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O setor elétrico atravessa um período de transformações profundas, impulsionadas por fatores disruptivos que vêm reconfigurando sua estrutura tradicional. A disseminação da energia descentralizada e ambientalmente sustentável, o fortalecimento do papel do consumidor, a digitalização e a conectividade, somados à inovação em tecnologias e processos, ampliam o escopo do setor para além dos ativos físicos, orientando-o à prestação de serviços voltados às novas demandas do mercado.
Nesse contexto, a expansão das fontes renováveis em pequena escala e o engajamento crescente dos consumidores, os chamados “prosumidores”, vêm redefinindo a dinâmica da geração e do consumo de energia, tornando o mercado mais complexo e desafiador. Para lidar com essa nova realidade, tecnologias emergentes despontam como aliadas ao facilitar a comercialização de energia, eliminar intermediários e viabilizar ambientes descentralizados, eficientes e seguros. Ainda assim, o avanço também traz incertezas tecnológicas, volatilidade e rápida obsolescência, exigindo das organizações um esforço contínuo em pesquisa, desenvolvimento e adaptação.
Essa necessidade de adaptação encontra respaldo em análises internacionais. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), as tecnologias limpas só se consolidam com políticas dinâmicas, capazes de estimular a inovação e promover ajustes regulatórios. Na mesma direção, estudos do MIT Energy Initiative (MITEI) destacam a relevância de uma abordagem sistêmica, que integre tecnologia, economia, políticas públicas e comportamento, como condição essencial para o sucesso da transição energética.
Quando se observa o cenário brasileiro, porém, percebe-se que, apesar da legislação incentivar investimentos em inovação, as transformações têm sido mais impulsionadas por pressões ambientais e pela incorporação de tecnologias disruptivas do que por políticas públicas estruturadas. Ao mesmo tempo, o setor enfrenta o desafio de modernizar uma infraestrutura envelhecida, aumentar a resiliência diante de eventos climáticos e cibernéticos e integrar novas fontes renováveis de maneira eficiente.
Esse desalinhamento também é percebido por executivos do setor. Para Gioreli de Sousa, Vice-Presidente de Redes do Grupo Energisa, o crescimento da geração distribuída ainda ocorre de forma desordenada, carecendo de maior coordenação entre governo, empresas e regulador. Ele observa que a evolução tecnológica avança em ritmo muito mais acelerado que a regulação, o que reforça a urgência de um marco estável, com visão de longo prazo e discussões estruturadas para evitar gargalos no futuro.
Diante desse cenário, o executivo defende que as empresas não devem esperar passivamente por mudanças regulatórias. Em sua visão, é necessário experimentar soluções, reunir dados concretos e propor modelos capazes de influenciar novas tarifas e regras. Essa postura proativa é fundamental para que o setor não apenas acompanhe as transformações em curso, mas também exerça papel ativo na construção do seu próprio futuro.
A mesma linha é reforçada por especialistas internacionais. Jessika Trancik, professora do Instituto de Dados, Sistemas e Sociedade (IDSS) do MIT, ressalta que acelerar a transição para fontes limpas vai além de avanços tecnológicos: requer uma visão sistêmica integrada e políticas adaptativas que incentivem a experimentação e o aprendizado contínuo.
Assim, inovar no setor elétrico brasileiro, com segurança e eficiência, passa por enfrentar barreiras que extrapolam a tecnologia. Desafios culturais, falta de liderança engajada e entraves regulatórios ainda pesam, mas já há exemplos práticos que mostram caminhos alternativos. Identificar essas brechas e oportunidades é passo decisivo para destravar a modernização do setor e garantir um futuro energético mais sustentável, digital e acessível.
Desafios para inovar com segurança e eficiência no setor elétrico
Inovar no setor elétrico brasileiro deixou de ser uma decisão estratégica para se consolidar como uma exigência indispensável à competitividade, à sustentabilidade e à qualidade no fornecimento de energia. A transição energética, a digitalização e os compromissos com a descarbonização impõem um ritmo acelerado de transformações. No entanto, esse processo está longe de ser simples: exige equilíbrio entre ousadia e prudência em um ambiente de alta complexidade, regulação rigorosa e exigências inegociáveis de segurança.
Nesse contexto, Gustavo Buiatti, Ph.D. e fundador da Alsol Energias Renováveis, destaca que a importância das empresas adotarem uma postura dinâmica, evitando a estagnação e assumindo riscos de forma calculada. Em suas palavras:
“Não podemos ter um discurso bonito que, no fundo, esconda o medo de assumir qualquer risco. Não somos aventureiros: buscamos sempre prudência na alocação de capital, mas sabemos que alguma incerteza faz parte. Não se trata de pular no abismo e rezar para haver um colchão lá embaixo, mas de reunir informações suficientes para dar um passo seguro. Algumas escolhas podem não dar certo, mas sempre deixam aprendizados valiosos para o futuro.”
A partir dessa visão, Buiatti reforça que a estratégia se baseia em reunir dados que possibilitem avançar com segurança, mesmo que nem todas as iniciativas sejam bem-sucedidas, já que cada experiência gera aprendizados relevantes para o futuro. Ainda assim, o setor elétrico possui limitações estruturais que restringem a velocidade da inovação: ativos de longa vida útil, forte regulação, baixa pressão competitiva e a política de modicidade tarifária.
Essas barreiras são ampliadas pelo fato de a eletricidade ser um produto homogêneo, sem espaço para diferenciação direta, o que reduz margens para investimentos mais ousados. Inovar, portanto, significa assumir custos elevados e riscos de obsolescência. Por isso, investimentos significativos em infraestrutura e tecnologias, como armazenamento, inteligência artificial e automação, só se justificam quando há clareza sobre retorno econômico e estabilidade regulatória, condições que nem sempre estão garantidas.
Para Gustavo Valfre, vice-presidente de Tecnologia do Grupo Energisa, o verdadeiro obstáculo à inovação não está na escassez de ideias ou de tecnologias, que já existem em abundância, mas sim na criação de condições para que avancem de forma prática, segura e integrada ao mercado.
Na visão dele, o que freia a transformação não é a ausência de soluções técnicas, mas a dificuldade em implementá-las com agilidade e eficiência. Mais do que desenvolver, é essencial construir um ambiente capaz de absorver essas inovações, testá-las em escala e transformá-las em resultados concretos para consumidores e para a sociedade.
Essa percepção é compartilhada por Alexandre Street, professor associado de Engenharia Elétrica da PUC-Rio, que destaca que a inovação só terá efeito real se vier acompanhada de um redesenho do mercado e do fortalecimento da competitividade. Ele observa que, embora haja recursos destinados à P&D, eles não têm sido aplicados de forma eficiente, porque, segundo ele, “a governança está totalmente quebrada e malfeita”.
Street critica a falta de clareza nas atribuições e o excesso de demandas desalinhadas, resumindo: “está tudo aqui por cima, embaralhado, e fica todo mundo pedindo”.
Diante desse cenário, a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) tem buscado, desde 2021, novas formas de modernizar o setor, lançando projetos-piloto capazes de gerar dados e aprendizados para aprimorar a regulação. Um dos principais exemplos é o sandbox regulatório, que permite às empresas testar soluções inovadoras em um ambiente controlado, com regras temporárias e mais flexíveis do que as tradicionais.
Foi nesse modelo que o Grupo Energisa se destacou como a primeira distribuidora do país a implementar um sandbox tarifário. Desde novembro de 2024, cerca de 4 mil clientes da Energisa Sul-Sudeste participam do projeto “Conta Inteligente”, voltado para consumidores de baixa tensão das classes comercial e residencial. Nele, são testados dois modelos tarifários.
Um desses modelos, a “Tarifa Melhor Hora”, define o preço da energia com base em quatro faixas horárias nos dias úteis. O objetivo é incentivar o consumo em períodos de menor demanda, ajudando a reduzir picos, otimizar a rede e melhorar a qualidade do fornecimento. Para o cliente, representa maior controle sobre o uso da energia e mais oportunidades de economia. Outros modelos já começaram a ser testados em áreas de concessão do Grupo Energisa na Paraíba, Tocantins e, em 2026, chega ao Mato Grosso do Sul.
Esse movimento não é isolado: reflete uma tendência mais ampla de modernização. Em 2023, a ANEEL destinou cerca de R$ 1,5 bilhão a projetos de pesquisa, desenvolvimento e eficiência energética, conforme a Lei nº 9.991/2000. Aproximadamente 70% desse valor foi direcionado para redes inteligentes e sistemas de automação, reforçando o esforço de preparar o setor elétrico para um futuro mais digital, sustentável e eficiente.
Até 2024, mais de 20 projetos-piloto já haviam sido aprovados nesse formato. No entanto, apesar dos avanços, a instabilidade regulatória, a insegurança jurídica e a ausência de mecanismos claros para remunerar investimentos inovadores ainda dificultam a adoção de soluções disruptivas. Como alerta Jacquelyn Pless, professora da Sloan School of Management do MIT, é essencial que políticas públicas e programas de incentivo se apoiem em evidências concretas sobre o que de fato estimula a inovação energética, sob risco de desperdício de recursos.
Os desafios, porém, não se limitam ao campo regulatório. Na operação do sistema, a geração distribuída, impulsionada por incentivos e subsídios, multiplicou-se por mil em uma década, alcançando 40 GW de capacidade instalada. Embora tenha ampliado o acesso a fontes renováveis, essa expansão acelerada também trouxe desequilíbrios tarifários e pressões adicionais sobre a estabilidade da rede.
A ausência de critérios técnicos consistentes para a conexão de novos geradores obriga a adoção de reforços e controles adicionais, elevando custos e tarifas. Paralelamente, a intermitência das fontes renováveis e a intensificação de eventos climáticos extremos tornam indispensáveis soluções como baterias, medidores inteligentes e sistemas avançados de gestão (ADMS).
Entretanto, transformar essas tecnologias em realidade não é tarefa simples. Além dos altos custos, o setor enfrenta barreiras regulatórias e limitações estruturais, como a carência de cobertura de telecomunicações em áreas estratégicas, o que compromete sua viabilidade. Muitas dessas inovações, ainda que promissoras, carecem de modelos de negócio sustentáveis, o que freia sua expansão em larga escala.
Em um setor que movimenta bilhões e depende de previsibilidade, não há espaço para soluções sem retorno claramente definido. Por isso, grande parte da inovação ainda ocorre de forma incremental, voltada a ganhos de eficiência, enquanto as transformações mais profundas avançam de maneira lenta e cautelosa.
A dimensão humana também pesa nesse processo. A escassez de profissionais qualificados, estruturas organizacionais inflexíveis e a resistência cultural à mudança retardam o progresso. Empresas que não investem em capacitação e que não promovem uma cultura de inovação correm o risco de ficar para trás.
Nesse sentido, inovar demanda competências que extrapolam a engenharia, envolvendo visão estratégica, modelagem de negócios e integração entre áreas. Essa complexidade reforça a necessidade de parcerias com universidades, startups e ecossistemas de inovação. Ao mesmo tempo, a digitalização e a automação trazem oportunidades relevantes, mas ampliam a vulnerabilidade a ciberataques, tornando a segurança digital uma prioridade estratégica.
A modernização precisa vir acompanhada de simplicidade para o cliente, sem renunciar à robustez técnica, garantindo que a digitalização não seja apenas uma camada sobre ineficiências estruturais. Em um setor essencial para a economia e para a transição energética, o êxito dependerá da capacidade de antecipar tendências, gerir riscos e integrar tecnologia à gestão, equilibrando velocidade com consistência, inovação com confiabilidade.
Esse é o caminho para assegurar um futuro sustentável, competitivo e seguro para o sistema elétrico brasileiro.
Gargalos internos e o impacto da cultura e da liderança na inovação
A modernização do setor elétrico brasileiro deixou de ser uma escolha para se tornar uma exigência inadiável. Garantir competitividade, sustentabilidade e segurança em um contexto marcado pela transição energética, digitalização e metas de descarbonização exige transformações profundas. Entretanto, os maiores entraves à inovação não estão nas condições externas, mas dentro das próprias organizações.
Como lembra Henry Chesbrough, professor e diretor executivo do Center for Open Innovation da Universidade de Berkeley e responsável por difundir o conceito de inovação aberta, “os maiores bloqueios vêm de dentro da empresa; cultura, estruturas e práticas internas limitantes são os verdadeiros entraves à inovação”.
De fato, características históricas do setor, como forte regulação, concessões de longo prazo, alto grau de imobilização de ativos e estrutura concentrada reduziram, ao longo do tempo, os incentivos internos à inovação. A política de modicidade tarifária, somada à obrigatoriedade de destinar um percentual fixo da receita operacional líquida a atividades de P&D, fez com que muitas empresas tratassem a pesquisa mais como exigência regulatória do que como vetor estratégico.
Essa mentalidade impacta diretamente as decisões e se manifesta em modelos de governança enxutos, pouco preparados para converter conhecimento em soluções práticas. Além disso, a escassez de profissionais qualificados representa um obstáculo adicional. Projetos de PD&I demandam competências que extrapolam o domínio técnico: exigem lidar com incertezas, adotar pensamento criativo e conectar soluções às necessidades reais do mercado.
Habilidades ligadas à inovação e à colaboração, ainda pouco valorizadas em estruturas tradicionais, tornam-se cada vez mais essenciais. Contudo, processos internos burocráticos, aversão ao risco e resistência à mudança reforçam as barreiras. Inovar, nesse contexto, significa revisar estruturas, metodologias e, muitas vezes, valores organizacionais.
Essa transformação inevitavelmente provoca desconforto e exige uma gestão de mudança consistente. Para Alexandre Street, professor associado da PUC-Rio, a superação desses entraves começa com lideranças engajadas. Ele ressalta que “tudo vem de uma liderança que puxa o assunto” e que é essa liderança que deve acreditar que “é através da inovação que você faz a diferença de uma nação”.
Sem esse direcionamento estratégico, a inovação dificilmente se consolida como valor real nas organizações. Nessa mesma linha, Gustavo Buiatti destaca a importância de uma abordagem colaborativa, sustentada pela confiança entre equipes e pela disposição de renunciar a interesses individuais em nome de objetivos comuns.
Segundo ele, “isso só funciona quando há percepção de contrapartida, ou seja, a certeza de que, quando você precisar, o grupo também terá essa grandeza de espírito”. Empresas que não investem em comunicação clara, engajamento e alinhamento cultural enfrentam maiores dificuldades para transformar projetos em resultados concretos.
A liderança, portanto, é peça-chave nesse processo. Muitas iniciativas de P&D permaneceram restritas a universidades e centros de pesquisa, sem planos claros de aplicação. Sem apoio da alta gestão e uma estratégia bem definida, tecnologias promissoras acabam sendo deixadas de lado, sem gerar valor real.
Nesse sentido, Gioreli, Vice-Presidente de Redes do Grupo Energisa, defende que processos, pessoas e tecnologia precisam atuar de forma integrada para gerar impacto real e transformador. Para ele, “a inovação depende de colaboração, confiança e da disposição de abrir mão de prioridades individuais em benefício do coletivo”, o que exige uma visão de ecossistema e maior integração entre áreas.
Ele reforça que a transformação cultural é indispensável para liberar o potencial inovador e só acontece com lideranças engajadas, capazes de criar ambientes em que equipes compartilham soluções, aprendizados e recursos dentro de uma mesma estratégia. Já as empresas que não priorizam comunicação clara, engajamento e alinhamento cultural tendem a enfrentar barreiras mais difíceis para converter projetos em resultados.
Medidas regulatórias podem mitigar distorções, mas não substituem líderes comprometidos em integrar a inovação à estratégia corporativa. Superar esses obstáculos internos requer mais do que ferramentas para identificar lacunas tecnológicas: exige promover mudanças culturais, eliminar entraves burocráticos, fomentar a colaboração e criar um ambiente em que assumir riscos calculados seja prática recorrente.
“Esse espírito colaborativo precisa ser cultivado. Avaliamos as barreiras à colaboração e percebemos que, hoje, a mentalidade da equipe já aceita melhor essa prática. É natural que cada empresa queira adotar sua própria solução, mas, quando começamos a quebrar barreiras dentro de um negócio, torna-se mais intuitivo compreender que também não é preciso haver barreiras entre negócios,” ressaltou Gustavo Buiatti.
No fim, lideranças engajadas, com visão de longo prazo e capacidade de conduzir a transformação, são fundamentais para aproximar pesquisa e inovação, assegurando que os investimentos realmente gerem valor para empresas, consumidores e para a sociedade. Sem uma cultura organizacional aberta à mudança, profissionais preparados e uma governança sólida, os esforços em PD&I continuarão entregando resultados abaixo do potencial, comprometendo o avanço da modernização do setor elétrico brasileiro.
Regulação como motor ou obstáculo da inovação
A regulação desempenha um papel ambíguo no ecossistema brasileiro, podendo atuar tanto como catalisador quanto como entrave à inovação. Originalmente concebida para corrigir falhas inerentes aos monopólios naturais, deveria promover eficiência e qualidade, criando condições favoráveis à competitividade.
No setor elétrico, por exemplo, mecanismos como a regulação por incentivos buscaram aproximar as empresas de comportamentos típicos de mercados concorrenciais, estimulando ganhos de produtividade, redução de custos e avanços tecnológicos. A Lei nº 9.991/2000, ao estabelecer a aplicação mínima de 1% da Receita Operacional Líquida em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e eficiência energética, consolidou uma infraestrutura relevante de pesquisa e capacitação, embora, em muitos casos, tenha sido tratada mais como obrigação burocrática do que como instrumento estratégico.
Essa ambivalência é destacada por Gustavo Valfre, que aponta como a inovação no setor elétrico é fortemente moldada pela regulação. Segundo ele, as normas definem não apenas os limites, mas também as oportunidades, oferecendo proteção institucional ao mesmo tempo em que podem restringir a capacidade de adaptação frente a tecnologias disruptivas, como baterias avançadas ou novos modelos de geração distribuída. Na prática, a inovação está hoje mais condicionada ao ciclo regulatório e à capacidade do Estado de superar entraves do que propriamente à iniciativa privada.
Nesse sentido, Alexandre Street defende a necessidade de revisar a estrutura regulatória vigente para que ela de fato oriente os agentes rumo à competição. Para ele, a regulação deveria oferecer “sinais de preço coerentes com a escassez dos recursos necessários para o sistema ser bem operado e sustentável no longo prazo”. A ausência desses sinais, adverte, compromete tanto a eficiência do setor quanto a atratividade de soluções inovadoras.
Na mesma direção, Gioreli de Sousa reforça que a regulação pode tanto acelerar quanto restringir a inovação e, por isso, as empresas precisam agir de forma proativa. Isso implica ir além da simples adaptação às normas, gerando dados concretos e propondo modelos capazes de influenciar políticas públicas e ajustes regulatórios. “É preciso uma maior articulação entre governos, empresas e regulador”, alerta, ao comentar a expansão desordenada dos recursos energéticos distribuídos.
Essa lacuna também é ressaltada por Fernando Maia, vice-presidente de Regulação do Grupo Energisa, que observa: “o crescimento foi vertiginoso, sem regulação robusta, tornando-se uma ameaça ao equilíbrio do sistema”. A tentativa da ANEEL de conter essa expansão, em 2019, foi barrada por pressões políticas, resultando na promulgação da Lei nº 14.300/2022. Embora tenha introduzido novas diretrizes, a lei também incentivou uma corrida por benefícios, deixando o problema em aberto.
Por outro lado, experiências como os sandboxes regulatórios mostram que ajustes bem calibrados podem abrir espaço para transformações. Esses ambientes experimentais, já adotados em setores como energia, fintechs e saúde, permitem testar modelos inovadores sob supervisão, sem comprometer a segurança do sistema. Adicionalmente, iniciativas como o “lote pioneiro” e mecanismos que permitem a apropriação parcial dos benefícios econômicos indicam avanços importantes no desenho regulatório nacional.
Medidas como a tarifação dinâmica, que diferencia preços conforme o horário de consumo, reforçam o potencial de uma regulação orientada à inovação. Contudo, desafios persistem.
A fragmentação normativa, a lentidão burocrática e a ausência de marcos específicos para tecnologias emergentes, como inteligência artificial, criam lacunas que desencorajam novos investimentos.
A essas fragilidades soma-se a assimetria de informações entre reguladores e agentes, que, aliada ao risco de captura regulatória, acentua a insegurança jurídica e reduz a previsibilidade necessária à inovação. Além disso, a política de modicidade tarifária, que elimina ganhos das empresas inovadoras nas revisões tarifárias, desestimula a internalização dos resultados. Como consequência, prevalecem projetos incrementais ou “de prateleira”, de impacto limitado no avanço tecnológico.
Superar essas limitações requer uma regulação mais flexível e responsiva, capaz de combinar rigor técnico com espaço para experimentação. Consultas públicas, fóruns permanentes e plataformas colaborativas, como a PINSE (prevista para 2025), são ferramentas fundamentais para alinhar expectativas e reduzir incertezas.
O diálogo técnico contínuo entre reguladores, empresas, academia e sociedade é indispensável para que a regulação cumpra seu papel estratégico: viabilizar a inovação sem comprometer a segurança e a transparência. Em síntese, quando construída com visão de longo prazo, abertura ao diálogo e mecanismos de governança consistentes, a regulação pode atuar como vetor de desenvolvimento, estimulando práticas inovadoras, competitividade e sustentabilidade.
Quando, ao contrário, é mal calibrada ou capturada por interesses, transforma-se em barreira, gerando incertezas e distorções que comprometem o avanço tecnológico. O futuro da inovação no Brasil dependerá, portanto, da capacidade de estabelecer normas adaptativas, que conciliem estabilidade e agilidade frente às transformações digitais, à transição energética e às demandas sociais.
Exemplos de inovação e os próximos passos para o Brasil
A inovação no setor energético brasileiro deixou de ser um diferencial e passou a ser um elemento essencial para garantir competitividade, sustentabilidade e confiabilidade em um contexto marcado pela transição para fontes limpas, digitalização e metas de descarbonização. Países que priorizam tecnologia e pesquisa ampliam produtividade e reduzem emissões e o Brasil, embora enfrente desafios estruturais, conta com a vantagem de uma matriz elétrica majoritariamente renovável, o que reforça a necessidade de acelerar a transformação para preservar sua relevância global.
Nos últimos anos, surgiram iniciativas que comprovam ser possível inovar em um setor altamente regulado. A Energisa, por exemplo, tem realizado investimentos consistentes em P&D. Entre os projetos, destacam-se o Sisdrone, que utiliza drones com inteligência artificial para inspeção de redes, e o Vera, algoritmo de gestão de vegetação já comercializado fora do grupo. Outro exemplo é a Voltz, plataforma de soluções financeiras aos clientes, ainda limitada por barreiras regulatórias.
Para Gioreli de Sousa, o avanço das inovações no setor elétrico só será consistente se houver integração entre áreas, colaboração entre agentes e alinhamento estratégico que vá além da adoção de tecnologias. Essa visão se reflete em projetos que já começam a transformar a operação do setor.
Buiatti cita as usinas virtuais (Virtual Power Plants), em fase de teste no Brasil, como exemplo promissor. No Tocantins, um projeto-piloto da Energisa integra baterias, geração solar e sistemas inteligentes para mitigar picos de carga, ao mesmo tempo em que abre espaço para novos modelos de negócio. Tecnologias como o Religador Rocket aumentam a confiabilidade da rede, enquanto o ADMS (Advanced Distribution Management System) moderniza a gestão operacional e prepara distribuidoras para um cenário de redes cada vez mais descentralizadas.
No atendimento ao cliente, o Projeto Sparta alia videoatendimento e inteligência artificial, elevando o índice de digitalização a 94%. Além disso, soluções como o “DNA do medidor” ajudam a combater perdas ao detectar adulterações sofisticadas.
Essas iniciativas reforçam que a inovação não se limita à tecnologia. Para Gustavo Valfre, é preciso articular regulação, estratégia e capacidade de transformar ideias em soluções escaláveis. Ele ressalta que os próximos passos incluem diversificar a matriz, adotar tecnologias como medidores inteligentes e consolidar modelos de inovação que gerem retorno econômico. Valfre também defende maior aproximação entre empresas, governo e reguladores, criação de uma cultura orientada a resultados e atração de talentos com visão técnica e comercial, já que muitos projetos ainda falham na modelagem de negócios.
A fragmentação do ecossistema e a baixa integração entre empresas e universidades também limitam a geração de soluções inovadoras. A formação e retenção de talentos é outro ponto crítico: a transição energética exige competências em análise de dados, IA, automação e regulação, mas o investimento nacional em P&D ainda gira em torno de 1,2% do PIB, abaixo da média da OCDE. Muitas iniciativas sequer chegam à fase comercial.
Reverter esse cenário exige modernizar a regulação, ampliando sua flexibilidade sem comprometer previsibilidade, além de incentivar investimento privado e atrair capital de risco para startups de energia limpa. Nesse processo, é indispensável fortalecer a cooperação entre empresas, governo e academia, desenvolver infraestrutura digital e ampliar a capacitação profissional para suportar redes inteligentes e a Indústria 4.0.
O Brasil reúne condições favoráveis para assumir protagonismo na transição energética, apoiado em recursos renováveis abundantes e em um mercado interno expressivo. A transformação rumo a modelos sustentáveis e digitais é irreversível, e os agentes que se anteciparem colherão os maiores benefícios.
Com políticas atualizadas, planejamento consistente e execução eficiente, o país poderá deixar de ser apenas consumidor para se tornar referência global no desenvolvimento de soluções que moldarão o futuro da energia.
Referências
- AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA – IEA. World Energy Outlook 2024. Disponível em: https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2024
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- AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL. Regulação por incentivos no setor elétrico brasileiro. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/regulacao-por-incentivos
- AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL. Portal da Agência Nacional de Energia Elétrica. Disponível em: https://www.aneel.gov.br AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL. Informações sobre geração distribuída, regulamentações e dados atualizados. Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br
- BRASIL. Lei nº 9.991, de 24 de julho de 2000. Dispõe sobre a aplicação mínima de recursos em pesquisa e desenvolvimento e eficiência energética pelas concessionárias e permissionárias de serviços públicos de energia elétrica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9991.htm
- BRASIL. Lei nº 14.300, de 28 de janeiro de 2022. Altera regras para geração distribuída e sistema elétrico. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14300.htm
- ELETROBRAS PESQUISA ESTRATÉGICA (EPE). Relatórios técnicos sobre planejamento energético, cenários futuros e renováveis. Disponível em: https://www.epe.gov.br
- ENERGISA. Grupo Energisa – Regulação e inovação no setor elétrico. Disponível em: https://www.energisa.com.br
- ENERGISA. Site oficial da Energisa. Disponível em: https://www.energisa.com.br
- GRUPO ENERGISA. Estratégias e desafios para inovação no setor elétrico. Disponível em: https://www.energisa.com.br
- (RE) ENERGISA. Diretrizes para inovação com segurança e prudência no setor elétrico. Disponível em: https://www.reenergisa.com.br
- INTERNATIONAL ENERGY AGENCY – IEA. Agência Internacional de Energia. Disponível em: https://www.iea.org
- MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA – MME. Dados oficiais sobre a matriz energética brasileira e políticas públicas. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br
- ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Dados e estatísticas sobre P&D. Disponível em: https://www.oecd.org
- VOLTUS. Plataforma de soluções financeiras para energia. Disponível em: https://voltus.co
- CHESBROUGH, Henry. Professor Maire Tecnimont, de Open Innovation no MIT Sloan. Disponível em: https://mitsloan.mit.edu/faculty/directory/henry-w-chesbrough
- MIT ENERGY INITIATIVE – MITEI. Estudos sobre abordagem sistêmica na transição energética. Disponível em: https://energy.mit.edu/publications/
- MIT ENERGY INITIATIVE – MITEI. Massachusetts Institute of Technology Energy Initiative. Disponível em: https://energy.mit.edu
- MIT SLOAN SCHOOL OF MANAGEMENT. Políticas públicas para inovação energética. Disponível em: https://mitsloan.mit.edu
- TRANCIK, Jessika. Professora do Instituto de Dados, Sistemas e Sociedade (IDSS) do MIT. Especialista em inovação e transição energética. Disponível em: https://idss.mit.edu/people/faculty/jessika-trancik/
- BUIATTI, Gustavo. Entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil. Pauta: “Orquestrar a inovação: os bastidores técnicos, humanos e regulatórios da transformação energética”.
- VALFRE, Gustavo. Entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil. Pauta: “Orquestrar a inovação: os bastidores técnicos, humanos e regulatórios da transformação energética”.
- MAIA, Fernando. Entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil. Pauta: “Orquestrar a inovação: os bastidores técnicos, humanos e regulatórios da transformação energética”
- STREET, Alexandre. Entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil. Pauta: “Orquestrar a inovação: os bastidores técnicos, humanos e regulatórios da transformação energética”