Doenças raras: é tempo de agir para acompanhar a evolução da ciência
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Doenças raras: é tempo de agir para acompanhar a evolução da ciência

Execução de soluções para ampliar o cuidado e garantir acesso a terapias inovadoras transformará o futuro das doenças raras


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Medicamentos inovadores, porém, de alto custo. Dificuldade de acesso ao diagnóstico correto de maneira ágil. Falta de direcionamento da jornada dos pacientes em sistemas de saúde fragmentados. O desafio está posto. Seja no Brasil ou em qualquer outro país da América Latina, as pessoas com doenças raras e seus familiares ainda precisam superar vários obstáculos para exercerem o direito de acesso à saúde de maneira efetiva.

O cenário de adversidades, exposto na Special Edition “Doenças Raras na América Latina”, leva o leitor para a próxima etapa: a partir daqui, como avançar? A revista é baseada em uma pesquisa feita pela ORIGIN Health, com o patrocínio da PTC Therapeutics, e considera o panorama de oito países da macrorregião: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai.

O material elenca 46 pontos de ações práticas para a ampliação do cuidado em doenças raras considerando diagnóstico, pós-diagnóstico, legislação, engajamento da sociedade civil, registro, precificação e reembolso. Entre os tópicos, estão: garantir programas de triagem neonatal; promover formação especializada dos médicos no intuito de melhorar a qualidade da atenção primária; garantir codificação e precificação de tecnologias diagnósticas; e definir linhas de cuidado para melhor monitorar a jornada dos pacientes em um modelo específico de manejo.

Garantindo acesso em um modelo de manejo

Uma primeira reflexão é sobre o papel das organizações da sociedade civil, uma atuação que deve seguir sendo valorizada nos países que já têm tradição de engajamento e que precisa ser incentivada nos países mais incipientes no desenvolvimento de políticas públicas, como destaca o médico e professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Roberto Giugliani.

“Nos últimos anos, as associações de pacientes apresentaram um protagonismo no desenvolvimento de políticas públicas na área de doenças raras. Estão sempre em contato com os membros do parlamento, com o Poder Executivo e até com o Judiciário. Órgãos públicos tendem a considerar mais as associações de pacientes do que os cientistas e acadêmicos, consequentemente, seu envolvimento é muito bom. Eu vejo o papel das associações como fundamental até para órgãos regulatórios, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep)”, avalia o especialista.

Estrategicamente, a construção de um modelo-polvo (com centros de referência e a disseminação do acesso a locais mais remotos) para a abordagem das doenças raras também foi recomendada por diversos profissionais. Na Argentina, por exemplo, onde o sistema de saúde é extremamente fragmentado, a geneticista e diretora da Unidade Executora de Treinamento e Ensino Superior da Administração Nacional de Laboratórios e Institutos de Saúde ANLIS, Claudia Perandones, descarta outra possibilidade de evolução no cuidado aos pacientes que fuja do caminho de implementação de um modelo desse tipo.

“Vale destacar a relevância de uma rede de centros e unidades de referência que, além de garantir a identificação e otimização do conhecimento entre os profissionais de saúde, permita um atendimento especializado e de qualidade acessível a todo o país, incluindo o ambiente rural e zonas com menos recursos, permitindo, por sua vez, um intercâmbio adequado de conhecimentos com redes globais de referência em doenças raras. As desigualdades só podem ser abordadas através de uma ação coordenada e articulada a nível nacional, através de um roteiro que materialize uma política pública transversal”, afirma a médica.

Roberto Giugliani também apoia a institucionalização dessa prática, mesmo no Brasil, que ainda carece de um fluxo separado da regulação do Sistema Único de Saúde (SUS) para ofertar melhores respostas, de forma que seja possível a identificação de casos urgentes e o pronto atendimento monitorado por equipes multidisciplinares. Para chegar a esse cenário ideal, o médico destaca que o primeiro passo é reunir em uma única pasta ou departamento todas as ações governamentais no que se refere às doenças raras.

“O Brasil deveria instituir um órgão para coordenação das políticas de Doenças Raras, como o teste de pezinho, que está na área de sangue e hemoderivados. Outros itens relacionados a doenças raras estão no Ministério dos Direitos Humanos e no Ministério da Saúde, ou seja, dispersos em vários setores. A coordenação é fundamental para centralizar sob seu guarda-chuva todas as políticas desse tema para que as ações apresentem mais consequência. No Ministério da Saúde, há um movimento para trazer tudo para a mesma área, com uma política integrada de doenças raras, inclusive para gerar força junto a Conitec e a outros órgãos”, relata Giugliani.

Em fevereiro deste ano, o atual governo criou a Câmara Técnica Assessora de Doenças Raras (CTA de Doenças Raras), com o objetivo de “contribuir com o aperfeiçoamento e desenvolvimento da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e a discussão de questões relacionadas direta ou indiretamente às doenças raras no Sistema Único de Saúde – SUS”. Para Giugliani a ação foi um passo importante, tal qual a criação em 2023 da Coordenação-Geral das Doenças Raras no âmbito do Ministério da Saúde, mas avalia que na prática ainda não há uma centralização de estratégias.

“Na parte executiva os órgãos relevantes ainda estão espalhados dentro da administração pública e sem uma coordenação que os unifique de fato, por exemplo, duas ações importantes como a Política de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, e o Programa Nacional de Triagem Neonatal, seguem em áreas diferentes dentro do Ministério da Saúde”, avalia o médico.

Outro ponto de observação para o Brasil trazido pelo especialista é sobre uma maior agilidade na avaliação e incorporação de novas tecnologias, processo considerado por ele “lento e aquém das necessidades”.

Em nota à MIT Technology Review Brasil, o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) informaram que o governo trabalha com estratégias para “disponibilizar tratamentos adequados aos pacientes com doenças raras no Brasil”. Segundo o ministério, desde 2023, cerca de 35% das tecnologias incorporadas no SUS foram para essa condição, totalizando 152 terapias para assistência de pessoas com doenças raras.

O ministério pontuou que o “crescimento exponencial da inovação e desenvolvimento de tecnologias voltadas para o tratamento de doenças raras é um fenômeno mundial, que traz impactos em diversos sistemas de saúde” e que a decisão sobre a disponibilização dessas novas tecnologias na rede pública é feita com responsabilidade considerando evidências científicas e a participação da sociedade, considerada de fundamental importância.

Na esteira da discussão de acesso a medicamentos inovadores, a geneticista da Argentina Claudia Perandones, destaca a participação da indústria farmacêutica no investimento em pesquisa e desenvolvimento – o que resulta na criação de novas terapias. Para a especialista, se faz necessária uma agenda de comprometimento de todos, um trabalho conjunto com os governos dos países para encontrar maneiras de garantir que essas tecnologias cheguem a quem de fato precisa.

“Hoje, o compromisso da indústria farmacêutica com as doenças raras ou incomuns é uma realidade consolidada que está dando frutos e não pode ser travada. É urgente desenvolver novos tratamentos para que nenhum grupo de pacientes fique para trás, nem aqueles que esperam para ter acesso aos tratamentos existentes, nem aqueles que vivem sem os tratamentos disponíveis hoje. A indústria farmacêutica deverá continuar a trabalhar de forma coordenada com os governos e o sistema de saúde público para combater as doenças raras e garantir o acesso a novos tratamentos. E deve propor-se fazê-lo através da procura conjunta de soluções, através de um diálogo aberto e construtivo”, avalia Claudia.

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O presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Porto, é favorável à discussão sobre o preço dos produtos inovadores. No entanto, segundo o executivo, a precificação da inovação está relacionada à evolução da ciência genética e a um grau de precisão e personalização sem precedentes na história da medicina.

“Temos que refletir sobre o preço, sim. Como tornar isso acessível? Talvez o preço tenha que passar por um grau de equilíbrio e de adequação, mas a meu ver a indústria farmacêutica está cumprindo o seu papel. Nós não vamos parar a ciência, independentemente do desafio. É um desafio para todo mundo, então temos que juntar as mãos para arrumar uma solução”, afirma.

Formação em xeque

Entre os atributos para a ampliação do cuidado em doenças raras, está ainda uma revisão na formação dos médicos. O desconhecimento por aqueles cuja especialidade não é a genética é citado por porta-vozes de diferentes países, de forma que observar esse nicho de atualização curricular se destaca na busca por aprimoramento das políticas.

“Muitos dos currículos universitários das carreiras de profissionais de saúde exigem uma atualização de todo o nível de informação científica que temos hoje e que não existia há 20 anos, sobretudo para reforçar a área da genética médica. Essas doenças têm 80% de base genética. Então, é importante atualizar o nível de formação dos profissionais que têm o desafio de responder ao atender esses pacientes em sua consulta”, diz a diretora da Federação Argentina de Doenças Raras, Luciana Penaloza.

No Brasil, em 2013, dentro do programa “Mais Médicos”, lançado pelo governo federal, havia uma diretriz que previa a atualização curricular dos cursos de Medicina, porém a reforma não foi plenamente realizada. A MIT Technology Review Brasil entrou em contato com o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de Educação, mas não teve respostas sobre atualizações a respeito do tema até a publicação desta reportagem.

Coesão e conexão

Por fim, trazendo uma visão geral para a América Latina, o presidente da entidade que representa a macrorregião, Diego Fernando Gil Cardozo, destaca dois movimentos: um deles é o de promover maior coesão entre os países latino-americanos, compartilhando aprendizados e dificuldades; e outro buscando ativamente soluções articuladas e conjuntas.

Nesse sentido, na visão do especialista, é interessante a criação de um marco normativo latino-americano para que as políticas públicas de cada país possam ser criadas respaldadas em uma sólida legislação. Ter conhecimento do número de pacientes e das doenças incidentes nos países também se faz importante. A construção de registros nacionais e um grande registro das doenças raras na América Latina constituem informações valiosas com o intuito de munir agentes públicos com uma visão mais estratégica para a condução de tomadas de decisão.

Para Diego, a conexão com iniciativas globais é outro aspecto que merece destaque na discussão: “A América Latina não pode estar isolada. As experiências da Europa são adaptáveis ao nosso contexto. Não todas, mas há coisas que são adaptáveis, como a criação da rede de centros de referência. Também podemos ter como referência ações que estão ocorrendo em outras regiões do mundo, como na África e na Ásia. Existem redes colaborativas em diferentes partes do mundo. A Rare Diseases International é um movimento global que está gerando debates relevantes justamente nesta proposta de conhecer e conectar diferentes cenários e regiões. Assim, é possível entender trajetórias de sucesso e outras de nem tanto sucesso, mas analisar o que é possível incorporar na nossa realidade para conseguir avançar”.

A pesquisa da ORIGIN Health mostra que há muitas questões a serem resolvidas e revisadas para aprimorar a jornada de uma pessoa com doença rara, mas também que existem soluções sendo propostas por porta-vozes da América Latina. O momento é de agir.

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