Oferecido por
Qual é o potencial do machine learning em uma base de dados clínicos robusta? Essa foi a questão central de uma iniciativa acadêmica que usou informações de uma plataforma inédita no Brasil, onde estão sendo agregados progressivamente os registros eletrônicos de saúde de quase 10% da população do país. O resultado dá pistas de que a Inteligência Artificial (IA) pode ser decisiva para melhorar resultados para os pacientes, gerenciar recursos de grandes sistemas de saúde e orientar políticas de Estado, desde que os repositórios evoluam adequadamente.
O trabalho intitulado “Oportunidades e desafios na aplicação de Aprendizado de Máquina utilizando-se de dados de Registros Eletrônicos de Saúde: o caso Sistema Unimed” foi desenvolvido pelo superintendente de Estratégia, Performance e Tecnologia da Federação das Unimeds do Estado de São Paulo (Unimed Fesp), Reinaldo Manzini, como parte da conclusão do curso de Pós-Graduação em Ciência de Dados do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo, em 2022.
Resumidamente, a IA foi utilizada para analisar um conjunto de dados com as observações qualificadas em casos de hérnia discal lombar – uma condição médica em que o disco intervertebral, localizado na região lombar da coluna (parte inferior das costas), sofre um deslocamento ou ruptura – com e sem indicação cirúrgica, a partir das variáveis derivadas do alinhamento entre a coluna e a pelve. Depois, foram identificados e aplicados os algoritmos de classificação mais frequentemente utilizados em saúde. Ao final, foi feita uma comparação de desempenho de cada uma das abordagens.
Os dados foram extraídos de registros eletrônicos de saúde de beneficiários do estado de São Paulo fornecidos pela Interall, a empresa responsável pela gestão do repositório de dados de todo o Sistema Unimed. O estudo indicou que, com uma acurácia média de 83%, a IA foi eficaz em identificar pacientes com ou sem indicação cirúrgica para hérnia discal lombar.
Para o autor do estudo, um dos principais ganhos é a redução da subjetividade em diagnósticos, principalmente para um manejo mais adequado de doenças crônicas de maior prevalência. “Em alguns casos, o diagnóstico não é difícil, mas ele é subjetivo. Às vezes, o profissional deixa a decisão na mão do próprio paciente, que não consegue conviver com a dor crônica e acha que precisa de cirurgia. O aprendizado de máquina poderia, a partir dos dados do registro eletrônico, ajudar muito nisso”, avalia Manzini.
Adicionalmente, extrapolando os dados de São Paulo para o cenário nacional, ainda que de maneira superficial, o trabalho sugere que a detecção precoce dos casos com indicação cirúrgica poderia resultar em um potencial de economia financeira na ordem de R$ 1 bilhão para o Sistema Unimed.
“O objetivo era treinar algoritmos de machine learning, mas eu decidi fazer o cálculo. Foi um ambiente controlado, obviamente. Isso não está em produção. Mas há um potencial de ganho absurdo, considerando apenas uma patologia”, explica o especialista.
Manzini antecipa a possibilidade de que, nos próximos anos, ocorra investimentos em iniciativas com o objetivo de expandir o uso de análise de dados em todo o sistema de saúde, usando a plataforma da Interall para suportar esse grande projeto. A ideia seria explorar outras condições crônicas com alta prevalência no país, como a obesidade.
“É uma oportunidade ímpar de o Sistema Unimed colaborar na formulação de políticas públicas. O dado está aí. Se ele for bem tratado, se houver uma equipe alocada, se existirem recursos, produzir esse tipo de coisa será o grande o diferencial no futuro”, afirma.
Banco de dados inédito no Brasil
A Interall foi definida como a empresa responsável por administrar todos os dados clínicos integrados do Sistema Unimed, que concentra mais de 20 milhões de beneficiários de planos de saúde no Brasil. O projeto foi inspirado por iniciativas que surgiram nos Estados Unidos durante o governo de Barack Obama (2009-2017), quando a troca de dados e a interoperabilidade começaram a ganhar destaque no país.
O modelo de negócios utilizado pela Interall é semelhante ao da iniciativa norte-americana Healthix, com sustentabilidade financeira baseada em uma assinatura mensal em troca de uma série de serviços, como o acesso a ferramentas de análises, relatórios e gestão de linhas de cuidado em saúde. A Healthix, criada em 2005, integra mais de 8 mil organizações de saúde de um território que contempla Nova York, Long Island, Hudson Valley, partes de Nova Jersey e Connecticut.
O projeto-piloto do que hoje é a Interall foi iniciado em 2011, no interior do Ceará, e foi expandido em 2019, a partir do apoio da Unimed Fesp. Em 2023, com a entrada de novos sócios do Sistema Unimed, ela foi definida como responsável por centralizar a governança de dados. A empresa utilizou o sistema operacional da InterSystems, chamado HealthShare, para criar o registro eletrônico de saúde em processo de adoção.
Para trazer o que já era feito no exterior para cá, houve necessidade de adaptação tecnológica, devido à falta de padrões de interoperabilidade no país, diferente dos EUA, em que os padrões já estavam bem-estabelecidos, explica o head de Tecnologia da Interall, Diego Lima. Mas, segundo o especialista, as principais barreiras estão relacionadas à falta de conscientização dos próprios prestadores de serviço e de pacientes sobre os benefícios inerentes à troca de dados em saúde. “Uma vez vencidas as questões culturais, a parte técnica é o menor dos problemas”, afirma.
De acordo com Diego Lima, atualmente, a plataforma da Interall concentra os dados clínicos de quase 2 milhões de beneficiários de planos de saúde Unimed e já foram feitas mais de 200 integrações entre prestadores de serviço, incluindo cooperativas singulares, hospitais, laboratórios, clínicas de imagem e consultórios médicos.
A diretora de Desenvolvimento de Negócios em Saúde da InterSystems, Teresa Sacchetta, garante se tratar de um sistema consolidado e seguro, em constante processo de atualização.
“O que temos é uma plataforma testada ao limite, porque temos clientes no mundo todo. Temos grandes redes operando nos Estados Unidos, com grandes volumes de dados sendo utilizados. Temos confidencialidade, escalabilidade comprovada, desempenho comprovado. Por conta de todos esses projetos, nossa plataforma oferece ferramentas muito avançadas, tudo conforme a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]”, afirma.
Na avaliação da executiva, o movimento da Interall é precursor no Brasil, tanto pela dimensão do banco de dados criado quanto pela particularidade do Sistema Unimed de reunir diferentes pessoas jurídicas dentro de uma grande organização. “Dessa magnitude de troca de dados clínicos, entre diferentes pessoas jurídicas, é inédito no Brasil. É um grande passo, que caminha paralelamente ao que é feito no SUS [Sistema Único de Saúde], com as iniciativas do governo federal”, analisa.
Análises de dados da Healthix
Dados extraídos da Healthix nos Estados Unidos são utilizados em diversas pesquisas disponíveis na literatura científica. Um dos exemplos é um estudo publicado em abril de 2024, que examina como o uso de dados de Health Information Exchange (HIE) – como são chamadas as redes de trocas de dados de saúde no sistema estadunidense – pode melhorar a vigilância de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), incluindo HIV, clamídia e gonorreia, em Nova York.
Os pesquisadores puderam acessar informações detalhadas e em tempo real de registros eletrônicos de saúde de pacientes na cidade, possibilitando a análise de tendências de testes laboratoriais e resultados positivos de ISTs. Esses dados foram importantes para identificar padrões de testagem e co-infecção entre diferentes populações, além de revelar disparidades significativas baseadas em fatores sociodemográficos e geográficos.
Outro artigo, publicado em 2015, analisou dados da Healthix para identificar indivíduos em situação de rua por meio da análise de seus endereços registrados em sistemas de saúde. A pesquisa avaliou registros de 7,8 milhões de pacientes e identificou 78,4 mil como possivelmente sem-teto. Para identificar esses pacientes, foram utilizados padrões de endereços registrados, como hospitais, abrigos, locais de culto ou endereços com palavras-chave relacionadas à falta de moradia. Os resultados mostraram que pacientes sem-teto tendem a visitar mais instalações de saúde e a registrar mais endereços diferentes do que a população domiciliada.
Já uma pesquisa publicada em 2016 investigou como o uso de troca de informações de saúde pode melhorar a identificação de pacientes que retornam ao serviço de emergência dentro de 72 horas após uma alta inicial. Foram analisados 12,6 milhões de atendimentos em 31 hospitais da região metropolitana de Nova York. O uso do sistema permitiu o aumento médio de 11,16% na identificação de retornos de 72 horas com a análise específica de cada hospital. Outra constatação foi que 11,5% dos retornos ocorreram em um hospital diferente do inicial, indicando a busca por atendimentos em múltiplos locais.
Ainda que os trabalhos citados não tenham utilizado IA em suas metodologias de pesquisa, os resultados obtidos por pesquisadores demonstram que as redes de trocas de dados em saúde, por meio de uma infraestrutura robusta e escalável, podem ser utilizadas como fonte para o desenvolvimento de políticas públicas, fornecendo insights e permitindo uma vigilância mais eficiente e equitativa.
Expansão da Interall
O CEO da Interall, Luis Colombo, avalia que alcançar o número de 2 milhões de beneficiários com dados integrados à plataforma em 2024 já representa um avanço significativo na perspectiva de gestão de saúde populacional. “Estatisticamente, isso já representa o meu universo de 22 milhões de beneficiários. Eu já consigo mapear comportamento e extrair muito valor”, afirma.
“Se eu tenho um ambiente de cuidado coordenado, eu tenho toda a possibilidade de saber, através do comportamento, dos resultados, dos números, quais são aqueles que já estão em uma certa condição de saúde. Plugando inteligência, será possível prever esses candidatos. Eu posso fazer um tratamento preventivo ou de acompanhamento”, complementa o CEO.
O executivo enfatiza, por outro lado, a importância de não apenas aumentar a quantidade de dados integrados, mas também de melhorar a qualidade dos dados coletados, especialmente em um sistema tão complexo como o da Unimed, com milhares de unidades credenciadas. “Temos que expandir na qualidade e na quantidade de pontos conectados. Isso é muito importante. Obviamente, nunca vamos conseguir o todo, porque é um sistema complexo. São 4,4 mil unidades credenciadas. A pluralidade de sistemas é enorme”, explica.
Do ponto de vista do cuidado individualizado, na visão do CEO, será necessário priorizar informações relevantes, como exames e dados clínicos essenciais, para otimizar o atendimento médico. “Temos que antever ações do médico e ajudá-lo a economizar tempo. Quando ele receber um paciente, ele precisa saber que ele é hipertenso e que é alérgico à penicilina, por exemplo. Você precisa ajudar o médico, fazer alertas. Eu não posso esperar que o médico faça essa análise, o ambiente sistêmico precisa fazer isso para ele”.
Colombo acredita na possibilidade de integração futura da base de dados do Sistema Unimed ao SUS. O plano seria de médio prazo, devido a diferenças em infraestrutura e regulamentação.
“Já estamos discutindo isso. Nós cuidamos de cidadãos, não de beneficiários. Entendemos que é uma tendência e temos expertise para colaborar de maneira significativa. A área pública, com todos os desafios que ela tem, tem uma vantagem muito grande, que é a ascendência sobre as unidades. Eu tenho uma relação comercial com as unidades da Unimed. Já numa política de governo, é possível fazer todas essas interações e integrações. É uma questão de condução”, avalia.
O principal desafio da interoperabilidade de dados em saúde, na visão do executivo, é a falta de uma postura altruísta no setor, ou seja, de conscientização das partes sobre a importância dessa construção para o sistema como um todo.
Nesse contexto, segundo ele, as próprias Unimeds começam a pressionar os prestadores de serviço, como laboratórios e hospitais, para o compartilhamento de informações. “Já há casos, dentro do sistema, em que as Unimeds preparam estratégias para só continuar tendo acordos financeiros com prestadores desde que os dados estejam interoperáveis”, afirma.
Em 2022, entrou em vigor nos Estados Unidos a lei conhecida como 21st Century Cures Act, aprovada em 2016. Com base na legislação, os pacientes passaram a ter acesso digital irrestrito a seus dados de saúde e podem escolher compartilhar as informações. O CEO da Interall acredita que um movimento semelhante pode ter efeito positivo no Brasil. “Eu acho que vivemos uma ‘síndrome do cinto de segurança’. Hoje, a gente usa sem pensar, mas no começo houve uma obrigatoriedade com punições”, analisa Luis Colombo.
Um sistema de saúde único
A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), instituída em 2020, é a plataforma criada pelo governo federal para a interoperabilidade de dados em saúde no Brasil. Essa política pública tem como objetivo estabelecer a rede, até 2028, como uma plataforma digital de inovação, informação e serviços em saúde. Parte dos dados da RNDS é disponibilizada em um software que se tornou acessível ao cidadão em 2021, com a entrega de registros de resultados de exames e de registros de vacinação relacionados à Covid-19. Antes Conecte SUS, o aplicativo agora se chama Meu SUS Digital.
Na atual gestão do Ministério da Saúde, houve a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital. Com a definição da área, chefiada pela secretária Ana Estela Haddad, a discussão sobre interoperabilidade de dados ganhou um tom positivo.
Em entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil em 2023, secretária antecipou que a condução da construção da RNDS será feita pelo ministério, sempre tendo em vista a atuação tripartite do SUS (governo federal, estados e municípios). À época, o ConecteSUS já tinha mais de 40 milhões de usuários cadastrados. Segundo Ana Estela Haddad, é preciso estabelecer os padrões de interoperabilidade e fazer com que os estabelecimentos de saúde utilizem os mesmos padrões para a construção desse grande data lake.
“O que está determinando isso são mais os padrões de interoperabilidade do que o recorte público ou privado. Se o município opta por ter seu próprio sistema, o ConecteSUS não vai ter valor para ele. Precisamos construir isso num âmbito nacional. O SUS, no sentido amplo da gestão tripartite, é quem precisa de fato organizar esse processo, dar essas regras para que a RNDS venha a ser esse espaço, para que funcione nacionalmente, independentemente do ponto da rede, do nível de atenção ou do cenário público ou privado em que esse usuário está na sua jornada no sistema de saúde”, afirmou.
O ministério lançou, em maio de 2024, uma ferramenta chamada Índice de Maturidade Digital, com o objetivo de orientar o diagnóstico e a elaboração de planos de transformação digital nas esferas estaduais, municipais e distrital de saúde.
Teresa Sacchetta avalia que um movimento de integração dos dados da Interall com o sistema público tem um grande potencial benéfico.
“Do ponto de vista de saúde populacional, em um país do tamanho do Brasil, com uma população que tem uma carência, seria primordial a integração de sistemas. Teríamos consultas mais rápidas, análise de risco, atendimento mais direcionado, criação de programas e linhas de cuidado que poderiam ser usadas em toda a rede”, analisa a executiva.
—
—