respaldado pela documentação de processos e ações, a movimentação corporal e outros elementos da comunicação não verbal ficam no ambiente real, fazendo com que o líder, eventualmente, se valha da sua intuição para legitimar a integridade.
Capacidade de disseminar a solidariedade – encorajar a “cultura do nós” e o “espírito de corpo” é uma aventura que nunca se encerra para os líderes e que também devem ser disseminadores de uma cultura pró-equipe. Ante possíveis dificuldades do “corpo a corpo”, cabe ao líder de ambientes digitais não apenas semear, mas também reforçar a solidariedade para toda a organização e seus stakeholders, dentro de uma visão sistêmica que encoraje a parceria e a colaboração.
Avaliando publicações do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), no seu Instante IBGC 1492, percebe-se preocupações com a economia desde a Web3. Imagina-se, na Web5, as mudanças nos processos de Governança que serão necessárias para uma liderança íntegra e justa.
O importante é entender que a era digital impõe a expansão da visão de mundo e, consequentemente, a ressignificação de modelos mentais e morais. Portanto, exige, cada vez mais, capacidade de autoconhecimento e adaptação.
Atualmente se ouve que, para sobreviver, é preciso ser competitivo, e a virtualização veio para legitimar que a valorização do coletivo fortalece o profissional e as organizações. Nesse contexto basta pensar nas chamadas “Inteligências Coletivas”. Sabemos, por exemplo, que a Wikipedia não garante a veracidade dos textos postados, entretanto, muito mais do que desconfiar da procedência das informações, o que chama a atenção é o compartilhamento espontâneo de milhares de pessoas ao redor do mundo. Outro ponto a destacar é que a Wikipedia, assim como outras plataformas digitais, ampliou o papel dos usuários, que antes eram apenas consumidores, e agora geram e consomem conteúdo.
Quando uma organização faz uso das inteligências coletivas ela ganha em velocidade, qualidade e quantidade. No entanto, é preciso ressaltar que o digital é apenas o meio que facilita o processo, mas antes de tudo é importante que os líderes compreendam que o sucesso de uma organização dificilmente é obtido quando as áreas de negócios atuam separadamente. Requer ambientes que facilitem a troca e o compartilhamento, em clima de justiça e respeito.
Neste mundo tão mutante, parece natural que não haja mais espaço para “receitas de bolo” nas áreas de negócios. Nunca foi tão verdadeiro afirmar que cada cliente é único e, portanto, precisa ser atendido em suas necessidades específicas e, não há dúvidas, que a tecnologia veio para auxiliar nessa customização. Hoje se paga pela música, apenas uma, aquela que se deseja. Pede-se por um App, em um único pedido, o jantar de um restaurante e a sobremesa de outro. A cor da tinta que será usada para pintar as paredes de uma casa pode ser criada em segundos exclusivamente para um cliente. Afinal, a lista de negócios que vêm transformando a relação do fornecedor com o consumidor-cliente a partir de alguma plataforma digital é infinita.
Será que as organizações já conseguem usufruir de todas as possibilidades que o mundo digital pode oferecer? Por mais incrível que possa parecer, a resposta é “não”. George Westerman e outros especialistas já afirmaram que ainda são raros os casos de organizações que conseguem utilizar tecnologias digitais para alcançar a performance na medida desejada. Será que esbarram em questões morais? Coloque-se à reflexão.
Viviane Narducci é Ph.D (FGV) e M.Sc. (FGV) em Administração, Consultora, Professora FGV e Mentora Executiva em desenvolvimento de Liderança | Denize Rodrigues é Ph. D (UNR) e M. Sc. (UFRJ) em Administração, Consultora, Coaching & Mentoring, e professora convidada da FGV desde 1999.