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O corpo da Giovanna Boscolo já foi sinônimo de precisão. Aos 15 anos, ela era atleta de alto rendimento em ginástica aeróbica e exibia a força e a leveza que treinava desde a infância. Foi o próprio corpo, sob o olhar atento de seu técnico, que sinalizou que algo não ia bem. Quedas frequentes, lesões incomuns e uma sensação crescente de desequilíbrio a levaram a uma jornada por diferentes especialidades médicas. Só depois de uma investigação mais aprofundada com um neurologista e de um exame genético veio a confirmação: ataxia de Friedreich. O diagnóstico marcaria uma reconfiguração completa de sua trajetória de vida.
A ataxia de Friedreich é uma doença neurodegenerativa hereditária rara, com padrão de herança autossômica recessiva, caracterizada pela degeneração progressiva do cerebelo, da medula espinhal e dos nervos periféricos, regiões envolvidas no controle dos movimentos. Com o tempo, essa degeneração leva à ataxia motora, perda de coordenação e diminuição da sensibilidade nos membros inferiores e superiores. (1)
Hoje, aos 23 anos, Giovanna não corre mais, mas segue em movimento. Depois do diagnóstico, se formou em Biomedicina, virou atleta paralímpica e conquistou a medalha de bronze nas Paralimpíadas de Paris 2024. Também divide sua rotina com milhares de pessoas nas redes sociais. Sua experiência ajuda a jogar luz sobre uma questão essencial nas políticas de saúde: como transformar em linguagem clínica e institucional os efeitos reais de uma doença rara na vida de quem convive com ela?
As chamadas escalas neuromotoras são ferramentas clínicas padronizadas que ajudam a mensurar, de forma técnica e objetiva, o grau de comprometimento motor de um paciente. Elas são fundamentais para acompanhar a progressão de doenças, avaliar o impacto de intervenções e dar suporte a decisões regulatórias, inclusive sobre a adoção de novas terapias no sistema de saúde. Também orientam o trabalho de reabilitação, permitindo que profissionais identifiquem prioridades e acompanhem a evolução funcional ao longo do tempo. (2)
Mas quem convive com a doença todos os dias sabe que essas pontuações são insuficientes para transmitir as nuances das dificuldades e superações cotidianas. “O que mudou mais para mim foi o equilíbrio. A marcha também. Andar deixou de ser um movimento automático. Eu preciso pensar para dar cada passo”, conta Giovanna. “As pessoas acham que é simples, mas andar é muito complexo. Antes eu corria. Hoje, uso andador quando estou sozinha, principalmente depois de uma queda em que quebrei o pé. No começo resisti, achei que seria um símbolo de dependência. Mas percebi que o andador me dá mais liberdade.”
A fisioterapeuta Fernanda Maggi acompanha Giovanna de perto desde o início do processo de reabilitação. Especialista em doenças neuromusculares e autora de um estudo pioneiro que validou no Brasil uma das escalas aplicadas na ataxia de Friedreich (3), ela defende o uso criterioso e integrado desses instrumentos. “A escala é uma ferramenta importante quando bem aplicada. Ela direciona, mostra o que precisa ser feito, o que melhorou, o que não melhorou.”
Ela ressalta que, embora o número final pareça abstrato para quem não conhece a condição, ele está diretamente relacionado à funcionalidade. “Para a gente, a perda de pontos na escala significa queda, significa perda de funcionalidade. Significa que a pessoa não consegue mais fazer algo sozinha”, reforça.
Na prática, pondera a fisioterapeuta, essa avaliação técnica precisa estar conectada com a escuta ativa do paciente, pois existem subjetividades que escapam às medidas científicas. “Eu gosto de mostrar a escala para o paciente, explicar onde ele está, o que melhorou, o que precisa melhorar. Isso ajuda a engajar”, afirma Fernanda.
Giovanna confirma a importância dessa devolutiva. “A Fê sempre fala: a gente perde o controle motor, não a força. Então dá para treinar, dá para manter. E eu realmente aprendi isso com ela. Aprendi a usar a força que eu ainda tenho.”
Apesar do valor dessas ferramentas, nem sempre elas são bem utilizadas na rotina dos serviços de saúde. Falta tempo, capacitação e continuidade nas equipes. “A escala tem que ser usada no dia a dia, não pode ficar na gaveta. Ela tem que ser ponte entre os profissionais. E também ajudar o paciente a entender seu processo.”, diz Fernanda.
Em contextos ideais, como no consultório onde atende, Fernanda documenta as avaliações em relatórios que circulam entre os profissionais envolvidos no cuidado multidisciplinar. Em serviços com alta rotatividade, porém, a aplicação sistemática das escalas se torna mais difícil. “A gente sabe que aplicar a escala demora. Precisa de padronização, precisa de prática. E, muitas vezes, na correria dos serviços, isso é difícil”, resume.
Tecnologia para encurtar distâncias
Para apoiar profissionais e pacientes em diferentes regiões, iniciativas tecnológicas vêm se integrando ao cuidado presencial. Um exemplo é o PhysioMe, aplicativo de exercícios físicos desenvolvido para pessoas que vivem com doenças neuromusculares. A plataforma permite que os pacientes realizem atividades em casa com supervisão de seu fisioterapeuta, favorecendo a motivação, o acompanhamento do progresso e o compartilhamento dos resultados com as equipes de saúde.
Co-desenvolvido em parceria com profissionais de saúde e pacientes, o PhysioMe surgiu da compreensão de necessidades ainda não atendidas e tem como propósito personalizar e padronizar a reabilitação a distância. Evidências científicas mostram que a prática regular de exercícios físicos pode contribuir para a preservação das funções musculares, respiratórias e cardiopulmonares em pessoas com doenças neuromusculares. (4-5)
Fernanda conta que participou da curadoria dos vídeos específicos para ataxia de Friedreich e que Giovanna aparece em vários deles, contribuindo para ampliar o alcance das boas práticas clínicas por meio de uma biblioteca interativa acessada por fisioterapeutas em todo o mundo. Os dados registrados na plataforma, como frequência de uso e percepção de humor, contribuem para uma visão integral da resposta ao tratamento, segundo a especialista. O aplicativo, explica a fisioterapeuta, também ajuda a transformar os resultados das escalas neuromotoras em planos de ação concretos, conectando a avaliação técnica ao cotidiano do paciente e permitindo que o profissional acompanhe a evolução para além da pontuação clínica.
“É uma biblioteca de vídeos com exercícios pensados para cada perfil de paciente. Tem conteúdo para cadeirantes, para quem tem mais função, para braços, para pernas. A ideia é que o fisioterapeuta selecione o que faz sentido para aquele paciente, que então pode repetir os movimentos em casa, com segurança”, detalha Fernanda. “A gente registra até o humor do paciente, como ele fez, quantas vezes ele entrou, quantas vezes ele fez. É bastante interativo”.
Essa presença digital não se limita ao ambiente clínico. Nas redes sociais, Giovanna transforma sua vivência em conteúdo, conecta pacientes e ajuda a tornar visível o que os dados nem sempre revelam. Assim como se inspirou em uma paciente que compartilhava a rotina nas redes, hoje ela também inspira outras pessoas. “Outro dia conheci uma menina de nove anos que foi diagnosticada com ataxia. Os pais disseram que ela se inspira em mim. Isso me dá força. A gente vai se ajudando em rede.”
Devido à sua formação acadêmica, Giovanna acompanha de perto os avanços científicos relacionados à sua condição. Durante a faculdade, pesquisou terapias em desenvolvimento e escreveu sobre tecnologias promissoras voltadas à estabilização da doença.
“Ter uma perspectiva de tratamento já muda tudo. Mesmo que não seja uma cura, só de saber que pode ajudar a segurar a progressão, já dá mais fôlego para continuar”, diz.
Enquanto isso, ela segue treinando o físico e o psicológico. Para si mesma e para quem vem depois. “Na fisioterapia, eu aprendo todos os dias a usar minha força. Não é só exercício, é treino de vida.”
O impacto da voz do paciente
Para quem analisa escalas em relatórios, uma variação de pontos pode parecer apenas um dado técnico. Para o paciente, pode representar a diferença entre autonomia e dependência física. O desafio está tanto em aplicar corretamente a escala neuromotora quanto em compreender o que ela representa e transformar essa informação em cuidado real.
Por isso, a inclusão da voz do paciente na tomada de decisão em saúde é cada vez mais reconhecida como um componente relevante na formulação de políticas públicas, na definição de prioridades clínicas e na avaliação de tecnologias em saúde. Ao considerar a experiência de quem convive diariamente com a doença, é possível complementar os dados técnicos com dimensões subjetivas que impactam diretamente a qualidade de vida.
Histórias como a de Giovanna mostram que a combinação entre conhecimento técnico e escuta ativa pode contribuir para um cuidado mais efetivo, individualizado e alinhado com as necessidades reais das pessoas. Entre um ponto e outro nas escalas, está a vida que segue, com seus desafios, adaptações e possibilidades.
Referências
1 COOK, A.; GIUNTI, P. Friedreich’s ataxia: clinical features, pathogenesis and management. British Medical Bulletin, v. 124, n. 1, p. 19–30, 2017. DOI: 10.1093/bmb/ldx034.
2 SANTOS, M. C. S.; SHIMANO, S. G. N.; ARAÚJO, L. G. O.; PEREIRA, K. Uso da Escala de Desenvolvimento Motor: uma revisão integrativa. Revista CEFAC, Ribeirão Preto, v. 21, n. 4, p. e4919, 2019. DOI: 10.1590/1982-0216/20192149918.
3 MAGGI, F. A. et al. Cross-cultural adaptation and validation of the International Cooperative Ataxia Rating Scale (ICARS) to Brazilian Portuguese. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, v. 76, n. 10, p. 674–684, 2018. DOI: 10.1590/0004-282X20180098.
4 Individualized Aerobic Exercise in Neuromuscular Diseases: A Pilot Study on the Feasibility and Preliminary Effectiveness to Improve Physical Fitness. International Journal of Environmental Research and Public Health, 2021.
5 VOET, N. B. M. Exercise in neuromuscular disorders: a promising intervention. Acta Myologica, v. 38, n. 4, p. 207–214, 2019.