Dados genéticos vão permitir descobertas inéditas sobre doenças raras
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Dados genéticos vão permitir descobertas inéditas sobre doenças raras

Ao longo deste ano, vamos acompanhar a publicação de resultados de pesquisas que fazem sequenciamento genético de pacientes do SUS em parceria com o Ministério da Saúde.

Susan Sarandon, Julia Roberts e Brad Pitt. O que esses famosos atores hollywoodianos têm em comum? Os três utilizaram seu talento para retratar no cinema a dura jornada de familiares e pacientes com doenças raras. Por meio da dramaturgia, boa parte do público pode ter se deparado pela primeira vez com a ALD — adrenoleucodistrofia (doença que causa a destruição do sistema neurológico progressivamente), ao acompanhar a luta de Sarandon no papel da mãe que persiste na busca de um tratamento eficaz para o filho Lorenzo em “Óleo de Lorenzo” (1992); descoberto a síndrome Treacher Collins (que ocasiona uma série de dismorfismos craniofaciais), ao assistir Julia Roberts lidando com o preconceito sofrido pelo filho na escola em “Extraordinário” (2017); ou ainda se questionado sobre a síndrome de Hutchinson-Gilford (distúrbio que compromete o desenvolvimento humano e causa envelhecimento precoce), condição que inspirou primeiramente o livro do escritor norte-americano Scott Fitzgerald e, em seguida, o personagem interpretado por Brad Pitt em “O curioso caso de Benjamin Button” (2008). 

Como a denominação sugere, essas doenças definitivamente não são comuns, afetando um pequeno número de pessoas na comparação com outras doenças mais prevalentes na população. Seguindo definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil adota, desde 2014, o entendimento de que doenças raras são aquelas que atingem até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. A hipertensão arterial, por exemplo, uma das doenças crônicas mais prevalentes no Brasil segundo o Ministério da Saúde, atinge cerca de 26% da população. 

Como cerca de 80% dessas patologias são decorrentes de fatores genéticos, o avanço nessa área da ciência propiciou não só diagnósticos mais precisos, mas também o desenvolvimento de novas tecnologias terapêuticas inovadoras. Nesse contexto, as doenças raras estão em evidência no campo da pesquisa e nas discussões sobre o acesso a tratamentos.   

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão — Genomas Brasil busca alicerçar a futura implementação da medicina de precisão no sistema público. Uma das linhas do programa é promover o sequenciamento genômico no maior número possível de pacientes do SUS e é nela que está englobado o projeto Genomas Raros, uma iniciativa conjunta com o Hospital Israelita Albert Einstein, por meio do Proadi (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), para o sequenciamento de genoma completo de indivíduos com doenças raras ou câncer hereditário. 

Benefício de curto prazo e legado para o futuro 

Segundo o médico e pesquisador que lidera o projeto, João Bosco Oliveira, tudo começou em 2015 com a autorização no Ministério da Saúde para que centros de referência pelo Brasil pudessem fazer investigações bioquímicas. Porém, essas unidades precisavam da inclusão de um teste genético de alta escala. “Ter uma ferramenta assim de grande abrangência faz toda a diferença na vida desses pacientes, foi aí que propusemos conjuntamente esse projeto em que nós provemos testagem genética com sequenciamento do genoma inteiro do indivíduo para pacientes do SUS com doenças raras”, conta João. 

O hospital é responsável por disponibilizar o material para a coleta de sangue, assim como toda a logística reversa para receber as amostras e fazer a análise. Depois disso, é gerado um laudo médico que retorna para o centro de referência, onde profissionais como geneticistas dão o encaminhamento correto para as informações junto aos pacientes e familiares. O projeto conta com mais de 20 centros parceiros em diferentes estados, por isso foi possível sequenciar oito mil genomas. A expectativa é chegar em 11 mil sequenciamentos no próximo triênio, a partir de um banco de dados com 16 mil amostras já coletadas. 

O médico destaca uma parte prática que traz benefícios de curto prazo para os pacientes. Dos 8 mil genomas sequenciados, mais da metade já foram transcritos em laudos e distribuídos para os centros. O especialista explica que a taxa de conclusão de diagnóstico para o paciente está em 40%, uma porcentagem considerada muito boa e cujo desdobramento é essencial no manejo de uma doença rara. Os dados, porém, serão oficialmente publicados em 2024. 

“É uma taxa de resolução inclusive maior do que a de outros projetos semelhantes, como na Inglaterra ou na Suécia. E isso tem um cunho assistencial que é de retorno imediato. Com o resultado do sequenciamento, você pode mudar o tratamento, mudar o prognóstico da doença, aconselhar a família, estudar familiares para saber se eles portam mutações. Às vezes é uma doença grave que você consegue nomear — o que traz conforto para quem está há anos buscando diagnóstico, embora não mude o curso. Em outros casos, é possível mudar a conduta. Se formos pensar no subgrupo de pacientes com risco hereditário de câncer, o impacto é enorme, porque todos os procedimentos estão disponíveis no SUS: ressonância de mama, colonoscopia, mastectomia para redução de risco, salpingooforectomia [remoção das trompas de Falópio]”, afirma o médico. 

Além disso, a criação de um banco de dados genéticos deixa um legado relevante para a pesquisa: “Isso vai ser importante para o futuro do estudo em doenças raras, vai servir como repositório para a descoberta de novos genes causadores de uma doença. Por exemplo, eu tenho 50 pacientes com determinada condição. Desses, eu diagnostiquei 30%. E os outros 70%? Será que eles têm uma alteração que nunca foi observada? Uma alteração que seja comum a um subgrupo, que possa trazer uma hipótese de uma causa nova? Vamos utilizar esse grande banco para descobertas científicas”, observa o pesquisador. 

Implementação no SUS 

Também está no radar da equipe tratar de custo-efetividade nos próximos estudos. A intenção é entender o impacto do diagnóstico efetivo para o sistema como um todo, quantificar isso para que o Ministério da Saúde possa mensurar em que âmbito seria possível implementar a ferramenta para poupar custos e melhorar a qualidade da assistência aos pacientes. Ainda que em um primeiro momento não seja possível usar a ferramenta em todas as esferas, os estudos de custo-efetividade poderão contribuir com subsídios para orientar a utilização em áreas mais críticas, segundo João Bosco Oliveira. 

Também na avaliação do médico, um ponto positivo já conquistado foi o treinamento dos profissionais de saúde que atuam nos centros parceiros do hospital. No início do projeto foi necessário preparar esses colaboradores, que hoje estão capacitados para trabalhar com genômica. 

“Nós víamos as dificuldades que eles tinham para entender um laudo, entender as limitações. Esse não é o futuro, esse é o presente da medicina.  É preciso saber lidar com laudos genômicos assim como laudos de tomografias. Fizemos capacitação, treinamento e tudo foi aprendizado”, conta.  

DNA do Brasil  

Também integrado ao programa do Ministério da Saúde está o projeto DNA do Brasil, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Com seis mil genomas sequenciados e a meta de dobrar esse número até o final de 2024, o trabalho se dedica ao mapeamento da carga genética da população brasileira, a entender como ela está distribuída por regiões, como está relacionada com os grupos étnicos que formaram o país e como isso pode ser usado a favor da medicina de precisão. 

“A nossa população é historicamente muito mais miscigenada, então buscamos um olhar de como diferentes povos africanos contribuíram para a formação da população brasileira, assim como povos indígenas e europeus. Cada uma dessas ancestralidades potencialmente traz variantes novas, então olhamos para as variantes em geral e conseguimos ver quais variantes estão relacionadas a quais ancestralidades. Fazemos um screening geral, depois começamos a analisar especificamente o que essas variantes estão dizendo, se estão relacionadas com doenças ou com metabolismo de drogas”, explica a pesquisadora Tábita Hünemeier, coordenadora do DNA Brasil.  

A pesquisa tem uma abordagem diferente, mais abrangente, já que não está focada em doenças raras. Apesar disso, entre os futuros achados certamente estarão informações relevantes para as patologias genéticas, como boa parte das que são consideradas raras, até porque bancos de dados genéticos costumam armazenar informações sobre o registro de milhares de variantes do DNA humano, seja ele de um paciente saudável ou com alguma doença ou manifestação clínica. 

Até o momento, o DNA do Brasil já constatou cerca de 11 milhões de novas variantes, número que, segundo a professor, já é considerado grande, dada a comparação com outros bancos como o GnomAD (Genome Aggregation Database) — um dos principais do mundo, que reúne dados genéticos de indivíduos de diversas ancestralidades, porém com maior proporção de europeus. Os primeiros resultados do DNA do Brasil estão descritos em um artigo científico que está em fase de revisão e que deve ser publicado ainda em 2024.  

O banco de dados deve estar disponível para pesquisadores em breve. “Estamos com o navegador praticamente pronto para ser lançado, e esses dados vão estar acessíveis. Isso já aumenta o número de pessoas que podem usar os dados e vai incentivar a pesquisa, porque também é objetivo do projeto fomentar grupos científicos”, relata Tábita. 

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