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“Uma revolução silenciosa.” A definição é do professor de genética Rubén Artero, da Universidade de Valência, em entrevista à imprensa europeia. Ele se referia à transformação pela qual passa a medicina com as descobertas genéticas recentes, que vêm permitindo o desenvolvimento de ferramentas para controlar a expressão e a edição de genes. Esses avanços têm resultado em novas terapias e tratamentos para doenças antes consideradas intratáveis
Durante muito tempo, a principal aflição de familiares e pacientes com doenças raras — aquelas que, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), afetam uma pessoa a cada 2 mil indivíduos2 — foi a inexistência de medicamentos capazes de tratar estas doenças.
Hoje, ferramentas inovadoras de diagnóstico e tratamento são uma realidade para diversas condições. Por outro lado, desafios como a identificação precoce e o acesso ao cuidado integral seguem presentes na jornada de quem vive com uma doença rara.
A necessidade de diretrizes terapêuticas
Foi assim com Daniele Americano, hoje presidente e cofundadora da Associação NMO Brasil. A neuromielite óptica (NMO) é uma doença autoimune do sistema nervoso central que afeta principalmente os nervos ópticos e à medula espinhal. Nesse quadro, o sistema imunológico ataca erroneamente células e proteínas saudáveis, produzindo sintomas como: dor ocular e perda de visão, fraqueza ou paralisia nos braços e pernas, perda de controle da bexiga e do intestino, náuseas e vômitos intensos, além de crises de soluço provocadas pelo comprometimento de uma área do cérebro responsável pelo reflexo do vômito.
Os primeiros sintomas de Daniele começaram em 2011, com episódios de náuseas e vômitos que duraram cerca de dois meses e resultaram na perda de oito quilos. Até descobrir o que estava acontecendo, ela passou por diversas especialidades médicas. A primeira consulta foi com um gastroenterologista, mas nenhum problema foi identificado. Algum tempo depois, Daniele começou a sentir dormência nos pés e procurou uma endocrinologista, que atribuiu o sintoma à reposição de vitaminas e minerais no organismo após o episódio prolongado de vômitos.
“Até que as minhas duas pernas ficaram dormentes do joelho para baixo, e eu entrei em contato com um amigo que é cirurgião vascular. Ele me disse que poderia ser algo neurológico e orientou que eu procurasse um neurologista. Aí começou a saga por um neurologista pelo plano de saúde. Consegui marcar, mas ele pediu exames que vieram normais. E a dormência já tinha subido até a altura da minha cintura”, relata a advogada.
Os sintomas continuaram a se agravar, mas o diagnóstico seguia indefinido. Daniele chegou a ficar internada por um mês, devido a dificuldades para urinar. As pernas deixaram de se mover. Foi só após a indicação de um fisioterapeuta, especialista em reabilitação neurológica, que ela procurou um médico que conseguiu identificar as características da doença.
“Eu estava sentindo as piores dores da minha vida. A ressonância mostrou que a inflamação na minha medula estava na ponte, uma estrutura que faz parte do tronco cerebral, que é a ligação entre a medula espinhal e o cérebro. Eu poderia ter uma parada cardiorrespiratória a qualquer momento e fui levada ao CTI neurológico. O médico que me atendeu era especialista em esclerose múltipla e neuromielite óptica, mas eu não sabia disso antes. Digo que foi Deus que colocou ele no meu caminho, porque, se eu tivesse passado por um médico não especialista, teria continuado na peregrinação. Foi ele quem fechou meu diagnóstico”, relembra.
Entre o início dos sintomas e o diagnóstico, quase um ano se passou. Daniele ficou tetraplégica funcional em razão dos surtos, algo que poderia ter sido evitado se a jornada tivesse sido mais curta. “E isso porque eu estava no Rio de Janeiro. Imagina quem mora no interior do Brasil, onde muitas vezes não há acesso nem a um neurologista, quanto mais a um especialista na doença. É por isso que, na NMO Brasil, a gente vem trabalhando para mudar essa realidade. As pessoas demoram muito para receber o diagnóstico e, quando recebem, ainda enfrentam barreiras para acessar o tratamento.”
Para o professor de Neurologia e pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Jefferson Becker (CRM 20696/RS), o diagnóstico ainda é um dos principais gargalos no caso da NMO. Trata-se de uma doença pouco conhecida, inclusive entre neurologistas, especialmente aqueles que atuam fora dos grandes centros urbanos.
“Outra dificuldade é a indisponibilidade de exames em muitos locais. O principal exame de sangue, a pesquisa do anti-aquaporina 4 (anti-AQP4), recebeu parecer positivo para incorporação5 , mas até ser, de fato, incorporado é outra conversa. E o mesmo vale para a ressonância magnética, que ainda é de difícil acesso em várias regiões, especialmente no SUS. O grande problema é que, no caso da NMO, o atraso no diagnóstico pode deixar sequelas muito incapacitantes após um único surto.”
O médico também chama atenção para os desafios relacionados ao tratamento da NMO. Embora existam medicamentos aprovados pela Anvisa, nenhum deles está incorporado no SUS ou nos planos de saúde. “Se o paciente ou o médico tenta solicitar o tratamento pelo SUS ou pelo plano de saúde, ele costuma ser negado, justamente por não haver um protocolo estabelecido para a NMO”, explica o neurologista.
Becker atua ativamente para melhorar a jornada de pacientes com NMO e reduzir as iniquidades no cuidado. Ele integra um grupo de autores que acaba de submeter um artigo à Arquivos de Neuro-Psiquiatria, revista oficial da Academia Brasileira de Neurologia, com a proposta de diretrizes brasileiras para o tratamento da NMO. A expectativa é que o documento sirva como base para o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) que está em desenvolvimento pelo Ministério da Saúde.
Tecnologia evolui, mas tratamento demora a chegar
Outra doença rara cuja jornada é desafiadora para os pacientes é a Doença Ocular da Tireoide (DOT). Na condição, o sistema imunológico ataca os músculos e os tecidos ao redor dos olhos. Os sintomas podem variar e ser intermitentes. Entre os mais frequentes estão: protusão ocular, resultante do aumento dos músculos e da gordura atrás dos olhos, fazendo com que a pessoa pareça estar com os olhos “arregalados”; retração palpebral; olho seco, que causa coceira e desconforto nos olhos, além de deixar a visão embaçada e aumentar a sensibilidade à luz; alterações na visão quando o inchaço muscular causa visão dupla, além de também pressionar e danificar o nervo óptico, com potencial perda permanente da visão.
Segundo a oftalmologista especialista em órbita, Ana Karina Teles (CRM 14830/PE), esses sintomas trazem uma série de consequências. “Existe também infiltração da glândula lacrimal, o que faz com que o olho resseque mais rapidamente. Essas pessoas sofrem com um olho seco muito acentuado e, muitas vezes, não conseguem nem fechar os olhos durante a noite. A lágrima não é espalhada de forma adequada e o olho começa a arder, queimar e doer. Há ainda um aumento da pressão intraocular, o que pode gerar uma série de alterações. A mais grave delas é a cegueira”, detalha a médica.
O diagnóstico da DOT muitas vezes pode ser uma jornada difícil, não sendo incomum que os pacientes sejam tratados para outras condições como conjuntivite, alergia ou rinite alérgica.
A oftalmologista Ana Karina Teles explica que a doença apresenta diversos subtipos e que a classificação da gravidade depende de exames de imagem, como ressonância magnética e tomografia computadorizada9 , cujo acesso ainda é limitado em grande parte do país.
“Existem também exames específicos, como a exoftalmometria, que utiliza aparelhos próprios para medir o quanto o olho está projetado para fora. No sistema público, o acesso a esses exames não é simples. E não é só no SUS. Muitas vezes os pacientes chegam com atraso no diagnóstico por falta de conhecimento sobre a doença, inclusive entre os próprios endocrinologistas. Tive um caso recente de um paciente com uma doença autoimune que atingiu primariamente a tireoide. Ele teve um episódio de visão dupla, mas como se recuperou espontaneamente, a endocrinologista não valorizou o sintoma e não o encaminhou para a oftalmologia. Anos depois, o paciente desenvolveu uma neuropatia óptica compressiva [com músculos muito aumentados] com danos ao campo visual. É um quadro gravíssimo, que poderia ter sido evitado com o diagnóstico correto no momento adequado”, analisa a médica.
A DOT, que até então era uma doença órfã, sem tratamento específico, teve o primeiro medicamento aprovado em 202310. Apesar do registro sanitário, a terapia ainda não está disponível no sistema público.
A oftalmologista Ana Karina Teles acompanha uma paciente que iniciou o tratamento e relata resultados muito positivos. “Ela está respondendo muito bem. Com o tratamento adequado, temos a chance de devolver o aspecto normal da pessoa com uma redução do volume dos músculos e da gordura ao redor dos olhos. Isso nos permite, muitas vezes, evitar a cirurgia ou indicar um procedimento de menor porte”.
A trajetória de quem convive com a DOT pode se tornar ainda mais difícil na ausência de um cuidado multidisciplinar e, especialmente, de suporte psicológico. A médica destaca que não são raros os casos de pensamentos suicidas ou conflitos nos relacionamentos, muitas vezes desencadeados pela desfiguração progressiva causada pela doença.
Sem diagnóstico precoce, acesso ao tratamento para preservar a visão, monitoramento hormonal, reabilitação estética e visual, e apoio emocional, a jornada do paciente se torna ainda mais árdua.12 Quando, na verdade, o caminho deveria ser o oposto: facilitar o cuidado e promover saúde, sobretudo para quem vive com uma doença rara.