“Golpe do amor”: conheça o esquema e entenda como as pessoas são enganadas para serem atraídas para estes locais
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“Golpe do amor”: conheça o esquema e entenda como as pessoas são enganadas para serem atraídas para estes locais

Sobreviventes de tráfico humano revelam como quadrilhas criminosas usam as Big Techs para recrutar pessoas em golpes chamados de “abate de porcos” — e depois usam essas mesmas plataformas para roubar bilhões de dólares ao redor do mundo.

Rumo ao norte na escuridão, a única forma de Gavesh acompanhar seu progresso pelo interior da Tailândia era observar as placas de trânsito passando rapidamente. Os três ocupantes do Jeep — Gavesh, um motorista e uma jovem chinesa — não tinham nenhum idioma em comum. Assim, seguiram por horas em um silêncio nervoso, deixando Bangkok para trás em direção a Mae Sot, uma cidade na fronteira oeste da Tailândia com Mianmar.

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Ao chegarem à cidade, o motorista saiu da estrada e parou em frente a um pequeno hotel, onde outro carro já os esperava. “Eu fiquei desconfiado. Tipo, por que a gente está trocando de veículo?”, lembra Gavesh. “Mas tudo aconteceu muito rápido.”

Eles deixaram a estrada principal e continuaram dirigindo até estacionarem, no breu total, em frente ao que parecia ser uma casa particular. “Pararam o carro. Havia um grupo reunido. Talvez umas 10 pessoas. Pegaram a bagagem e pediram para a gente ir junto”, conta Gavesh. “Um foi na frente, outro atrás, e todos diziam: ‘Anda, anda, anda.’”

Gavesh e a mulher chinesa foram escoltados por campos escuros, à luz de lanternas, até a margem de um rio onde havia um barco ancorado. A essa altura, já era tarde demais para voltar atrás.

A jornada de Gavesh começou, aparentemente de forma inocente, com um anúncio de emprego no Facebook prometendo uma vaga de trabalho que ele precisava desesperadamente.

Em vez disso, ele acabou sendo traficado para uma atividade conhecida como “abate de porcos”, um tipo de fraude em que golpistas criam relacionamentos românticos ou afetivos com suas vítimas online e extraem dinheiro delas. As quadrilhas chinesas por trás desses esquemas já lucraram bilhões de dólares, usando violência e coerção para forçar seus “trabalhadores”, muitos deles traficados, como Gavesh, a executar os golpes a partir de grandes complexos, alguns operando abertamente nas zonas de fronteira de Mianmar, marcadas por leis frouxas ou inexistentes.

Conversamos com Gavesh e outras cinco pessoas que trabalharam dentro dessa indústria de golpes, além de especialistas em tráfico humano e tecnologia. Seus relatos revelam como empresas globais, incluindo redes sociais americanas, aplicativos de relacionamento, e plataformas internacionais de criptomoedas e mensagens, forneceram as ferramentas que permitiram à fraude se tornar um negócio industrializado. Por outro lado, é justamente a Big Tech que pode deter essas redes criminosas, se for convencida ou pressionada a agir.

Estamos identificando Gavesh com um pseudônimo para proteger sua identidade. Ele é de um país do sul da Ásia, cujo nome preferiu não revelar. Ele quase não compartilhou sua história até hoje, e ainda não contou nada à própria família. Tem medo de como eles reagiriam.

Até a pandemia, Gavesh trabalhava no setor de turismo. Mas os lockdowns devastaram a indústria, e dois anos depois ele se via trabalhando como diarista para sustentar a si mesmo, o pai e a irmã. “Eu estava de saco cheio da minha vida”, diz. “Estava me esforçando muito para encontrar uma saída.”

Quando viu o post no Facebook, em meados de 2022, parecia um presente dos céus. Uma empresa na Tailândia buscava especialistas em atendimento ao cliente e entrada de dados (responsável por inserir, atualizar e manter informações em bancos de dados) que falassem inglês. O salário era de US$ 1.500 por mês, muito mais do que ele poderia ganhar em seu país, com alimentação, custos de viagem, visto e acomodação incluídos. “Eu sabia que, se conseguisse esse emprego, minha vida mudaria. Eu poderia dar uma vida melhor para minha família”, conta Gavesh.

O que veio a seguir foi, de fato, transformador, mas não da forma como ele esperava. O anúncio era falso. Um exemplo clássico de uma tática usada por quadrilhas para atrair trabalhadores como Gavesh para uma economia que funciona como um reflexo sombrio da indústria global de terceirização.

A real dimensão desse tipo de fraude é difícil de estimar, mas a ONU relatou em 2023 que centenas de milhares de pessoas haviam sido traficadas para trabalhar como golpistas online no Sudeste Asiático. Um estudo de 2024, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, estima que as quadrilhas criminosas que operam esses esquemas já roubaram pelo menos US$ 75 bilhões desde 2020.

Esses golpes existem há mais de duas décadas, mas só recentemente começaram a atrair atenção global, à medida que os alvos deixaram de ser majoritariamente chineses e passaram a incluir vítimas no Ocidente. E, mesmo com o trabalho de investigadores, organizações internacionais e jornalistas expondo pouco a pouco as condições brutais dentro dos complexos de golpes e a dimensão industrial da operação, ainda se fala pouco sobre o papel central que as plataformas da Big Tech exercem em toda essa engrenagem, desde o recrutamento forçado de trabalhadores até o golpe final que leva as economias de vida das vítimas.

Com as perdas crescendo, governos e agências de segurança passaram a buscar formas de interromper as operações das quadrilhas, que se especializaram em explorar zonas sem governo em regiões de fronteira e firmar alianças com regimes corruptos. Ainda assim, as quadrilhas seguem à frente das autoridades, em parte por se beneficiarem dos serviços das maiores empresas de tecnologia do mundo. iPhones da Apple são as ferramentas preferidas para aplicar os golpes. Facebook e WhatsApp, ambos da Meta, assim como o Telegram, são usados para recrutar trabalhadores forçados. Plataformas de redes sociais e de mensagens, como Facebook, Instagram, WeChat, WhatsApp e X (antigo Twitter), servem para encontrar e atrair as vítimas. Apps de relacionamento como o Tinder também são utilizados. Alguns centros de golpe operam com terminais próprios da Starlink. E criptomoedas como tether e exchanges globais como a Binance permitem que essas operações movimentem dinheiro com pouca ou nenhuma fiscalização.

“Infelizmente, empresas do setor privado estão permitindo, mesmo que sem intenção, a existência dessa indústria criminosa”, afirma Andrew Wasuwongse, diretor da organização International Justice Mission (Missão de Justiça Internacional) na Tailândia, especializada no combate ao tráfico de pessoas. “O setor privado tem ferramentas poderosas e a responsabilidade de interromper esse ciclo e evitar seu crescimento.”

Apesar de o setor de tecnologia ter começado, ainda que de forma tímida, a adotar ferramentas e políticas contra golpes, especialistas em tráfico humano, integridade de plataformas e crimes cibernéticos afirmam que essas medidas focam principalmente nas consequências finais: as perdas financeiras das vítimas. Isso ignora outro grupo de vítimas, muitas vindas de países de baixa renda, no início da “cadeia de suprimentos” da fraude, sustentada pelo sofrimento humano e pela infraestrutura da Big Tech. Enquanto isso, os golpes continuam em escala massiva.

As empresas de tecnologia certamente poderiam fazer mais para desmantelar esses esquemas, afirmam os especialistas. Mesmo ações relativamente simples já poderiam começar a desgastar o modelo de negócios dessas organizações criminosas. E, com medidas suficientes, todo o sistema poderia começar a ruir.

“O segredo é: como tornar esse negócio não lucrativo?”, pergunta Eric Davis, especialista em integridade de plataformas e vice-presidente sênior de projetos especiais do Institute for Security and Technology (Instituto de Segurança e Tecnologia), um think tank da Califórnia, nos Estados Unidos. “Como criar atrito suficiente?”

Essa pergunta — como tornar o negócio dos golpes inviável — só ganha mais urgência num cenário em que muitas empresas de tecnologia estão reduzindo esforços de moderação de conteúdo, a inteligência artificial está turbinando as operações fraudulentas e o governo Trump sinaliza apoio amplo à desregulamentação do setor tecnológico, ao mesmo tempo em que corta recursos de organizações que estudam os golpes e oferecem apoio às vítimas. Essas tendências podem encorajar ainda mais as quadrilhas. E mesmo com os custos humanos se acumulando, os governos globais exercem pouca, ou nenhuma, pressão eficaz sobre o setor de tecnologia para usar seus vastos recursos financeiros e técnicos contra uma economia criminosa que prospera nos espaços criados pelo Vale do Silício.

Capturando uma força de trabalho vulnerável

As raízes dos golpes de “abate de porcos” remontam à indústria de jogos de azar offshore, que surgiu na China no início dos anos 2000. Cassinos online se tornaram extremamente populares no país, até que o governo chinês reprimiu a prática, forçando as operações a se mudarem para países como Camboja, Filipinas, Laos e Mianmar, onde ainda podiam atingir apostadores chineses com relativa impunidade. Com o tempo, os cassinos passaram a usar redes sociais para atrair pessoas da China, adotando táticas de engano que frequentemente envolviam distribuidores atraentes e até nus.

“O golpe do amor muitas vezes era parte disso. Construía-se um relacionamento afetivo com alguém que depois seria fisgado”, explica Jason Tower, diretor no Mianmar do United States Institute of Peace (Instituto para a Paz dos Estados Unidos), organização de pesquisa e diplomacia financiada pelo governo dos EUA, especializada na indústria de golpes cibernéticos. (A liderança foi recentemente alvo do governo Trump e da força-tarefa liderada por Elon Musk no Departamento de Eficiência Governamental, colocando o futuro da entidade em risco. Seu site, que antes abrigava pesquisas sobre o tema, está atualmente fora do ar.)

No final dos anos 2010, muitos desses cassinos já operavam como grandes empresas profissionais. Aos poucos, conta Tower, o modelo de negócios ficou mais sinistro, com a tática chamada sha zhu pan (abate de porcos, em chinês) se tornando central. Os golpistas “engordam” suas vítimas — cultivam relações afetivas e de confiança — antes de partir para o “abate”: convencê-las a investir em esquemas falsos com promessas de lucros extraordinários e, em seguida, sumirem com o dinheiro. “Essa prática acabou sendo muito mais lucrativa do que os jogos de azar online”, afirma Tower. (A Interpol, organização internacional de polícia, deixou de usar o termo gráfico “abate de porcos”, por considerá-lo desumanizador e estigmatizante às vítimas.)

Como em outras indústrias digitais, a pandemia acelerou a expansão dos golpes do amor. Havia mais pessoas isoladas e vulneráveis dispostas a investir emocional e financeiramente. Também havia mais desempregados suscetíveis a serem recrutados como golpistas, ou traficados para atuar nesse mercado.

Inicialmente, tanto os trabalhadores que aplicavam os golpes quanto as vítimas eram, majoritariamente, chineses. Mas, com as restrições de viagem impostas por Pequim, que dificultaram a contratação de mão de obra local, quadrilhas se internacionalizaram. Começaram a mirar mercados ocidentais e adotaram, segundo Tower, “estratégias muito mais maliciosas para enganar pessoas e levá-las a centros de golpe”.

Recrutamento

Gavesh estava rolando o feed do Facebook quando viu o anúncio. Enviou seu currículo para um número de contato no Telegram. Um representante de RH respondeu e pediu que ele demonstrasse suas habilidades de digitação e proficiência em inglês por videochamada. Tudo parecia profissional. “Não tinha motivo para desconfiar”, ele diz.

As dúvidas só começaram a surgir depois que ele chegou ao aeroporto Suvarnabhumi, em Bangkok. Um homem que não falava inglês o encontrou na área de desembarque e depois o deixou esperando. O tempo passou e Gavesh se deu conta: estava sozinho, sem dinheiro, sem passagem de volta e com o chip do celular inativo. Até que o Jeep chegou para buscá-lo.

Horas depois, exausto, ele atravessava o rio Moei de barco, indo da Tailândia para Mianmar. Na margem oposta, um grupo o aguardava. Um dos homens vestia uniforme militar e carregava uma arma. “No meu país, se vemos alguém do exército quando estamos em apuros, sentimos segurança”, conta Gavesh. “Então, minha reação inicial foi: tudo bem, não há com o que se preocupar.”

Caminharam cerca de um quilômetro por um campo alagado e emergiram do outro lado cobertos de lama. Havia uma van esperando, e o motorista os levou até o que chamou, em um inglês macarrônico, de “o escritório”. Chegaram ao portão de um grande complexo, cercado por muros altos com arame farpado no topo.

Embora algumas pessoas entrem nesse tipo de operação por indicação de amigos ou parentes, o Facebook é, segundo Andrew Wasuwongse, da Missão de Justiça Internacional, a porta de entrada mais comum para os recrutados via redes sociais.

A Meta já sabe há anos que esse tipo de conteúdo circula em suas plataformas. Em 2019, a BBC revelou mercados de trabalho análogos à escravidão operando no Instagram. Em 2021, o Wall Street Journal reportou, com base em documentos vazados por uma ex-funcionária da empresa, que a Meta enfrentava dificuldades para conter o problema e só tomou medidas concretas após a Apple ameaçar retirar o Instagram da App Store.

Hoje, anos depois, anúncios como o que atraiu Gavesh ainda são fáceis de encontrar no Facebook. Basta saber o que procurar.

Eles costumam aparecer em grupos de busca de emprego e parecem ofertas legítimas para áreas como atendimento ao cliente. Os salários são atrativos, principalmente para pessoas com domínio do inglês ou do chinês.

Os traficantes normalmente finalizam o recrutamento em apps de mensagens privadas ou criptografadas. Em nossa apuração, diversos especialistas apontaram o Telegram como particularmente problemático. A plataforma é notória por abrigar conteúdos ligados a terrorismo, abuso sexual infantil e outras atividades criminosas. Muitos entrevistados demonstraram uma mistura de raiva e resignação diante da aparente falta de interesse do Telegram em cooperar no combate ao problema. Mina Chiang, fundadora da Humanity Research Consultancy (Consultoria em Pesquisa sobre Humanidade), organização que atua contra o tráfico de pessoas, acusa o aplicativo de ser “altamente cúmplice” e de “facilitar ativamente” esses golpes. (O Telegram não respondeu aos pedidos de comentário.)

Apesar de o mensageiro oferecer criptografia de ponta a ponta, o que dificulta ou impede o monitoramento de mensagens, as redes sociais têm acesso ao conteúdo postado pelos usuários. E é nesse ponto inicial da cadeia dos golpes românticos que a Big Tech poderia, talvez, fazer a diferença mais significativa.

O monitoramento de conteúdo em redes sociais é feito por uma combinação de moderadores humanos e sistemas de IA, que ajudam a identificar publicações, páginas e anúncios que violam leis ou as próprias políticas da empresa. O conteúdo perigoso é mais fácil de identificar quando segue padrões previsíveis ou quando os usuários agem de maneira suspeita e repetitiva.

Especialistas em combate ao tráfico afirmam que os anúncios usados nos golpes seguem padrões e linguagens, e que eles rotineiramente reportam essas propagandas à Meta, apontando os sinais que identificaram. A esperança é que essas informações alimentem os conjuntos de dados usados para treinar os modelos de moderação de conteúdo.

Embora anúncios individuais possam ser removidos até em grandes ondas, como em novembro passado, quando a Meta afirmou ter excluído 2 milhões de contas ligadas a sindicatos de golpes no ano anterior, os especialistas dizem que o Facebook continua sendo usado para recrutamento. E novos anúncios seguem aparecendo.

(Em resposta a um pedido de comentário, um porta-voz da Meta compartilhou links para políticas sobre proibição de conteúdo ou anúncios que facilitam o tráfico humano, além de publicações no blog da empresa orientando usuários a se protegerem contra golpes românticos e detalhando os esforços para combater fraudes nas suas plataformas. Um dos textos afirma que a empresa “está constantemente lançando novos recursos para ajudar a proteger pessoas em [seus] apps contra táticas conhecidas de golpes em escala.” O porta-voz também disse que o WhatsApp possui tecnologia de detecção de spam e que milhões de contas são banidas por mês.)

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