Do salto evolutivo acidental às perspectivas jurídicas da retomada
Humanos e tecnologia

Do salto evolutivo acidental às perspectivas jurídicas da retomada

Imagine um mundo em que, da noite para o dia, um contingente imensurável de pessoas pare de comparecer aos seus escritórios e comece a trabalhar de casa. Seria uma narrativa ficcional se não fôssemos testemunhas oculares deste inesperado fenômeno, efeito colateral de uma pandemia que nos obrigou a uma adaptação instantânea das relações pessoais e profissionais.

Trazendo um conceito da biologia para a realidade empresarial, pode-se dizer que o home office (ou trabalho telepresencial) passa por um salto evolutivo, uma abrupta e repentina modificação geracional, em volume muito maior do que o naturalmente esperado. Um florescimento amplo e súbito do sistema de trabalho remoto, que no Brasil ainda passava por um lento e cadenciado processo de evolução (v. relatório OIT-Eurofound: Working anytime, anywhere: The effects on the world of work, 2017).

Saindo da biologia para o direito, no entanto, chegamos a um ponto de tensão, pois saltos evolutivos não costumam ser harmoniosamente recebidos pela legislação. O processo legislativo demanda tempo para amadurecimento e sofre prejuízo quando enfrenta guinadas sociais imprevistas. Entendido desse modo, a suma é que vivemos uma etapa incômoda, diante de uma aceleração nas situações de teletrabalho descompassada da legislação, ainda incapaz de resolver as demandas e questionamentos surgidos no novo cenário empresarial.

Não obstante o timing acelerado, as primeiras impressões sobre o home office em escala universal foram positivas para ambos os lados da relação de trabalho. O ambiente tem sido tão favorável, que ostenta demonstrações recíprocas de interesse na manutenção no novo sistema para além do período de isolamento social. Trata-se de um cenário volitivo convicto, que embora projete um futuro promissor, não dispensa um olhar cauto, visto que o aumento da amostragem de casos traz à tona questões sem resposta no pano de fundo legislativo.

Sem esgotar os temas, alguns aspectos dignos de atenção podem ser citados, a exemplo da adoção de home office parcial, que pela ausência de previsão na legislação trabalhista, exige cautelas especiais. Controvérsiassobreaprivacidade,ouso de imagem e até a discriminação do trabalhador também têm aparecido com maior recorrência no seio empresarial.

No cenário judicial, ascendem os conflitos sobre o direito do empregado fragilizado de permanecer ou não em home office após a convocação do empregador, assim como as importantes ações coletivas com pedidos de fornecimento de mobiliário ergonômico e de custeio integral de serviços de internet e/ou telefonia na residência dos trabalhadores.

Em matéria de saúde e segurança do trabalho, não se devem olvidar os cuidados de longo prazo, pois os novos riscos podem demorar a se manifestar, a teor das doenças osteomusculares decorrentes da menor mobilidade do trabalhador em casa – fato identificável por qualquer “gadget” de rastreamento de movimentação pessoal.

A respeito dos riscos e das incertezas do trabalho telepresencial, há vários projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional com o escopo de regulamentar melhor e mais adequadamente o trabalho remoto, abordando temas arrojados, inclusive, como a possibilidade de contrataçãotransnacional em regime de teletrabalho. Embora o tema esteja na ordem do dia, as potenciais novas leis ainda passarão por um longo processolegislativo, enquanto o mundo do trabalho continua em atividade.

Fato é que, bem planejado e executado, o home office pode ser adotado a longo prazo, com resultados eficientes e satisfatórios. Alguns cuidados mínimos, no entanto, são recomendados, para evitar amargas surpresas no futuro. Quais seriam esses cuidados?

Definição legal do teletrabalho

Segundo a CLT, nem todo empregado que trabalha de casa será considerado teletrabalhador. Para que goze das exceções típicas da lei, é necessário que: a) a prestação de serviços ocorra, preponderantemente, fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação; e b) o comparecimento ao estabelecimento do empregador se dê apenas para a realização de tarefas específicas que exijam a presença do empregado.

Não estão contempladas pela lei vigente o home office parcial. Circunstâncias em que o trabalhador trabalha mais vezes no escritório do que em casa, ou que trabalha em escala, realizando as mesmas atividades tanto de casa quanto do estabelecimento do empregador, não estão inseridas na definição de teletrabalho da CLT e, salvo raras exceções, não se sujeitam às regras do teletrabalho previstas na lei.

Dispensa do regime de jornada e desconexão

Via de regra, o empregado em regime de teletrabalho (segundo a definição legal) está dispensado do regime de jornada e, portanto, não precisa marcar ponto.

Embora a lei faculte a isenção de jornada de trabalho ao trabalhador em regime telepresencial, essa faculdade é excepcional e deve ser exercida com muita cautela.

Embora seja razoável tentar estender a exceção para as hipóteses de home office parcial, em que dias de trabalho em home office poderiam ter o regime de jornada liberado, em contraposição à apuração obrigatória exclusivamente em dias de trabalho presencial, não há previsão legal de isenção do regime de jornada para modalidades de teletrabalho distintas da prevista e definida por lei.

Mesmo com a exceção legal, se houver a possibilidade de controle e de fiscalização do trabalho realizado telepresencialmente, tal como ocorre com o trabalho presencial, é recomendável, embora não legalmente obrigatório, que a jornada seja fiscalizada e controlada. Precedentes judiciais nesse sentido justificam a cautela.

Conquanto o empregado em regime de teletrabalho não esteja sujeito ao regime de jornada, o trabalho não é ininterrupto, devendo ser garantido o direito à desconexão, isto é, à ausência de trabalho, de chamados ou de conexões com o empregador nos dias de folgas e férias.

O regime telepresencial deve ser previsto expressamente no contrato de trabalho

O teletrabalho deve constar obrigatoriamente no contrato de trabalho, com especificação das atividades a serem realizadas pelo trabalhador.

Em caso de alteração do trabalho presencial para o regime telepresencial no curso do contrato, a alteração deve ser pactuada entre as partes por meio de aditivo expresso.

Para o retorno ao trabalho presencial não é necessária a anuência do empregado, desde que garantido o prazo mínimo de 15 dias para a transição, e que seja realizado o registro da alteração em aditivo contratual.

Benefícios: refeição, transporte e outros

Benefícios contratual ou espontaneamente concedidos ao empregado, como o vale- alimentação, por exemplo, não devem ser cessados no período de teletrabalho, sem que haja previsão legal, contratual prévia ou, ainda, em convenção ou acordo coletivo de trabalho. O vale-transporte, por ser condicionado ao custeio do deslocamento casa-trabalho-casa, pode ser compensado nos dias em que o deslocamento não for necessário.

Custeio de despesas de infraestrutura para o trabalho remoto

A lei determina que serão previstas em contrato escrito as disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dosequipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado.

A forma de reembolso e os critérios de apuração das despesas e prestação de contas podem ser pactuados entre empregado e empregador, mas o empregador é responsável por arcar ou reembolsar eventuais despesas incorridas pelo empregado.

Em caso de despesas de energia elétrica, serviços de telefonia e de internet, bem como outras que não sejam passíveis de quantificação exata, recomenda-se a realização de pagamento de ajuda de custo, estimada e previamente pactuada entre as partes.

Esse artigo faz parte da nossa Special Edition Home Office: Work Anywhere

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