As nações estão prontas para começar a construção de um mercado internacional de carbono, depois de finalmente adotar as regras relevantes na conferência climática da ONU em Glasgow no início de novembro.
Segundo o acordo feito na COP26, os países em breve poderão comprar e vender entre si créditos de carbono certificados pela ONU e usá-los como forma de cumprir as promessas de redução de gases do efeito estufa, estabelecidos no Acordo de Paris.
Mas alguns especialistas temem que as regras incluam grandes brechas que podem criar a ilusão de que as nações estão fazendo mais progresso nas emissões do que a realidade. Outros alertam que o acordo pode acelerar a criação de créditos de carbono em outros mercados de compensação voluntários independentes, que também são frequentemente criticados por exagerar nos benefícios climáticos.
Os créditos de carbono, ou compensações, são produzidos a partir de projetos que pretendem evitar uma tonelada de emissões de dióxido de carbono ou extrair a mesma quantidade da atmosfera. Eles normalmente são concedidos por práticas como parar o desmatamento, plantar árvores e adotar certas técnicas de manejo do solo.
Um novo órgão de supervisão, que deve começar a realizar reuniões no próximo ano, desenvolverá métodos definitivos para validar, monitorar e certificar projetos que buscam vender créditos de carbono credenciados pela ONU. O acordo de Glasgow estabelecerá um processo independente para que os países ganhem crédito para cumprir suas metas de Paris ao cooperar com outras nações em projetos que reduzam as emissões climáticas, como o financiamento de usinas de energia renováveis em algum outro país.
Os especialistas discordam sobre o quão grande o mercado apoiado pela ONU se tornará, o que algumas das novas regras realmente farão e quanto os detalhes podem mudar conforme os métodos definitivos são determinados. Mas o processo está “lenta e de forma desnorteada, desajeitadamente construindo a infraestrutura para aumentar o comércio de carbono como commodity”, diz Jessica Green, professora associada de ciência política da Universidade de Toronto, que se concentra em governança climática e mercados de carbono.
Os EUA e a União Europeia declararam que não pretendem depender de créditos de carbono internacionais para atingir suas metas de emissões estabelecidas no Acordo de Paris. Mas países como Canadá, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul e Suíça disseram que vão aplicar os créditos de carbono, de acordo com o Carbon Brief. Na verdade, a Suíça já está financiando projetos no Peru, Gana e Tailândia na esperança de contabilizar essas iniciativas para atingir suas metas de Paris.
A maioria dos especialistas elogia pelo menos uma conquista importante em Glasgow: as regras evitarão em grande parte a dupla contagem do progresso climático. Isso significa que duas nações que comercializam créditos de carbono não podem reivindicar os mesmos benefícios climáticos às suas metas de Paris. Só pode ser feito pela nação que compra o crédito ou mantém um que já foi gerado.
Mercados voluntários
Mas alguns especialistas temem que ainda possa haver maneiras de ocorrer a dupla contagem.
Os desenvolvedores de projetos de compensação há muito são capazes de gerar e vender créditos de carbono por meio de programas voluntários, como os gerenciados por registros como Verra ou Gold Standard. Empresas de petróleo e gás, companhias aéreas e gigantes da tecnologia estão comprando um número cada vez maior de compensações por meio desses tipos de programas, à medida que se esforçam para atingir as metas de emissões líquidas zero.
As novas regras da ONU adotam uma abordagem direta para esses mercados, observa Danny Cullenward, diretor de políticas da CarbonPlan, uma organização sem fins lucrativos que analisa a integridade dos esforços de remoção de carbono.
Isso sugere que os desenvolvedores de projetos no Brasil, por exemplo, poderiam ganhar dinheiro pelas compensações vendidas por meio de mercados voluntários, enquanto a própria nação ainda poderia aplicar esses ganhos de carbono em seu próprio progresso de emissões em consonância com os acordos de Paris. Isso significa que ainda pode haver contagem dupla entre um país e uma empresa, com ambos alegando que os mesmos créditos reduziram suas respectivas emissões, diz Cullenward.
Presidente da COP26, Alok Sharma, recebe aplausos após fazer o discurso de encerramento na Cúpula das Nações Unidas sobre Mudança Climática em Glasgow, Escócia.
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Um problema adicional é que estudos e reportagens investigativas descobriram que programas voluntários de compensação podem exagerar os níveis de dióxido de carbono reduzidos ou removidos, devido a uma variedade de questões contábeis. Mas o fracasso da ONU em regulamentar esses programas poderia trazer liberdade ao mercado que impulsiona uma maior demanda por essas compensações, estimulando o desenvolvimento de mais projetos com benefícios climáticos questionáveis.
“É um sinal verde para a expansão contínua desses mercados”, diz Cullenward.
Alguns especialistas acham que muitas nações optarão por não utilizar seus créditos vendidos em mercados voluntários na contabilização das metas de Paris. Da mesma forma, certos mercados provavelmente farão a distinção entre os créditos que os países usaram ou não, separando-os por rótulos para sinalizar sua qualidade relativa e definindo seu preço adequado.
“Eu esperaria que, à medida que cresce o reconhecimento de que [os ajustes correspondentes] são necessários para garantir a integridade ambiental das reivindicações voluntárias de compensação, o mercado se movesse nessa direção”, escreveu por e-mail Matthew Brander, palestrante sênior em contabilidade de carbono na Universidade de Edimburgo Escola de Negócios (Escócia).
Contabilidade inconsistente
Lambert Schneider, coordenador de pesquisa para política climática internacional no Oeko-Institut na Alemanha, apontou outra “grande lacuna” em uma análise realizada em outubro.
As regras permitem que diferentes países usem métodos de contabilidade diferentes em momentos diferentes para os créditos de carbono que são gerados e vendidos, observou Schneider, que fez parte da equipe da União Europeia que negocia as regras do mercado de carbono. Isso também pode levar a uma contagem dupla. Em um cenário que ele esboçou, metade das reduções de emissões de um conjunto de créditos de carbono poderia ser reivindicada por duas nações distintas.
Os resultados de qualquer um dos métodos contábeis poderia ser equilibrado ao longo do tempo, mais ou menos, se todas as nações usassem o mesmo método. Mas, em vez disso, cada país pode escolher o método que mais o beneficia cada vez que relatar seu progresso, o que provavelmente distorcerá a estimativa geral de carbono.
“É um problema delicado”, diz Schneider.
Benefícios climáticos questionáveis
Outra área de preocupação é que as regras permitirão que as nações apliquem alguns créditos de um programa anterior da ONU, conhecido como Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, autorizado pelo Protocolo de Kyoto que entrou em vigor em 2005.
Esse sistema emitiu Reduções Certificadas de Emissões para nações que financiaram projetos de energia limpa em outros países, como fazendas solares e eólicas, para as emissões que eles poderiam ter evitado. Ele foi projetado para criar um incentivo para que as nações mais ricas financiem o desenvolvimento sustentável das nações mais pobres, produzindo créditos continuamente sob a suposição de que a eletricidade teria sido gerada por uma instalação poluente, como uma usina de carvão ou gás natural.
De acordo com as regras aprovadas em Glasgow, as nações podem continuar a aplicar créditos de tais projetos registrados em 2013 em diante para seu primeiro conjunto de metas de redução de emissões (o que na maioria dos casos significa até 2030).
O problema é que esses projetos já existem. Se um projeto não alcança reduções de emissões além do que teria acontecido sem o programa de crédito de carbono, o programa não trouxe quaisquer benefícios climáticos adicionais.
Muitos países vêm desenvolvendo fazendas eólicas e solares há anos, sem subsídio do crédito de carbono, porque eles já têm custos competitivos com alternativas de combustíveis fósseis. Na verdade, um documento de trabalho econômico recente analisou mais de 1.000 parques eólicos na Índia e descobriu que mais da metade das compensações do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo foram para projetos que provavelmente teriam sido iniciados de qualquer maneira. Isso porque outros projetos eólicos que não receberam esse subsídio foram construídos na mesma área.
Os projetos anteriores de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo poderiam produzir centenas de milhões de créditos, escreveu Schneider.
É “profundamente questionável” se esses projetos proporcionaram benefícios climáticos adicionais reais quando foram desenvolvidos, acrescenta Cullenward. “É ainda mais questionável agora”.
Ampliação de erros
Um último temor é que o novo mercado de comércio de carbono da ONU seja contaminado por esses tipos de problemas contábeis.
Na verdade, as regras aconselham o órgão de supervisão a revisar as metodologias do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo “visando aplicá-las com as revisões apropriadas” e a considerar as regras dos programas de compensação baseados no mercado “como um insumo complementar”. Alguns desses últimos, notadamente o programa florestal sob o sistema cap-and-trade da Califórnia, também têm problemas bem documentados, como a MIT Technology Review americana e a ProPublica relataram anteriormente.
Alguns grupos argumentam que o acordo de Glasgow é um “conjunto robusto de regras” porque simplesmente não conta os créditos de carbono duas vezes, diz Green. “Mas isso negligencia o fundamental, que é que existem muitos problemas com a forma como estamos contabilizando essas coisas em primeiro lugar”, diz ela.
A esperança é que o novo órgão de supervisão analise com seriedade e honestidade os problemas dos programas anteriores e se esforce para resolvê-los. O temor é que os incentivos políticos e econômicos trabalhem contra isso, à medida que nações, poluidores e desenvolvedores de projetos procuram gerar, comprar e vender créditos que lhes permitam ganhar dinheiro ou justificar seu progresso na luta contra a mudança climática.
Se o mercado de carbono apoiado pela ONU for construído sobre as bases instáveis de programas de compensação anteriores, incluindo o seu próprio, ele replicará e ampliará efetivamente os problemas conhecidos. Isso poderia exagerar o progresso nas emissões, minar a credibilidade das conquistas do Acordo de Paris e desacelerar os esforços globais para combater a mudança climática.
Correção: O artigo foi atualizado para esclarecer que o estudo dos parques eólicos na Índia concluiu que mais da metade das compensações estavam em análise, não necessariamente mais da metade dos projetos.