Essa é uma pergunta feita mundo afora, mas talvez seja cedo para termos uma resposta exata. Ela foi única e nos mostrou uma fragilidade que insistíamos em ignorar. E ela também não será a última, já que convivemos com modelos provenientes de projetos econômicos, políticos e regulatórios distintos, cheios de particularidades. Essas diferenças, inclusive, parecem ter sido aprofundadas nesse período de emergência.
De todo modo, temos que cumprir a tarefa de olhar com atenção para a experiência de outros países, mesmo que questões fundamentais como o percentual de investimento do Produto Interno Bruno (PIB) na área da saúde, a atenção em cuidados primários e outros elementos relacionados a políticas públicas não estejam na alçada da saúde suplementar. Devemos estar presentes nesse debate, principalmente a partir da percepção que a pandemia nos trouxe de que precisamos aprofundar a integração entre os sistemas públicos e privados.
Saúde na China
Geralmente, em análises sobre o cenário mundial, tendemos a nos concentrar nas performances de países que estão no topo dos rankings dos melhores sistemas de saúde. Mas, pela origem da Covid-19 e pelo que vimos a seguir, a China é um bom exemplo para começar.
Oito anos antes de surgir o primeiro relato do vírus na província de Wuhan, em dezembro de 2019, o país comemorava a cobertura universal da saúde para 1,3 bilhão de pessoas. Foi a maior expansão do tipo na história. A velocidade com que isso foi executado é igualmente impressionante: a cobertura assistencial que englobava 50% da população, em 2005, passou para cerca de 95%, em 2011.
Para se chegar a esse resultado, foram estabelecidos simultaneamente três projetos públicos voltados a diferentes grupos: população de áreas rurais; empregados de áreas urbanas; e crianças, estudantes, desempregados e pessoas com algum tipo de incapacidade nas cidades.
Também foi criado um robusto programa de subsídios na área de saúde, mas sem perder de vista a capacidade fiscal do governo, não ultrapassando 12% de todos os gastos governamentais em 2011. O governo chinês ainda estabeleceu programas de compromisso com governantes locais, delegando responsabilidades fiscais. Para fins de comparação, no Brasil, a Constituinte de 1988 incluiu, com muita disputa, a obrigatoriedade de investimento de 6% do orçamento federal na área de saúde.
Além disso, a infraestrutura de atendimento chinesa tem camadas. As grandes cidades possuem hospitais com alta tecnologia em todos os campos e todas as localidades têm hospitais e clínicas públicas, embora nem sempre com todas as especialidades e equipamentos de ponta. Desde 2012, a China tem procurado incentivar a saúde complementar ampliando oportunidades para o mercado privado.
Em 2019, a Covid trouxe de volta o fantasma das incertezas nessa área. Ao que tudo indica, o Chinese Center for Disease Control and Prevention (CDC) falhou em detectar, investigar e responder à epidemia ainda em seu estágio inicial. O que se viu a seguir foram várias brechas no sistema de saúde chinês, hospitais comunitários trabalhando com equipamentos desatualizados e equipes de profissionais de saúde com problemas de capacitação.
Foram adotadas medidas emergenciais — nessa fase, já sob o olhar atônito do mundo todo — como a construção de hospitais em áreas públicas, a incorporação de serviços on-line e de telemedicina, além do uso de alta tecnologia, como Inteligência Artificial (IA), Cloud Computing, Big Data e conexões 5G. Depois de vencer a pandemia que em outros países só avançava, a China exportou know how, tecnologias e vacinas.
A vizinha Taiwan
De olho na movimentação chinesa e talvez sem confiar muito nos números que vinham sendo divulgados na ocasião, Taiwan tratou de tomar medidas para impedir que seu sistema de saúde, classificado em alguns rankings entre os melhores do mundo, ficasse sobrecarregado.
Ainda em 2019, o país começou a monitorar fronteiras e voos internacionais, acelerou a produção de máscaras, álcool gel e equipamentos médicos. Implementou uma plataforma com QR Code em lojas, restaurantes, espaços públicos para registro da população de forma a permitir o monitoramento da população. Até pouco tempo, quando muitos países começaram a flexibilizar as regras de prevenção, Taiwan mantinha a política “zero Covid”, garantindo o posto de um dos menos afetados pelo número de pacientes e mortes.
O sistema de saúde de Taiwan, conhecido como National Health Insurance (NHI), administra todos os recursos envolvidos no sistema de saúde, o que inclui a folha de pagamento, financiamento do governo e complementações com copagamentos direto, que nesse caso varia dependendo do perfil dos que acessam a rede de saúde e de circunstâncias emergenciais. A escolha do provedor ou do médico que o cidadão quer utilizar é um dos pontos destacados no projeto taiwanês, e a maior parte da infraestrutura de atendimento está nas mãos da iniciativa privada.
Asiáticos no topo do ranking da saúde
Em decorrência de atritos políticos com a China, Taiwan não conseguiu sua adesão à Organização Mundial de Saúde (OMS), portanto ficou fora do ranking anual da avaliação dos sistemas mundiais de saúde. Mas, de acordo com o Legatum Prosperity Index (LPI) 2021 o país estava classificado em quinto lugar no quesito saúde entre os 104 países analisados em relação a 12 pilares estabelecidos pelo Instituto Legatum. Considerando todos os demais fatores que entram nessa conta, Taiwan ocupa a 21ª posição no ranking geral.
No top 10 do LPI 2021 no quesito saúde, estão cinco países asiáticos. Além de Taiwan, figuram Japão, Singapura, Coreia do Sul e China, na primeira, segunda, terceira e sétima colocação, respectivamente. No ranking geral, a boa avaliação em saúde foi uma aliada da China, possibilitando que ela subisse nove posições de um ano para outro, o que garantiu a ocupação do 54º lugar no índice de prosperidade.
Não espanta a posição do Japão, reconhecido como um dos melhores sistemas em diversos levantamentos, como líder do LPI 2021. Sua população, inclusive, é considerada uma das mais saudáveis do planeta. No país, o paciente pode arcar com até 30% dos custos em saúde, sendo o governo responsável pelo restante. Porém, há um adendo: todas as pessoas residentes no Japão são obrigadas por lei a terem uma cobertura de seguro de saúde, caso contrário podem ter de arcar com a totalidade dos valores. No caso de pessoas com menor poder aquisitivo, há possibilidade de recebimento de um subsídio governamental para cobrir os custos.
Da mesma forma, a presença de Singapura entre os destaques já era previsível. Com um premiado sistema de saúde, o país vem recebendo reconhecimento global há algum tempo. Também é considerado por especialistas um serviço complexo e difícil de ser reproduzido em outras regiões. A proposta é de uma abordagem universal com financiamento do governo e forte presença das operadoras privadas. Esse financiamento envolve uma combinação de subsídios governamentais diretos, poupança obrigatória, seguro nacional de saúde — que provém basicamente dos trabalhadores — e compartilhamento de custos.
O governo faz reajustes temporários na legislação para conter excessos nos custos de equipamentos, suprimentos e acesso aos serviços. Mas isso não significa, necessariamente, uma intervenção direta sobre os custos oferecidos pela iniciativa privada, onde prevalecem as regras de competição de mercado. Em 2020, mesmo considerando o impacto do primeiro ano da pandemia, Singapura foi considerada a mais eficiente do mundo de acordo com o Bloomberg Health-Efficiency Index.
Outra estrela asiática na área de saúde, a Coreia do Sul segue caminho similar. Os sul-coreanos têm acesso a uma rede universal com boa parte dos financiamentos provenientes de fundos privados e uma parcela de subsídios governamentais, além de sobretaxas em cima da comercialização de tabaco no país.
Estados Unidos em baixa
Voando da Ásia para a América, não há como escapar dos intensos debates gerados a partir de uma fraca resposta dos Estados Unidos à pandemia, colocando mais uma vez seu sistema de saúde em xeque. É preciso lembrar que o país tem uma das mais altas porcentagens do PIB investidas nessa área — chegando a 16,9%, em 2018 —, tem acesso às tecnologias mais inovadoras do mercado e é uma potência capaz de gerir capacidades de todos os níveis. O modelo dos EUA não é universal, e o governo não provê benefícios diretos nessa área para os cidadãos, salvo em casos específicos.
Para entendermos a alta exposição do sistema de saúde norte-americano durante a pandemia, pode-se recorrer mais uma vez aos indicadores globais. No LPI 2021, no qual os Estados Unidos ocupam a 20ª posição no ranking geral — duas a menos do que possuía em 2011 —, a sua classificação na área de saúde foi a de 68º lugar, atrás de países do Leste Europeu como Polônia e República Checa, e de latinos como Cuba, Colômbia e Uruguai. Para reflexão, é importante sabermos a posição do Brasil nesse ranking: estamos em 86º.
A baixa performance dos Estados Unidos em saúde levou, inclusive, os pesquisadores da Commonwealth Foundation a mudarem a metodologia do relatório anual que analisa o desempenho da área em 11 países. A avaliação considera o acesso aos cuidados em saúde, o processo de atendimento, a eficiência administrativa, o capital próprio e os resultados obtidos.
Para a versão mais atual, foram analisados pela fundação norte-americana os indicadores dos seguintes países: Alemanha; Austrália; Canadá; Estados Unidos; França; Holanda; Noruega; Nova Zelândia; Reino Unido; Suécia; e Suíça. Pelos cálculos da Commonwealth Foundation, em 2022, o melhor sistema de saúde entre eles foi o da Noruega, seguido pelo holandês e pelo australiano.
Os Estados Unidos ficaram na última colocação. O desempenho norte-americano ficou tão abaixo dos demais, inclusive em comparação aos que ocuparam o nono e o décimo lugar (Suíça e Canadá), que a entidade decidiu excluir o país de alguns tópicos para não baixar a média de eficiência de outros.
Uma das conclusões do estudo, principalmente depois da pandemia, é a de que os norte-americanos estão mais doentes e a expectativa de vida da população diminuiu. O país ficou em segundo lugar na análise do tópico de processo do atendimento e nos subitens relacionados. Também foi um dos mais afetados quando se trata de problemas de acesso aos cuidados da saúde relacionados ao custo, o que tem um impacto negativo, principalmente para populações de baixa renda.
O estudo da Commonwealth confirma que os Estados Unidos demonstram consistentemente as maiores disparidades entre os grupos de renda analisados nos 11 países, exceto para medidas relacionadas a serviços preventivos e segurança no atendimento. Essas desigualdades são especialmente significativas quando se observa as barreiras financeiras para o acesso a assistências médica e odontológica, encargos de contas médicas, a dificuldade em obter atendimento e o uso de sites na internet para facilitar o envolvimento do paciente.
Mesmo quando se compara a performance em relação ao percentual de gastos do PIB, nem mesmo o fato de ser o líder nessa área salvou os Estados Unidos da pior posição no estudo. Suécia, França, Suíça e Canadá estão abaixo da média, oscilando até 0,4% negativo. Mas a América está bem abaixo, com 1,2% negativo.
Indicativos de sucesso
Os principais resultados apontados pela Commonwealth são indicativos importantes para aqueles que pensam em aperfeiçoar os sistemas de saúde. Em geral, os países com maior desempenho são os que reduziram o custo dos cuidados para os pacientes. A Noruega e a Suíça, por exemplo, decretaram a limitação desses custos, e a Alemanha, em 2013, suprimiu as taxas para consultas médicas.
Em termos de eficiência administrativa, ganharam mais pontos no levantamento os países com maior escopo de acesso gratuito, como a Inglaterra, ou com simplificação do sistema, como a Suíça. Já o Reino Unido perdeu importantes pontos no que diz respeito à rapidez no atendimento. Sua grande estrutura universal não foi suficiente para garantir prazos mais rápidos e isso colaborou para aumentar a disparidade entre ricos e pobres no atendimento médico. A Holanda, por sua vez, publicou a Lei dos Direitos do Paciente, que estabelece um prazo específico para o cidadão ser atendido.
Apesar de não estar nesse estudo, a França está entre os líderes do ranking da OMS. No país, os pacientes em geral são atendidos em clínicas privadas, mas o pagamento é feito pelo governo, via fundos públicos de seguro.
Itália e Brasil
Outro exemplo interessante, mesmo porque foi nosso antecessor direto na grande crise da Covid-19, é o da Itália. O National Health System of Italy (INHS) provê cobertura universal, mas os fundos para isso são cada vez mais regionais. Esse poder dado às regiões mudou um pouco as características do sistema, com cada vez mais hospitais privados e menos hospitais públicos, que sofrem com cortes e falta de mão de obra adequada.
Mesmo assim, o sistema de saúde italiano estava sempre entre os melhores do mundo, o que tornou o choque ainda maior quando se viu o número de mortos no país entre os mais altos nos primeiros meses da pandemia. Existem algumas teorias que atribuem esse cenário à grande população de idosos no país, o grupo mais vulnerável ao coronavírus. Mas a descentralização também foi um obstáculo para a tomada de medidas unificadas.
Logo após presenciarmos a dura situação da Itália, foi a vez do Brasil crescer em número de mortes e colocar o Sistema Único de Saúde (SUS) à prova. Em comum, ambos os países possuem um sistema público e, no enfrentamento à Covid-19, demoraram para tomar medidas de isolamento social a fim de evitar que o vírus se alastrasse.
No Brasil, um país com um sistema enfraquecido, mas ainda forte no princípio universal e igualitário de saúde — vide a ampla vacinação de nossa população a partir de 2021 —, as empresas privadas têm um importante papel no combate à pandemia. Trabalhando de forma integrada, com a cessão de leitos e até hospitais inteiros ao SUS, a iniciativa privada ampliou e garantiu acesso à saúde a milhares de brasileiros no momento de emergência.
Uma lição que fica com base nessa experiência é que, por aqui, uma maior interoperabilidade de dados públicos e privados será o caminho mais célere para que possamos introduzir mais recursos e inovações no país para atender melhor toda a nossa população.
Este artigo foi produzido por Carlito Marques, Presidente da Universidade Corporativa Abramge (UCA).