Ao substituir tarefas cognitivas, a Inteligência Artificial está criando um paradoxo, recolocando no centro do mercado de trabalho as habilidades físicas, relacionais e contextuais que máquinas ainda não conseguem replicar. De acordo com estudos da Microsoft, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e alertas de líderes como Geoffrey Hinton e Dario Amodei, empregos de entrada e funções baseadas em tarefas intelectuais estão entre os mais expostos. Já as profissões que exigem presença, improviso e manipulação física permanecem resilientes. O futuro do trabalho, portanto, pode estar menos nos escritórios e mais nas áreas onde a humanidade continua insubstituível.
“Se você me perguntar quais trabalhos ainda vão existir no futuro, minha aposta mais segura seria: seja um encanador.”, declarou Hinton em um evento nos Estados Unidos, em 2023.
Essa provocação daquele que é considerado o padrinho da IA e vencedor do Prêmio Nobel de Física em 2024, não é apenas um comentário curioso, é um alerta profundo sobre o futuro do trabalho.
Afinal, se por milênios o valor humano esteve atrelado à força física, e, na modernidade, passamos a privilegiar as habilidades cognitivas, estamos agora diante de um paradoxo histórico: à medida que a Inteligência Artificial substitui muitas funções intelectuais, o mercado volta a valorizar justamente aquilo que não pode ser facilmente automatizado, o físico, o contextual e o relacional.
A melhor forma de explicar como isso funciona começa por algo que, como um bom italiano, aprecio profundamente: uma boa taça de café.
O “teste do café” e os limites da IA
Imagine a seguinte situação: você está de cama, doente, mas não abre mão da sua tradicional caneca de café para começar o dia. Pede, então, que um amigo prepare o café por você. Algo que, à primeira vista, parece simples. Mas, ao entrar na sua cozinha, ele percebe que não sabe onde estão os utensílios, qual tipo de cafeteira você usa ou como ela funciona.
O desafio não é preparar o café em si, mas adaptar-se a um ambiente desconhecido e manipular objetos físicos no espaço ao redor. Para isso, ele depende de algo que nós, humanos, fazemos de forma natural: escanear o ambiente, reconhecer padrões, fazer suposições e ajustar a estratégia por tentativa e erro.
Não é fácil, mas, depois de algumas tentativas, e talvez alguma frustração, ele consegue. O café pode não ficar perfeito, mas cumpre seu papel.
Agora, imagine um robô movido por IA na mesma situação. Ele conseguiria? Ainda não. Embora preparar café pareça trivial, trata-se de uma tarefa surpreendentemente complexa. Justamente por isso, se tornou a base do Coffee Test (Teste do café), um benchmark (referência de desempenho) de Inteligência Artificial Geral proposto por Steve Wozniak, cofundador da Apple.
A questão central é: por que a IA ainda não passa no Coffee Test? A resposta está em quatro limitações fundamentais, que detalho no meu livro “Between You and AI” (“Entre eu e IA”, em tradução livre).
Falta de compreensão contextual
A IA detecta padrões, mas não entende o significado. Reconhece objetos individuais, mas não compreende naturalmente como eles se relacionam ou para que servem. Sabe o que as coisas são, mas não por que importam em uma situação específica.
Ausência de senso comum
Nós, humanos, usamos intuição e conhecimento compartilhado para decisões cotidianas. A IA carece desse senso básico: não sabe que a água é molhada ou que não se deve colocar um garfo no micro-ondas. Sem isso, pode tomar decisões bizarras em cenários desconhecidos.
Percepção fragmentada
Ao contrário dos humanos, a IA não integra diferentes sentidos em uma compreensão única do ambiente. Processa visão, som e texto separadamente, sem formar um modelo coeso em tempo real. O resultado é uma percepção rígida e incompleta da realidade.
Incapacidade de auto-orientação
A IA não reavalia nem muda de direção por conta própria. Como explica Julian De Freitas, da Harvard Business School, em seu artigo “Self-Orienting in Humans and Machine Learning” (Humanos auto-orientadors e aprendizagem de máquina, em tradução livre), nós atualizamos constantemente nossa noção de onde estamos e quais opções temos. A IA, sem essa bússola interna, não consegue se auto-orientar.
Se o Coffee Test mostra onde a IA ainda tropeça, o mercado de trabalho já revela onde ela avança: nas funções de entrada, marcadas por tarefas cognitivas repetitivas. Esse contraste anuncia um desafio inédito para as novas gerações.
Geração Alfa: aquela que não terá primeiro emprego?
É fato que já existe uma pressão significativa sobre muitos trabalhos que envolvem tarefas cognitivas. Dario Amodei, CEO da Anthropic, alerta que a IA pode eliminar até metade dos cargos administrativos de nível inicial, elevando o desemprego para 10% a 20% nos próximos cinco anos.
Isso já começa a se comprovar, na teoria e na prática. De acordo com o relatório da Accenture “A New Era of Generative AI for Everyone” (Uma nova era da IA Generativa para todos), o potencial aqui é enorme: grandes modelos de linguagem como o ChatGPT poderiam automatizar até 31% das horas de trabalho nos Estados Unidos — especificamente tarefas que exigem pouca ou nenhuma intervenção humana.
Em entrevista a Joe Rogan, Mark Zuckerberg afirmou que, até 2025, a Meta, assim como outras empresas, terá uma IA capaz de atuar como engenheiro de software de nível médio, escrevendo código de forma autônoma. Não é coincidência que, pouco depois, a Meta tenha anunciado planos para reduzir em 5% sua força de trabalho.
Essa pressão é ainda mais evidente em vagas de nível inicial, não apenas nas já existentes, mas principalmente na falta de abertura de novas posições. O próprio CEO da Shopify, Tobias Lütke, surpreendeu ao anunciar que, dali em diante, qualquer nova vaga na empresa só seria aprovada se houvesse justificativa clara de por qual razão precisaria de um humano e não poderia ser desempenhada por uma IA.
Os dados confirmam essa tendência. A Randstad apontou uma queda de 23% nas contratações juniores no último ano, e um relatório do Stanford Digital Economy Lab mostrou que trabalhadores em início de carreira (22 a 25 anos), em ocupações mais expostas à IA, tiveram uma queda relativa de 13% no emprego, mesmo após ajustes para choques no nível das empresas. No Brasil, 31,3 milhões de empregos serão afetados, destes, 5,5 milhões com risco de automatização completa, de acordo com a consultoria LCA 4Intelligence.
Diante dessas estatísticas, a pergunta inevitável é: qual o caminho daqui para frente? É o dilema que estudantes enfrentam ao escolher uma carreira, que reguladores e formuladores de políticas públicas precisam responder ao redesenhar leis trabalhistas, e que líderes de empresas devem considerar ao preparar seus times para o futuro.
Como tornar sua carreira à prova do futuro
O que temos adiante é um grande paradoxo do mercado de trabalho. Durante milênios, o valor profissional esteve atrelado a competências físicas: força, destreza, resistência. Com o tempo, migramos para um modelo cognitivo, onde inteligência, análise e raciocínio se tornaram as principais vantagens competitivas.
Agora, paradoxalmente, vivemos um retorno às habilidades físicas, relacionais e contextuais. À medida que a IA avança e substitui muitas tarefas cognitivas, como redigir relatórios ou analisar dados, o que não pode ser facilmente automatizado ganha ainda mais valor: a manipulação espacial, a coordenação motora, a interação humana direta e a criatividade aplicada a ambientes imprevisíveis.
Um estudo da Microsoft analisou nove meses de uso do Bing Copilot e criou um “índice de aplicabilidade da IA”, que mede quais ocupações são mais suscetíveis à automação. Profissões que dependem de tarefas cognitivas estruturadas, como intérpretes, jornalistas, matemáticos, representantes de vendas e consultores financeiros, apareceram entre as mais expostas. Já funções baseadas em trabalho físico, contato humano direto ou operação de máquinas, como assistentes de enfermagem, massoterapeutas, camareiras, telhadistas e até embalsamadores, se mostraram muito menos vulneráveis à substituição.
Enquanto as máquinas assumem o “trabalho do cérebro”, permanecem centrais os trabalhos que envolvem corpo, presença e humanidade, de enfermeiros a carpinteiros, de massoterapeutas a designers. E, talvez, essa seja a maior oportunidade da era da IA: redefinir o que significa ser humano e valioso no mercado de trabalho. Afinal, se hoje ela pode vencer você no xadrez ou escrever código em segundos, certamente não irá desentupir sua pia tão cedo.
A questão não é se a IA substituirá empregos, mas se teremos coragem de preparar as pessoas para os que surgirão. Educadores, formuladores de políticas e líderes não podem se omitir: precisam apontar desde já quais habilidades serão cruciais para prosperar nesse novo cenário. Sem essa responsabilidade, entregaremos nossa juventude à mercê da tecnologia mais poderosa da história. Enquanto podemos fazê-la não uma ameaça, mas a base de uma geração empoderada e verdadeiramente preparada para o futuro.


