Uma jornada determinada pelo “sobrenome” do tumor
Biotech and HealthOncologia de precisão

Uma jornada determinada pelo “sobrenome” do tumor

Testes genômicos para identificação de tumores se consolidam como ferramentas essenciais para definir a abordagem terapêutica no câncer de mama.

“Não existe nada pior que fazer quimioterapia, perder o cabelo, passar cinco meses da vida fazendo um tratamento que impacta a família toda, sem ter certeza de que precisa passar por isso. É duro demais. E foi o que a minha mãe fez. Há 30 anos, ela era jovem, fez a quimioterapia vermelha, e tenho certeza de que hoje ela não teria feito. Mas era o que tínhamos na época”.

O relato pessoal é da médica oncologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, Marina Sahade, e ilustra os avanços da ciência que têm transformado a abordagem do câncer de mama.

Se antes a detecção de um nódulo na mama, com a confirmação de uma neoplasia maligna, tinha apenas um caminho a ser seguido após o diagnóstico, hoje há múltiplas possibilidades. Ter em mãos apenas a confirmação do câncer é pouco diante do que a medicina é capaz de oferecer: tratamentos personalizados e mais assertivos. Este é o conceito chave da medicina de precisão: “o desenvolvimento de técnicas para a customização dos tratamentos de saúde levando em conta as características genéticas dos indivíduos e suas respostas às enfermidades e aos tratamentos”.

Na oncologia, essa abordagem conta com ferramentas cada vez mais precisas para uma análise profunda das características genéticas do paciente e da biologia tumoral. Assim, é possível escolher o tratamento que apresentará a melhor eficácia e menor toxicidade2. Hoje, cada câncer ganha uma espécie de “sobrenome”, explica a oncologista Marina Sahade: “A gente tem hormônio positivo, HER2+, triplo-negativo etc. Nós entendemos as características específicas de cada câncer e como essa doença se transforma em uma mesma paciente. Conseguimos dar a cada paciente o que ela precisa, e na quantidade que precisa. Nem mais, nem menos”, detalha a médica.

A fisioterapeuta Mariana Rosário Fernandes é uma dessas pacientes que teve o enfrentamento do câncer de mama totalmente personalizado para o seu caso. Ela tinha 35 anos quando teve o diagnóstico confirmado. Após a mastectomia (retirada da mama), houve dúvida se ela faria a quimioterapia como tratamento adjuvante ou não. Um teste molecular trouxe a resposta precisa: não era necessário.

“Eu fiquei muito feliz com o resultado. Foi como ganhar na loteria. Na época, eu tirei as duas mamas e fiz bloqueio hormonal, por conta do tipo de câncer que eu tive. O tratamento foi muito mais leve, menos invasivo. Depois, mais tarde, eu tive outro diagnóstico, mas era um câncer multifocal e foi outra situação. No primeiro caso, o teste foi realmente decisivo”, conta Mariana, que hoje é influenciadora digital e usa as redes sociais para discutir e trazer informações sobre o câncer de mama.

Teste genético x teste genômico

Em 2013, testes genéticos para o câncer ganharam destaque mundial quando a atriz americana Angelina Jolie, cuja mãe morreu de câncer, divulgou que tinha retirado as mamas após descobrir uma mutação genética no gene BRCA1. Essa condição aumenta muito as chances de se desenvolver câncer de mama e de ovário. O que a atriz fez foi uma avaliação hereditária de alguma mutação herdada, que é possível detectar com um exame de sangue ou de saliva, são testes genéticos, e quem os realiza em algum momento da vida, por orientação devido a um histórico familiar, não necessariamente tem um câncer.

Já os testes genômicos são realizados com um fragmento do tumor cancerígeno, da seguinte forma: “A genômica aborda todos os genes e como eles se interrelacionam dentro do câncer, o que pode determinar mais sobre como o câncer se comportará. É possível compreender as anormalidades genéticas que podem estar impulsionando o crescimento do tumor, muitas vezes determinando sua agressividade ou a probabilidade de disseminação para outras partes do corpo.”

Esse conhecimento detalhado do tumor resulta em uma assertividade muito maior na escolha do tratamento, como foi o caso da paciente Mariana. O teste que ela realizou é chamado Oncotype DX Breast Recurrence Score®, indicado para pacientes com câncer de mama HER2- e RH+. Ele serve para identificar quais pacientes podem se beneficiar da quimioterapia, determinar a magnitude desse benefício ou, ainda, transformar a quimioterapia em um tratamento verdadeiramente personalizado.

“Existem testes em que a gente pega um pedaço do tumor e faz uma análise molecular, uma pesquisa para ter certeza se essa paciente vai se beneficiar ou não da quimioterapia. Tem tumores que respondem melhor à quimioterapia, outros não. Nesses casos, vamos direto para a hormonioterapia. Um desses é o teste Oncotype DX®, que usamos no cenário da doença inicial. Com isso, grande parte das pacientes que antes faziam quimioterapia não faz mais”, observa Marina Sahade.

A oncologista pondera que há casos em que a decisão é muito clara para o médico, como quando se trata de uma paciente muito idosa, que não toleraria a quimioterapia, ou de uma paciente jovem, com uma doença agressiva e muitos linfonodos positivos (presença de células tumorais em um ou mais linfonodos da axila). No entanto, a maior parte das mulheres com diagnóstico de doença inicial não está em nenhum desses extremos, e é justamente nesses casos que a tecnologia surge como um importante apoio à decisão médica.

“É uma segurança para o profissional, porque eu não tenho que achar. Não é justo com a paciente seguir todo um tratamento com base no que a gente acha. A gente precisa de uma medicina de precisão. Eu preciso ter todas as armas possíveis para embasar o tratamento”, conclui Sahade. Segundo o artigo “Quimioterapia em câncer de mama”, publicado em 2010 naRevista Brasileira de Mastologia, após a análise de dados de estudos de perfil molecular, concluiu-se que mais de 50% das pacientes recebem quimioterapia adjuvante sem necessidade. A autora, Laura Testa, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo da Universidade de São Paulo (USP), argumenta que os testes genômicos exercem um papel relevante na evolução de uma prática mais personalizada da oncologia e que, apesar do elevado custo, são ferramentas custo-efetivas quando analisadas no contexto da redução de custos gerais para a sociedade.

Informação e acesso

Apesar dos benefícios, nem sempre as pacientes sabem da possibilidade de acesso a esse tipo de tecnologia. No Brasil, ela não está disponível nem pelo Sistema Único de Saúde (SUS), nem no rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória das operadoras de planos de saúde, regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

“A paciente precisa saber que o teste existe, que é seguro, que ela tem essa opção. Muitas vezes, o médico não fala no assunto por causa da dificuldade de acesso. Mas a gente precisa informar e lutar para que as pacientes tenham acesso, porque, se fizer uma análise fármaco-econômica e do impacto financeiro de uma quimioterapia para qualquer serviço de saúde — porque não é só a droga, mas também a possibilidade de uma internação por febre, uma pneumonia, complicações com um cateter —, se colocar na balança tudo que isso envolve, é com certeza custo-efetivo. Sem contar a qualidade de vida que isso traz”, analisa a oncologista Marina Sahade.

Foi justamente para disseminar informações que a paciente Mariana Fernandes fundou a plataforma Anjo Rosa. Como antes atuava como fisioterapeuta especializada em câncer de mama, ela já conhecia a existência do teste. No entanto, relata que essa não é a realidade das mulheres com quem conversa: “A maioria das mulheres, quando eu falo sobre o teste Oncotype DX®, não conhece. E os médicos nem comentam sobre. Vale ressaltar que muitas não têm acesso. Mas, sempre que eu comento, vem uma enxurrada de mensagens querendo saber o que é”, conta a influenciadora.

“Eu sempre recomendo que as mulheres busquem informação, que conversem com seus médicos. Hoje, tudo evolui muito rápido. Em um, dois anos, tudo muda, o protocolo muda. Hoje, o câncer de mama não é mais uma sentença de morte, embora a gente sinta essa proximidade da finitude. Mas, quando a gente estuda e tem conhecimento, sabe que essa nuvem preta pode ficar bem distante”, complementa.

Para a presidente da Oncoguia, Luciana Holtz, cada depoimento de uma paciente que relata ter feito uso de teste genômico para definir a abordagem terapêutica, e como isso foi transformador, é inspirador. Acompanhando de perto diferentes jornadas na ONG, que existe há mais de dez anos, Luciana observa que muita coisa mudou nesse período.

“A gente saiu daquela situação em que ouvíamos muitos médicos falando em tratamento ‘de tiro de canhão’ para o ‘tiro certeiro’, para conseguirmos deixar de machucar pacientes a mais. A chegada da oncologia de precisão não só trouxe a possibilidade de ganho nos desfechos clínicos tradicionais, como sobrevida global e sobrevida livre de progressão, mas também proporcionou um ganho importante em menos toxicidade e mais qualidade de vida. Se não fosse a questão do acesso, já estaríamos tratando todas as pacientes de uma forma muito mais inovadora, menos agressiva e muito mais efetiva”, destaca.

Caminhamos para um futuro com uma prática oncológica muito mais personalizada e centrada na paciente. Para isso, ferramentas que apoiam decisões importantes são estratégias essenciais e de grande valor, não apenas para quem está doente, mas também para a atuação do profissional de saúde.

Carolina Abelin é repórter de Saúde na MIT Technology Review Brasil

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