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Durante anos, a medicina baseada em evidências promoveu a saúde e o bem-estar como uma “fórmula padronizada”, indicando tratamentos semelhantes para pacientes com a mesma doença. Com o avanço da genômica, da biologia molecular e de ferramentas de Inteligência Artificial (IA), esse método vem sendo aperfeiçoado, uma vez que terapias médicas, quando administradas a grandes grupos, podem gerar resultados diferentes dependendo do paciente. Na medicina de precisão, busca-se assertividade e personalização a partir de decisões guiadas por dados.
Segundo a cientista médica Iscia Lopes Cendes, chefe do Laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp), a medicina de precisão propõe o diagnóstico e o tratamento individualizado por meio da análise de uma grande base de dados — diferente da estratégia fundamentada em evidências obtidas com parâmetros médios. “Vamos conhecer mais sobre a fisiopatologia da doença, entender a fundo sobre o mecanismo e a causa de um determinado problema”, diz.
Na prática, é como enxergar no paciente uma grande plataforma de dados e transformar a doença em um erro a ser prevenido e combatido. Como o corpo humano é composto por 37 trilhões de células, ele possui inúmeros pontos de informações que podem ser coletados por meio de dispositivos eletrônicos, sensores, exames de imagem e testes laboratoriais. E como os algoritmos são treinados para avaliar grandes volumes de dados, no chamado aprendizado de máquina (machine learning), as ferramentas de IA se tornaram parceiras dos médicos do futuro e do cuidado personalizado.
Integração dos dados
A boa notícia é que, na era da informação na qual vivemos, reunir e armazenar esses dados está mais fácil. Estima-se que 30% das informações coletadas no mundo atualmente vêm da saúde. E, embora seja uma área com grande potencial, também carrega grandes desafios justamente pelo volume de dados existente. “São muitas possibilidades, mas a complexidade das doenças com as quais estamos lidando, a interoperabilidade das informações e o alto rigor nos testes são questões que ainda exigem trabalho para evoluírem”, afirma Alexandre Chiavegatto Filho, professor livre docente de Inteligência Artificial na Faculdade de Saúde Pública da USP.
Apesar de o Brasil contar com sistemas de informação eficientes desenvolvidos por grandes empresas e startups, eles pouco se conversam. “São plataformas independentes que ainda não permitem identificar a trajetória do paciente. É a mesma coisa com dados de consultas e de internação”, analisa.
Iscia Lopes, da Unicamp, também vê a falta de interoperabilidade de dados como um fator limitante para o avanço da medicina de precisão no Brasil. Para ela, o maior exemplo dessa barreira está no próprio Sistema Único de Saúde (SUS), que é o maior sistema público de saúde do mundo, com mais de 190 milhões de pacientes, mas não possui uma plataforma consolidada de prontuário eletrônico. “Imagina o banco de dados que a gente teria se tivéssemos esse sistema há 10 anos?”, questiona.
Algoritmos de transferência
Outro desafio consiste em treinar os algoritmos para que eles interpretem as características regionais dos brasileiros, considerando que o Brasil é o quinto maior país em extensão territorial do planeta. De acordo com o professor da USP, a carência de médicos especialistas em alguns estados demanda que profissionais do futuro sejam amparados por algoritmos de transferência, que têm parte de seu aprendizado realizado a partir de dados externos. Eles se formam da seguinte maneira: os algoritmos têm uma etapa do aprendizado realizado com dados de São Paulo, por exemplo, e outra treinada com detalhes específicos de regiões remotas do país
“O algoritmo não descansa, não esquece, não se distrai e não deixa passar nuances que fazem com que o paciente tenha um problema grave no futuro. Os mesmos algoritmos que já nos ajudam no trânsito e nas redes sociais, também podem nos ajudar na saúde”, finaliza o especialista da USP.
Processados, os dados têm capacidade de predizer as respostas a determinados tratamentos e até para quais doenças um paciente tem predisposição. Toda análise passa por testes e por um comitê de especialistas.
No diagnóstico, esses exames têm a capacidade de apontar quais os riscos de desenvolvimento de determinadas doenças com base em análise minuciosa de genes relacionados a ela. Esses testes de predição genética, realizados com um simples exame de sangue, têm sensibilidade destacada e ganharam popularidade recentemente. Além disso, podem indicar como as pessoas metabolizam medicamentos, oferecendo um importante alerta de risco de toxicidade para algumas medicações. Nesse sentido, O Hospital Israelita Albert Einstein, por exemplo, disponibiliza um teste de predição genética chamado Predicta.
No modelo mais completo, é possível descobrir até 22 tipos de câncer, 12 doenças cardiovasculares e distúrbios de coagulação, metabolismo, imunidade e neurológicos, além de outras doenças genéticas. Cada paciente tem direito a uma consulta antes do exame, assim como orientações de acompanhamento após o resultado e encontros anuais com geneticistas do hospital por até cinco anos.
“Idealmente, seria desejável termos informação da predição genética e o perfil farmacogenético de nossos pacientes”, diz Fernando Moura, oncologista clínico e gerente médico do Programa de Medicina de Precisão do Einstein. “Dessa forma, poderíamos evitar efeitos tóxicos de algumas medicações, na rara eventualidade de alguma alteração genética que interfira no metabolismo de medicações esteja presente. Além disso, poderíamos personalizar o rastreio de algumas doenças à medida que descobríssemos os riscos genéticos dos pacientes”, acredita.
Tratamento mais assertivo
Não é apenas na predição de doenças que a IA atua. A capacidade de diagnóstico das alterações moleculares e da análise de grandes volumes de dados pode possibilitar aos médicos avaliarem de forma mais assertiva quais os melhores tratamentos para cada tipo de tumor e, mais que isso, para cada paciente individualmente.
Alguns tipos de tumores, como por exemplo os cânceres colorretal e de pulmão, tiveram suas taxas de sucesso aprimoradas nos últimos 15 anos. Tais avanços são decorrentes das melhores condições de diagnóstico – que identificam mutações e alterações moleculares – e da possibilidade de tratamento com drogas alvo dirigidas, por exemplo. A imunoterapia, tratamento que consiste na administração de medicamentos que estimulam o sistema imunológico a reconhecer e combater o câncer, também revolucionou os desfechos de algumas doenças oncológicas.
Outro exemplo na oncologia está no artigo Neoadjuvant chemotherapy or upfront surgery in localized pancreatic cancer: a contemporary analysis (Quimioterapia neoadjuvante ou cirurgia inicial localizada em câncer de pâncreas: uma análise contemporânea, em tradução livre), publicado em 2022 por médicos do Einstein na revista científica Nature. Ao perceberem que a quimioterapia antes da cirurgia poderia não ser a melhor opção para todos os pacientes, os oncologistas do Einstein levantaram os dados dentro do hospital e depois realizaram uma meta-análise com dados complementares em outras instituições. No total, foram 216 entrevistados entre janeiro de 2016 e junho de 2020.
O estudo concluiu que a intervenção cirúrgica foi o único fator associado à melhora da sobrevida do paciente. Enquanto os pacientes tratados primeiramente com a cirurgia tiveram sobrevida média de 28 meses, os que receberam tratamento neoadjuvante (quimioterapia no início) registraram uma média de apenas 15 meses.
“Tínhamos a impressão de que alguns pacientes não tinham bom desempenho quando expostos a quimioterapia neoadjuvante, com a doença continuando a progredir”, afirma Moura, um dos autores do artigo. “E, de fato, quando realizamos uma meta-análise com dados de mais de 3 mil pacientes tratados, observamos que nem todos deveriam ter recebido quimioterapia, pois em alguns existia a progressão da doença. Por isso, precisamos de biomarcadores que identifiquem quais pacientes de fato serão beneficiados. O diagnóstico genético e genômico, associados as informações dos dados de inúmeros pacientes, poderá contribuir com uma recomendação de tratamento mais precisa no futuro”, acredita o especialista.
Demais especialidades
No exterior, a medicina de precisão também se mostra eficaz para tratamento e diagnóstico em outras especialidades, como a gastroenterologia e a reumatologia. Rodrigo Deliberato, diretor de Informações de Pesquisa na Faculdade de Medicina da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, conta que a farmacêutica Prometheus Biosciences produziu o primeiro resultado em estudo de fase 2 para o tratamento mais assertivo de colite ulcerosa e doença de Crohn, com taxa de remissão de 37,5%. O produto já se encontra em fase 3 e, se continuar com resultados positivos, será submetido à aprovação da agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (FDA).
Em setembro, foi aprovado um teste laboratorial para predizer a resposta de pacientes com artrite reumatoide nos EUA. Chamado de PrismRA, o exame de sangue pode ajudar a prever quais pacientes provavelmente não responderão aos medicamentos biológicos, tratamento mais recomendado para pessoas com artrite reumatoide. A previsão é que a solução chegue aos pacientes brasileiros em três ou cinco anos.
“Esses resultados são estímulos para que as indústrias venham e façam mais estudos com a medicina de precisão. Os pacientes com doenças imunológicas são os que, em minha opinião, verão os benefícios dessa tecnologia no curto prazo, em menos de cinco anos”, avalia Deliberato.