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A sequência genômica é 99,9% igual em todos os seres humanos. O que torna cada um diferente está no 0,1% restante. Essa foi uma das descobertas do projeto Genoma Humano, pesquisa que mobilizou milhares de cientistas em centenas de laboratórios, de pelo menos, 18 países, com o objetivo de sequenciar pela primeira vez o DNA humano.
Matematicamente, analisando o número de forma isolada, 0,1% parece pouco representativo. Mas é nesse minúsculo algarismo que se concentra a infinita diversidade humana. É de onde vem a cor dos olhos, da pele, a textura do cabelo; é onde reside também uma boa explicação para o fato de algumas pessoas serem mais suscetíveis a certas doenças, por exemplo, ou responderem de forma diferente a uma mesma medicação. Somos muitos, somos únicos e vivemos em uma época em que a ciência tem sua evolução pautada na singularidade. Os avanços trazidos pelo sequenciamento genético estão intimamente ligados a um novo momento na chamada medicina de precisão.
“A proposta da medicina de precisão tem mais de 100 anos. Mas, lá no passado, era de uma maneira completamente intuitiva. Hoje, o conhecimento aprofundado de genética que temos nos permite transformar essa medicina reativa em uma medicina proativa”, avalia o oncologista clínico e gerente médico do Programa de Medicina de Precisão do Hospital Israelita Albert Einstein, Fernando Moura.
O médico explica que a atual medicina de precisão se apoia em quatro pilares: predição genética (mapear a genética para predizer riscos de desenvolvimento de doenças); prevenção e rastreio; participação do paciente (com monitoramento à distância mediado por dispositivos tecnológicos); e personalização do tratamento. É nesse último quesito que reside a farmacogenética, responsável por identificar qual medicamento é mais seguro e eficaz para determinado paciente com base no seu perfil genético.
Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, a farmacogeneticista e coordenadora do grupo de trabalho “Terapia Personalizada e Genética” do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, Carolina Martins do Prado, traz um exemplo bastante elucidativo: “imagine o seguinte: o meu vizinho tomou 10 miligramas de fluoxetina (medicamento para depressão e ansiedade) e não teve efeito adverso; eu tomei a mesma dose e fiquei com muito sono, senti todos os efeitos adversos da bula. Por quê? A farmacogenética vai usar as ferramentas de biologia molecular para tentar detectar as diferenças entre as pessoas, porque elas respondem de maneira diferente ao mesmo medicamento”.
Cada painel farmacogenético é montado avaliando genes específicos para os quais se quer direcionar o tratamento — já que se tem o conhecimento de que determinados medicamentos passam por vias metabólicas distintas, ou por enzimas, ou receptores diferentes.
“Por exemplo, no caso de doenças psiquiátricas, você vai estudar os genes que estão na via dos antidepressivos, antipsicóticos, estimulantes do sistema nervoso central. Já na oncologia o painel a ser montado será diferente. Embora existam também alguns genes que estão basicamente em todas as vias metabólicas da maioria das drogas: os genes das enzimas citocromo P450,”, explica a farmacogeneticista.
Assinatura genética: um importante documento
Carolina acredita que o teste genético ainda é subutilizado no Brasil, posto que países como Espanha e Reino Unido já vêm fazendo experiências — e bem-sucedidas — no sistema público. Para ela, a tecnologia deveria estar para o paciente tal como o teste do pezinho (que se faz nos bebês assim que eles nascem e que permite identificar doenças graves), nem que fosse um painel genético básico.
O oncologista Fernando Moura explica que, no Einstein, há um modelo em desenvolvimento para que os médicos tenham acesso às informações de seus pacientes sobre os seus genes que metabolizam medicações. “Idealmente teríamos que ter essa informação — sobre a assinatura genética de cada paciente para genes que processam medicamentos — à disposição de todos os médicos. E esse é um projeto que o Einstein está desenvolvendo, de deixar, no prontuário eletrônico, a assinatura genética da farmacogenômica. Assim, quando um médico for prescrever um ansiolítico e não perceber, por exemplo, que para aquele paciente, a medicação vai ter uma toxicidade além da esperada, ele seja advertido na tela do computador”, explica o gerente do Programa de Medicina de Precisão do hospital.
Moura conta que, para fazer a assinatura genética de cada pessoa, o hospital disponibiliza um teste que avalia o gene CYP2D6, entre outros genes. Esse gene, segundo o médico, é responsável por metabolizar cerca de 20–25% dos medicamentos. “A partir dessa análise, um indivíduo pode ser categorizado como uma pessoa que metaboliza medicamentos de forma rápida, normal ou lenta. Por um lado, temos os chamados ultrarrápidos — que metabolizam a medicação muito rapidamente e ao tomar as doses recomendadas podem não ter o efeito terapêutico esperado. Por outro, os indivíduos lentos são o oposto. Tomam a medicação em sua dose recomendada e podem apresentar toxicidades, uma vez que a medicação não é metabolizada como o esperado”, detalha. Dessa maneira, o painel traz informações importantes e gera mais segurança do ponto de vista da administração medicamentosa.
Custo-efetividade a partir da tecnologia
Referência nacional em testes farmacogenéticos para saúde mental, a startup GnTech surgiu da necessidade que o psiquiatra Guido Boabaid May tinha de ajustar o tratamento de seus pacientes. Após ter tido contato com a tecnologia nos Estados Unidos, em 2011, ele resolveu trazer a solução para o Brasil. Nos dois primeiros anos, a empresa funcionava com parceiros norte-americanos, até que vieram os investimentos para desenvolver a própria inovação, permitindo que ela se tornasse uma healthtech com DNA brasileiro.
A primeira versão do painel para o Sistema Nervoso Central foi lançada em 2017. Hoje, a startup já está na quinta versão do teste de fabricação 100% nacional, além de oferecer painéis genéticos para outras especialidades, como cardiologia e oncologia.
“Até pouco tempo atrás, para decidirmos quais medicamentos prescrever para um paciente, ou se precisaríamos ajustar uma dose, ou fazer uma associação de drogas, o método era o de tentativa e erro, que tem uma chance de erro muito alta. Aproximadamente 50% daqueles que escolhem medicamentos por tentativa e erro tendem a ter falhas ou efeitos adversos. Cada tentativa pode demorar semanas ou até meses. Em um quadro como o de depressão, a cada tentativa que falha, a doença pode se agravar. Então é muito importante usar todas as ferramentas cientificamente validadas que diminuam a margem de erro dos médicos”, avalia Guido.
Uma das primeiras pesquisas robustas sobre o impacto da farmacogenômica nos resultados clínicos, divulgada em 2019 pela Universidade de Michigan, trouxe dados relevantes sobre a melhora significativa em taxas de resposta e remissão para pacientes com depressão. O estudo duplo cego, randomizado, com 1.167 participantes, demonstrou que nas oito primeiras semanas a melhora dos sintomas foi de 33%; de resposta, 28%; e de remissão, 21%. Diversos outros estudos se seguiram depois disso, trazendo estatísticas que comprovam a melhor assertividade na escolha de um tratamento considerando o perfil genético do paciente.
Guido relata que, após a realização de teste farmacogenético pelos seus pacientes, observou a melhora mais rápida, diminuição no número de troca de medicamento e de ocorrências de efeitos colaterais. “O teste passou a ser muito importante para encurtar o tempo para o melhor desfecho clínico, mas não só isso. Também gera economia para o paciente e para o sistema de saúde”, afirma.
Em busca de diversidade genômica
Criadora do projeto DNA do Brasil e à frente da startup Gen-t, a pesquisadora e chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da Universidade de São Paulo (USP), Lygia da Veiga Pereira acredita que ambos os programas — que têm a missão em comum de aumentar a representatividade de genomas de ancestralidade não europeia, a partir do sequenciamento do DNA de milhares de brasileiros — terão uma repercussão importante para a farmacogenética.
“No curto prazo, esses resultados terão um enorme impacto para ajudar a interpretação de testes genéticos, porque teremos uma lista das variantes comuns, a frequência dessas variantes na nossa população. Isso é fundamental para quando uma pessoa vai fazer um teste genético, para o geneticista saber interpretar as variações que ela encontra ali na sequência do gene”, conclui a professora.
O projeto DNA do Brasil, hoje parte do Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão (Genomas Brasil), do Ministério da Saúde, já finalizou o sequenciamento de quatro mil genomas. A startup Gen-t, por sua vez, nasce com uma meta que a própria geneticista considera ousada: começar do zero o sequenciamento e chegar a 200 mil brasileiros até 2026, criando assim o maior banco genético da América Latina. O principal objetivo é mitigar a falta de diversidade racial na medicina de precisão.
“Se eu só conheço o genoma e a biologia de pessoas brancas, eu vou desenvolver ferramentas que funcionam melhor em populações brancas. Com 200 mil brasileiros, teremos uma mostra bem significativa da nossa população e poderemos utilizar os dados para manejar melhor a saúde dos indivíduos. Aí entra a farmacogenômica, os diagnósticos do câncer. Essas são informações muito valiosas para fazer inovação na indústria farmacêutica e de biotecnologia, são dados que podem levar a identificação de novos alvos para o desenvolvimento de novos medicamentos”, diz Lygia.