Especialistas, generalistas e aprendizado constante: como se desenvolver no mundo digital?
Humanos e tecnologia

Especialistas, generalistas e aprendizado constante: como se desenvolver no mundo digital?

“A realidade é que aprendemos melhor quando nos concentramos nas menores coisas possíveis, quando praticamos deliberadamente uma pequena habilidade que é um componente de uma competência muito mais ampla”. – Laszlo Bock.

Vou contar uma coisa para você, embora você não vá acreditar: meu primeiro trabalho foi como salva-vidas. Na minha adolescência, nas férias de verão, trabalhava mais de dez horas por dia sob o sol como salva-vidas em Celle Ligure, uma praia a 30 km de Gênova, na Itália. Para se tornar um salva-vidas, você precisa obter uma licença depois de fazer um curso e passar em um exame final. Então, logo após meu aniversário de 16 anos, em outubro, fui me matricular neste curso e descobri que levaria 6 meses. Achei que duraria apenas algumas semanas, já que o trabalho é tão fácil: basta olhar para o mar e provavelmente nada acontecerá, já que o Mediterrâneo é tão calmo. Pensei: “seis meses para quê? Por que tem que ser tão longo?”

A verdade é que, logo nas primeiras aulas, percebi o motivo: é porque o mar nunca é o mesmo. Sempre muda. “O quê, Andrea? O que isso significa?”, você deve estar se perguntando. Isso significa que, na vida e nos negócios e em um mundo em rápida mudança e Digital, temos que estar preparados para os infinitos cenários que poderão vir — e isso forma a base do nosso processo de desenvolvimento e aprendizado.

Admito: não sou o primeiro na história a ter utilizado a analogia da água para descrever o dinamismo inerente ao mundo. Heráclito de Éfeso o fez primeiro. Este filósofo, que viveu no período de 540-475 a.C., dizia que “nunca pisaremos na mesma quantidade de água duas vezes, pois o rio muda o tempo todo”, pois nele flui constantemente água nova. Heráclito cunhou a expressão grega “panta rei” para nos lembrar que “tudo flui”. Essa expressão surge da noção de que tudo é móvel, transitório, e pressupõe que tudo está em movimento e nada permanece estático. Mas este conceito não se limita ao fluxo físico dos rios. De acordo com Heráclito, também se aplica à vida: “a mudança é a única constante na vida”. E todos intuitivamente concordarão com essa noção de mudança constante na vida.

A verdade é que essa visão não se aplica apenas aos rios, mas a tudo na vida e nos negócios.

Porque, durante o meu curso de salva-vidas, de que adiantaria fazer várias aulas de treinamento e repetir movimentos de resgate em uma piscina — com água parada, em ambiente protegido, podendo sair da água caso não me sentisse confortável —, e apenas treinar para um mar calmo, quando em vez disso seria preciso resgatar pessoas quando o mar está agitado, com ondas enormes e corrente marítima forte? O mar pode ser extremamente frio ou, no meio de uma tempestade, pode induzir choques elétricos por meio de raios que podem colocar sua vida em risco. Como lidar com todos esses cenários? Se você treinar apenas em uma piscina, mesmo que repita as técnicas de resgate mais de 10.000 vezes, você não estará preparado para as infinitas condições meteorológicas e para a imprevisibilidade do mundo real.

Sei que posso parecer quase óbvio, mas a verdade é que, na realidade, fazemos o contrário: a forma como abordamos a educação, a formação e o desenvolvimento pessoal e profissional, hoje, é por meio da repetição. Deixe-me explicar isso melhor.

Há alguns anos li o livro “Outliers” de Malcolm Gladwell. Neste livro de 2008, ele examina quais são os fatores que levaram indivíduos e empresas a terem sucesso e se tornarem outliers, como Bill Gates e os Beatles, entre outros, e parte desse sucesso é atribuído ao que ele chama de “regra das 10.000 horas”. Essa regra diz que a chave para atingir um nível de domínio completo de qualquer habilidade e se tornar um dos melhores do mundo em um determinado campo é praticar essa habilidade por 10.000 horas, ou cerca de 20 horas por semana, durante 10 anos.

Fazendo um cálculo rápido, isso significa 40 horas por semana durante 5 anos, ou 100 horas por semana durante 2 anos. Como uma semana tem 168 horas, temos que ser realistas e entender que é humanamente impossível dedicar esse número de horas a apenas uma atividade. Então, se você quer se destacar em uma determinada área, você precisa de 5 a 10 anos de prática — se você é uma pessoa normal que dorme, come, tem uma vida social e assim por diante, obviamente.

Não vou contestar que essa teoria seja válida, pois não tenho dúvidas de que você domina qualquer habilidade se a praticar por tanto tempo, mas quero focar no fato de que essa teoria não faz muito sentido no mundo atual, por três razões principais:

A primeira é que quando você gasta tanto tempo repetindo uma tarefa ou hábito, você tem um custo de oportunidade enorme que equivale à oportunidade de desenvolver várias outras habilidades ou conhecimentos — o que é mais importante nos dias de hoje, em um mundo que exige não apenas especialistas, mas cada vez mais generalistas, como diz David Epstein em seu livro “Range: por que generalistas triunfam em um mundo especializado”.

Antigamente, quando você se especializava, você se preparava para uma carreira linear, estável e previsível em um mundo cartesiano e analógico, mas isso não funciona mais: você precisa ter múltiplas expertises que reflitam a complexidade do mundo e preparar as pessoas para carreiras não lineares e mudanças constantes.

Por muito tempo fiquei tão frustrado por causa de todas as oportunidades, todo o dinheiro, todo o tempo que perdi para me tornar um especialista em alguma coisa. Mas quando entendi cada vez mais como funcionava o mundo digital, essa frustração se transformou em outra coisa: no entendimento de que o segredo dos líderes e profissionais de sucesso hoje está na capacidade de seguir caminhos não lineares, desaprender e reaprender o tempo todo, e desenvolver a flexibilidade necessária para estar pronto para qualquer coisa em cenários constantemente diferentes.

A segunda razão pela qual refuto a teoria de Malcolm Gladwell é simplesmente o fato de que se especializar em um novo campo leva muito tempo, e o mundo está mudando tão rapidamente que ficar muito apegado a um conhecimento fixo ou crença não acompanha a velocidade com que o mundo, a tecnologia e o cliente estão mudando. Você já teve a sensação de que mudou algo dentro de sua empresa — digamos, você lança uma nova tecnologia de CRM — mas o processo de implantação leva tanto tempo, digamos seis meses, que quando você olha nas tecnologias do mercado, a sua já está obsoleta porque surgiram muitas novas opções?

A terceira razão é um questionamento: qual é o sentido da repetição se ela sempre ocorrerá no mesmo cenário? A maioria das oportunidades de negócios atuais não é projetada para muitas oportunidades e ambientes imprevisíveis!

Agora, saltando para o mundo dos negócios, quero usar como exemplo um desafio que a indústria Farmacêutica enfrenta na área dos ensaios clínicos de novos medicamentos. O gargalo é que são realizados em pessoas que, durante a fase de testes, precisam ser monitoradas em hospitais e em ambiente seguro e, por isso, abrem mão de rotinas normais por um tempo. Como os pacientes do mundo real vivem suas vidas normais em condições reais enquanto enfrentam suas doenças, os resultados dos ensaios clínicos podem não abranger todas as situações da vida real. Agora, com a telemedicina e com a Internet das Coisas, com sensores e outras inovações digitais, é possível minimizar esse problema — mas a distância entre condições padrão e condições reais continua sendo um ponto muito importante a ser considerado na estratégia de execução de um ensaio clínico.

De modo geral, a reflexão aqui sobre generalistas especializados e treinamento em um ambiente em constante mudança nos mostra que precisamos aprender a reagir de forma rápida, proporcional e eficiente às mudanças no ambiente externo. Se posso traçar um paralelo com um campo totalmente diferente, ou seja, a Física, a Terceira Lei de Newton, também conhecida como lei da ação e reação, afirma que quando dois corpos interagem, eles aplicam forças um ao outro que são iguais em magnitude e sentido oposto. É exatamente a mesma coisa.

Essa reação proporcional não é nada fácil na vida e nos negócios, primeiro porque nos pede para mudar o comportamento (coisa que detestamos, como seres humanos), mas principalmente porque nos pede para mudar drasticamente a maneira como projetamos treinamento e desenvolvimento em nossas empresas.

Muitas vezes associamos treinamento, desenvolvimento e aprendizagem à repetição, ou à memorização, mas não é sobre isso: é sobre o pensamento crítico que ele desperta, e é sobre a exposição que nos dá a diferentes áreas do conhecimento, que devemos combinar de maneiras criativas.

Como líderes, temos que trabalhar com os RHs e outros líderes para desenhar caminhos práticos de treinamento e desenvolvimento que criem generalistas especializados e que não apenas nos exponham ao nosso campo de conhecimento, mas que nos provoquem a seguir caminhos de desenvolvimento não lineares que refletem a complexidade do mundo dos negócios hoje.


Este artigo foi produzido por Andrea Iorio, autor Best-Selling, palestrante, escritor sobre Transformação Digital, professor de MBA e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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