Governança Digital Municipal: O custo da inércia e o valor público represado
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Governança Digital Municipal: O custo da inércia e o valor público represado

A estagnação digital nos municípios brasileiros não é falha de execução, mas de visão. Barreiras estruturais impedem a geração de valor, enquanto o mundo avança na era da GovTech.

A Transformação Digital deixou de ser uma opção para se tornar um imperativo categórico na administração pública. No Brasil, a última década foi marcada pela construção de um robusto arcabouço legal que deveria catalisar essa modernização, com marcos como a Lei de Acesso à Informação (LAI), a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e a Nova Lei de Licitações. Ferramentas como o Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M), do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP), surgiram para medir e induzir a melhoria, avaliando quesitos cruciais de planejamento, segurança e transparência em tecnologia.

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Contudo, a análise dos resultados revela um profundo paradoxo: embora haja um avanço mensurável, ele é incremental e, em grande medida, superficial. Dados do IEG-M de 2024 mostram que, apesar de um recorde de 4,5% dos municípios paulistas atingirem a nota máxima em governança de TI, mais da metade (55,43%) permanece no nível mais baixo de adequação. Essa estagnação, após dez anos de vigência de leis e fiscalização, sugere que o problema não é a falta de regras, mas a incapacidade de transformá-las em valor real para o cidadão.

A hipótese central é que a ausência de institucionalização do planejamento estratégico, a fragilidade sistêmica da segurança da informação e a baixa capacidade técnica e de liderança são os principais entraves à maturidade digital. O que se observa é um fenômeno de “isomorfismo institucional”, conceito cunhado por DiMaggio e Powell, no qual as organizações adotam práticas para ganhar legitimidade e responder a pressões externas, e não por serem as mais eficientes. Pressionados, muitos gestores focam na conformidade — ter um Plano Diretor de TI (PDTI) no papel — em vez de focarem na capacidade — usar o PDTI para guiar decisões estratégicas. O resultado é uma “governança de fachada” que melhora a nota em um índice, mas falha em gerar valor público.

As Barreiras invisíveis que freiam o progresso

A análise aprofundada dos dados e das fiscalizações revela que a estagnação é sustentada por barreiras estruturais interligadas, que representam riscos sistêmicos para a continuidade dos serviços públicos. A consultoria Gartner corrobora essa visão em escala global, apontando que, embora a pandemia tenha acelerado programas de governo digital, a maioria das iniciativas ainda se concentra na otimização de serviços existentes, e os gestores tendem a confundir esse progresso com a maturidade real.

O desafio fundamental é a existência de um PDTI que funciona apenas como documento formal, desconectado do orçamento e sem o respaldo da alta administração. Isso revela que a tecnologia é vista como um centro de custo operacional, e não como um ativo estratégico. A Gartner identifica “estratégias e tomadas de decisão em silos” como o principal desafio para a Transformação Digital no setor público. Sem um planejamento estratégico, os investimentos tornam-se reativos e fragmentados, levando a contratações antieconômicas e comprometendo a legalidade das aquisições sob a nova Lei de Licitações, que exige um Estudo Técnico Preliminar (ETP) robusto, inviável sem um PDTI que o fundamente.

A segunda barreira é a crise silenciosa da cibersegurança. Tratada como um problema técnico, e não de governança, a segurança da informação é negligenciada. A ausência de uma Política de Segurança da Informação (PSI) e de um Plano de Resposta a Incidentes testado é uma vulnerabilidade explorada com frequência. Nos últimos anos, diversos municípios foram vítimas de ataques de ransomware que paralisaram sistemas críticos de saúde, arrecadação e recursos humanos por semanas. Em casos graves, os ataques comprometeram até as cópias de segurança, forçando o recadastramento manual de informações vitais de cidadãos e empresas. Esses incidentes transformam uma falha de governança em um impacto devastador para a sociedade.

Por fim, há o déficit de capacidade institucional. A transformação digital é executada por pessoas, mas os dados sugerem uma carência de equipes de TI qualificadas e com poder decisório. A OCDE aponta que uma Transformação Digital coerente requer “pessoas qualificadas” e “boa liderança”. O problema vai além da falta de técnicos; é a ausência de um líder de TI estratégico, um “tradutor” capaz de conectar as prioridades das políticas públicas a um roadmap tecnológico viável. Sem essa ponte, a TI permanece reativa, e a alta gestão continua a enxergar a tecnologia como uma “caixa-preta” de custos.

O espelho global e o custo de oportunidade de US$ 9,8 Trilhões

Os desafios dos municípios brasileiros não são únicos; eles refletem padrões globais. O Digital Government Policy Framework da OCDE, que se baseia em seis dimensões (como Digital by design, Data-driven public sector e Government as a platform), oferece uma lente para diagnóstico. As falhas municipais brasileiras — planejamento frágil, segurança precária, baixa capacidade técnica — correspondem diretamente às deficiências nessas dimensões, mostrando que o caminho para a maturidade passa por soluções já testadas em países líderes como Coreia do Sul e Dinamarca.

Se a OCDE oferece o diagnóstico, o Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum, ou WEF) quantifica a oportunidade perdida. O WEF define GovTech como a aplicação de tecnologias para uma abordagem de “governo como um todo”, redesenhando a relação entre Estado e cidadãos. Essa transformação é viabilizada pela Infraestrutura Pública Digital (IPD), sistemas interoperáveis como identidade digital e plataformas de pagamento que habilitam funções críticas para a sociedade.

A análise do WEF estima que o mercado de GovTech pode destravar US$ 9,8 trilhões em valor público globalmente até 2034. Esse valor vem de ganhos de eficiência (US$ 5,8 trilhões), transparência no combate à corrupção (US$ 1,1 trilhão) e sustentabilidade. Essa perspectiva reenquadra radicalmente o problema: a inação tem um custo de oportunidade gigantesco. Ao permanecerem em níveis baixos de maturidade, os municípios não estão apenas sendo ineficientes; estão ativamente impedindo a criação de valor, a redução da corrupção e o avanço de uma agenda de desenvolvimento sustentável.

Um roteiro para o governo exponencial

Superar a estagnação exige uma mudança de paradigma: da conformidade para a geração de valor. O primeiro passo é institucionalizar a estratégia, vinculando o PDTI ao orçamento e criando um Comitê de Governança Digital com a participação da alta gestão. Isso garante que cada real gasto com tecnologia esteja alinhado a um propósito maior.

O segundo é construir resiliência e confiança. A segurança da informação deve ser um valor organizacional, com políticas claras, testes de resposta a incidentes e adoção de arquiteturas modernas como o “Zero Trust”. A confiança do cidadão no governo digital depende da percepção de que seus dados estão seguros.

O terceiro é investir em liderança e capital humano. É preciso estruturar a área de TI, empoderar seu líder como um agente de mudança e criar planos de carreira que retenham talentos. A Gartner recomenda criar planos de carreira baseados em experiência, e não apenas em cargos, para promover uma visão de negócio.

Finalmente, é preciso alavancar a cooperação. Para municípios com recursos limitados, a saída está nos consórcios intermunicipais para contratações conjuntas e na adesão a plataformas estaduais e federais, a essência do conceito de DPI. Além disso, fomentar ecossistemas de GovTech, conectando o poder público a startups e universidades, pode acelerar a inovação. Casos como o de Cascavel (PR), que usou IA para otimizar a arrecadação de IPTU, e Rio do Sul (SC), que aplicou a tecnologia para planejar a alocação de vagas em creches e combater a evasão escolar, demonstram o potencial transformador dessas tecnologias quando aplicadas de forma estratégica.

A avaliação do i-Gov TI, portanto, não é apenas um instrumento fiscalizador, mas um mapa estratégico. O objetivo final não pode ser apenas obter uma boa nota em um índice. O objetivo deve ser construir um Governo Digital Exponencial, que utiliza a tecnologia não apenas para otimizar o presente, mas para criar futuros radicalmente melhores, mais eficientes e mais inclusivos. A escolha entre liderar a transformação ou ficar para trás na Era da Inteligência determinará o futuro dos nossos municípios e a qualidade de vida da nossa sociedade.

i Disclamer: As opiniões contidas no texto são pessoais e não expressam o posicionamento institucional do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

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